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quarta-feira, 6 de maio de 2020

Quem compreende o Comboio, sobe homem, mas desce menino




Hoje celebrei um rito, adormecido algures no tempo de mim. Sim, como estava a dizer, hoje fui andar de comboio. Sem motivo de relevo. Apenas uma decisão nascida do instante. E, como é sabido, a duração do instante depende da cor da memória. Àquela hora, o movimento tinha a luz de meio da manhã. Por outras palavras, espreguiçava-se. Como cheguei à estação? Já não me lembro. Fui de carro? Apanhei boleia de alguém? Autocarro? Afinal, para onde ia? Não me recordo. Porque o instante pertencia, no seu todo, ao comboio. É a memória mais vívida em mim. Paguei o bilhete com moedas, subi para a plataforma, inspirei aquele singular aroma a carris e viagens – não, não é um cheiro de poluição! A poluição é um beco, nunca um horizonte. Ainda assim, muitos quiseram assistir ao meu rito. A plataforma preencheu-se. De repente, os carris a sibilar, e um apito, de pais legítimos, cantou pelos ares. Aproximo-me da borda, e olho à minha esquerda. Lá vinha ele, sim, confesso, percebi que estava feliz pelo reencontro, eu também, como já vos disse, assim que se imobilizou, no esforço singular de quem foi criado para o movimento, eu entrei num amplexo sentido, e, como sempre, só assim o rito tinha sentido, nunca podia ser de outra forma, sentei-me à janela. À minha frente, uma senhora de idade, a seu lado, um sujeito na casa dos quarenta, e, do meu lado esquerdo, sentou-se uma adolescente. Subitamente, um ressoar metálico, de novo o apito, um ligeiro desequilíbrio, e o destino cumpria-se. A nitidez esmorecia nas janelas, enquanto eu fechava os olhos para sentir, melhor, aquele navegar, indiscritível, sobre correntes paralelas metálicas. E o ritmo cadenciado, como pulsação fosse, ou vaga vencida deixada pelo caminho. De repente, uma curva, e olho as carruagens mais à frente. Sim, pois, a vida. Todos havemos de lá chegar. Compreendo. A marcha, agora, abranda. O apito (desculpem, a nota musical, afinal, trata-se do som de um sonho de meninice. Que nome dar aos sons dos sonhos?), a nitidez ressurge, e a imobilidade torna-se presente. As portas abrem-se. Há agitação. Uns apressam-se a sair, numa urgência além compreensão. Outros procuram entrar, numa sofreguidão similar, como se receassem a perda de um papel sem substituto. Pois, a vida. Quantos saíram? Quantos não olhei? E estes, agora, nascidos do nada, ali, diante de mim, numa exigência de olhar, além-verbo, como se uma presença fosse comunicável, e eu comigo, a suspirar por um apito, e a desejar a derrota de mais vagas metálicas, sob o compasso de um balançar com aroma de horizonte (…)

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