Hoje celebrei um rito, adormecido
algures no tempo de mim. Sim, como estava a dizer, hoje fui andar de comboio.
Sem motivo de relevo. Apenas uma decisão nascida do instante. E, como é sabido,
a duração do instante depende da cor da memória. Àquela hora, o movimento tinha
a luz de meio da manhã. Por outras palavras, espreguiçava-se. Como cheguei à
estação? Já não me lembro. Fui de carro? Apanhei boleia de alguém? Autocarro?
Afinal, para onde ia? Não me recordo. Porque o instante pertencia, no seu todo,
ao comboio. É a memória mais vívida em mim. Paguei o bilhete com moedas, subi
para a plataforma, inspirei aquele singular aroma a carris e viagens – não, não
é um cheiro de poluição! A poluição é um beco, nunca um horizonte. Ainda assim,
muitos quiseram assistir ao meu rito. A plataforma preencheu-se. De repente, os
carris a sibilar, e um apito, de pais legítimos, cantou pelos ares. Aproximo-me
da borda, e olho à minha esquerda. Lá vinha ele, sim, confesso, percebi que
estava feliz pelo reencontro, eu também, como já vos disse, assim que se
imobilizou, no esforço singular de quem foi criado para o movimento, eu entrei
num amplexo sentido, e, como sempre, só assim o rito tinha sentido, nunca podia
ser de outra forma, sentei-me à janela. À minha frente, uma senhora de idade, a
seu lado, um sujeito na casa dos quarenta, e, do meu lado esquerdo, sentou-se
uma adolescente. Subitamente, um ressoar metálico, de novo o apito, um ligeiro
desequilíbrio, e o destino cumpria-se. A nitidez esmorecia nas janelas,
enquanto eu fechava os olhos para sentir, melhor, aquele navegar,
indiscritível, sobre correntes paralelas metálicas. E o ritmo cadenciado, como
pulsação fosse, ou vaga vencida deixada pelo caminho. De repente, uma curva, e
olho as carruagens mais à frente. Sim, pois, a vida. Todos havemos de lá
chegar. Compreendo. A marcha, agora, abranda. O apito (desculpem, a nota
musical, afinal, trata-se do som de um sonho de meninice. Que nome dar aos sons
dos sonhos?), a nitidez ressurge, e a imobilidade torna-se presente. As portas
abrem-se. Há agitação. Uns apressam-se a sair, numa urgência além compreensão.
Outros procuram entrar, numa sofreguidão similar, como se receassem a perda de
um papel sem substituto. Pois, a vida. Quantos saíram? Quantos não olhei? E
estes, agora, nascidos do nada, ali, diante de mim, numa exigência de olhar,
além-verbo, como se uma presença fosse comunicável, e eu comigo, a suspirar por
um apito, e a desejar a derrota de mais vagas metálicas, sob o compasso de um
balançar com aroma de horizonte (…)
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