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sexta-feira, 22 de maio de 2020

Uma lágrima ainda quente, na memória de um rosto



Estacionei o carro e saímos. Caminhámos, em nós, passos do entardecer, em direcção ao restaurante. Ela um pouco mais à frente, ou mais atrás, já não me lembro, mas nunca a meu lado. Sim, disso tenho memória. Quantas vezes, na vida, não olhamos para o lado? Pois é, as grandes viagens não se fazem com a solidão. Trocámos três ou quatro frases, antes do restaurante. Ela longe, eu a olhar em volta, mas nada me acudia. Pelo contrário, tudo me virava o rosto. Num ignorar obstinado. Em que estação estávamos? Pelo vestuário, e entardecer precoce, estávamos na estação sem sombras. A noite empurra o dia, sem nos permitir um adeus. Ela continua no seu caminhar de interiores, ora mais à frente, ora mais atrás, e eu a olhar o futuro num desamparo crescente. De súbito, uma luz, que julguei fundida, acende-se no meu sótão. Desconhecia este recanto. Olho-o no espanto de primeira vez. Agora tenho de sair e descer a escada a correr, estamos à porta do restaurante. Ela entra primeiro, claro. Numa altivez que começava a desencantar, um pouco como aquelas piadas que à segunda ou terceira vez apenas merecem o pudor sob a forma de um sorriso amarelado. Escolhi uma mesa propícia a sussurros e a gestos sonhados. Ela, primeiro, tirou o casaco e depois sentou-se. Sentei-me, de seguida. Nisto, antes de qualquer frase trocada, ela levanta-se e retira o cachecol do pescoço, num movimento indefinível, numa harmonia entre mão e cabelos, como se de fotogramas se tratasse, de repente, os cabelos estáticos no ar, algo do cachecol ainda no pescoço, e eu bebia cada frémito na avidez do viajante… Por fim, ela diante de mim. Eu a perder-me naquele rosto… Quantas vezes perdemos a bússola de nós ao viajar pelos caminhos de um rosto? Mas, cada passo tinha um sabor aporético. E eu a regressar a mim, sim, a bússola reencontrada naquele silêncio. Ela de acordo com a estação. Num hermetismo férreo. O cansaço a dominar o leme da minha vontade. Subitamente, o meu olhar no cachecol pendurado nas costas da sua cadeira. Pareceu-me uma lágrima num rosto. Quase tocava o chão. Pareceu-me vê-lo numa oscilação leve. O meu ver por ali ficou. Desde o espaldar até àquele quase mover sem tocar. Tinha uma cor triste, condizente com a estação. E, de uma forma muito própria, ilustrava-nos. Uma lágrima por cumprir. Um adeus por dizer. É isso. Compreendi o malogro. Quantos paludes não erigimos com as próprias mãos? E eu já não nela, mas no meu sótão, preocupado em descobrir as velharias que esta nova luz me apresentou. Ela, lá muito longe, disse qualquer coisa acerca do repasto. Corro para uma janela e respondo: Sim, pode ser isso…

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