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domingo, 1 de novembro de 2020

O que murmura uma parede de caliça numa tarde de Verão?


 

Ainda é cedo. Sim, veem-se poucos carros a circular. E os que se vêem denunciam um sono inconcluso. Talvez mais um sonho: sempre interrompido no limiar de um qualquer oásis. Já de mochila às costas, lancheira numa das mãos, sai para a manhã, acompanhado do pai. Corre para o carro, ainda coberto de noite, sob a sentida vigilância paterna. Leva na mochila o pecúlio do último aniversário para, no intervalo maior, a imaginação soltar-se, e então haverá cavalos, cavaleiros, castelos, princesas, e, quem sabe, algo esquecido no travesseiro abandonado. Senta-se no banco de trás, ainda adormecido, daí o frio, e olha o despertar do mundo, o início de um movimento com o sabor do tempo. Bebe, na sede de um viajante recém-chegado, cada rosto, cada esquina, o aroma a café, as cores expostas na mercearia, a luz infantil e risonha da manhã, e o seu olhar, num espanto sincero, transparece a emoção que o habita.

Regressa a casa para almoçar. Leva os livros na mão. Um passo arrastado, que indicia o enfado interior. Será que lhe correu mal a escola? Não será bem isso. Talvez uma outra coisa. Anda cansado. Coube-lhe um papel tão difícil nesta existência: o de actor. Sim, de facto, é esse o seu papel. Aceitou-o sem reservas, sem questionar, como se tratasse de uma inevitabilidade. Triste fado, o seu, pensava, enquanto pontapeava as pedras que se lhe insurgiam no caminho. É tão complexa esta arte de representar! O público exigia-lhe uma personagem confiante, de certezas inabaláveis, mas só o habitam dúvidas. E ele sofre, porque as questões o soterram, mas o público é inflexível. Ainda há aquela colega, onde se demora o seu olhar, sobretudo na aula de Inglês, porque nessa altura o sol nos seus cabelos, nesse ponto deixa de haver tempo, e ele apenas queria comunicar este sentir. Nada mais. Talvez o público seja uma criação sua. Talvez em casa anseiem por um sinal deste sentir. Mas ele permanece em palco, e, desse modo, soma distância.

Sai ao entardecer para as compras. Leva a lista, elaborada pela mulher, no bolso. Já sente o cansaço do palco, mas, ainda assim, não o abandonou. Sente, no fundo, que jamais o abandonará. O passo decidido e fluente. Mas, em certos aspectos, denota-se uma desilusão de artista. Isto acontece quando a indiferença se sobrepõe aos aplausos. Entra no supermercado, tira um carrinho, e começa a preenchê-lo. Hoje habitam-no dúvidas de outra ordem. Mais de cariz matemático. Não menos lancinantes que as anteriores. Já tem com quem partilhar o sentir, se bem que seja apologista de certos recatos. Uma das queixas frequentes da sua mulher. O tempo é um inclemente devorador, e, na sua memória, cada vez mais raramente, lhe surge a imagem, numa longínqua aula de Inglês, de uns cabelos alumiados: essa memória derrota o tempo. A isso chama-se viver.

Após o jantar, sai para passear o cão. E não só. Também lhe facilita a digestão. Ela permanece diante do televisor (grita-lhe um: Vai com cuidado! Lembra-te da tua bacia!), e ele resmunga, na surdez de lábios fechados, por este desvelo das suas fraquezas. Talvez ainda um pouco de si no palco. Sim, há promessas que cumprimos. Talvez as mais oportunas. O cão na ânsia de rua, a puxá-lo, ele a tentar refrear os ímpetos do animal, uma luta diária e repetitiva, por fim, a porta abre-se, saem ambos para a noite, e, aí chegados, cada um, de certa forma, saboreia aquele resquício de liberdade. Ele, cada vez mais afastado dos palcos, compreende aquele instintivo anseio do cão. É apenas a natureza a cumprir-se: o animal com a lonjura. Se tivesse descido há mais tempo do palco, talvez… Sim, talvez, tivesse derrotado mais vezes o tempo. E tivesse aberto mais portas na vida. Agora é tarde. A compreensão só nos bate à porta, após a partida do ilusório. Já não ostenta no olhar um espanto sincero. Apenas um cansaço acumulado por uma teimosia vinda do desconhecido. Já não se revolta. Apenas encolhe os ombros. Compreende, agora, a condução cautelosa do pai. Àquela hora da manhã, talvez, parte dele, ainda povoasse o travesseiro. O pai sempre preferiu a frescura das sombras à inclemência quente da luz. Talvez, por isso, sorrisse com mais facilidade. É curioso: nunca lhe perguntou o porquê de uma mochila tão cheia. 

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