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quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Quando já somos uma fotografia


Terminado o almoço, como se aquilo fosse uma refeição, uma sandes engolida a custo com um refrigerante, sempre com demasiado gás, em pé, a colega, à sua frente, não uma, mas duas sandes, que não lhe interrompem o monólogo, sim, engolia sem cessar a catarse emocional, ela representava, numa performance extasiante, a boa ouvinte, as duas ali, num desses intitulados restaurantes de comer rápido, que se multiplicam numa cadência monótona, como se, de certa forma, esta incessante visão do mesmo nos anunciasse um fim: o da esperança. Não há lugar à novidade no horizonte cansado de hoje. Por melhores palavras: o horizonte é que perdeu o seu lugar; foi destituído pela repetição. E ninguém estranha. Afinal, o que são os dias presentes se não uma cuidada repetição de si mesmos? Ela a disfarçar o gás, a colega prossegue o debitar de angústias, analisa, de forma cuidada, diga-se, o actual momento das três novelas que segue, com beatífica devoção, tudo sob o ritmo inclemente do mastigar, cansada da repetição, daquele mastigar despudorado, de assuntos de ontem (há, cada vez menos, diálogos e assuntos de amanhã), olha para além do vidro, àquela hora, um vai e vem de gente, ouve risos demasiado altos para a sinceridade, observa gestos demasiado teatrais para o assunto, roupas demasiado pensadas para a ocasião, tudo num excesso de ser. Findo o mastigar e o repertório de temáticas, deambulam um pouco por lojas, roupas, mais roupas, e roupas, a colega Esta camisola fica-me mesmo bem! Não achas? Ela a ponderar uma resposta, sim, de certa forma, disfarça-lhe uma cintura em franca expansão, a cor (um discreto azul-escuro) também concorre para esse fim, é comprida, serve de dique àquelas nádegas invernosas, acaba por comprar a camisola, mais uma. Deixam a loja, a colega de saco na mão e sorriso no rosto, ela há muito deixara de sorrir por sacos e roupas, agora a escada rolante, desciam, em sentido contrário sentiu o calor de um olhar, uma familiaridade com a sua geografia, olhos que se encontram, ela a descer, ele a subir, a colega na distância de um saco e de uma camisola azul-escura, barragem de mastigares, naquele instante de um olhar, em que passado se sobrepõe a presente, o mundo imóvel, ambos sabiam, por voz desconhecida, que não ia haver cumprimentos, o passado diante deles, de repente, ela no fim da escada, ele, não, não vai olhar para trás, o regresso ao escritório, pelo caminho, a antevisão, pormenorizada, do serão novelesco, reconciliações, lágrimas, zangas, chegadas ao escritório, a colega a antever o lanche, talvez amanhã compre uma camisola ainda mais escura e um número acima, mas isto de analisar conteúdos tão complexos é de grande desgaste calórico, daí a fome, mas já não a ouve, permanece numa escada imóvel a olhar uma janela para o passado. 

Nessa noite, chegada a casa, abriu caixas de cartão cheias de ontem. À medida que regressava, suspirou, entristeceu-se, sorriu, por fim, encontrou. Estavam numa moldura, de plástico transparente, ligeiramente rachada no canto inferior esquerdo, encostados a uma árvore. Apenas os ombros se tocavam, mas era o bastante para se saberem um. Nenhum deles sorria. Era natural, sabiam o que partilhavam. Era demasiado sério para risos imbecilizados. Uma certeza não origina risos. Talvez pelo seu carácter de permanência. É curioso: apesar da idade, não havia naqueles rostos vislumbre do sonho. Como se soubessem esgotados. Sim, de novo a certeza. A convicção de um sentir ímpar, surgido na manhã da vida. Apenas um ligeiro aproximar de ombros, e eles na certeza de um beijo abraçado além-tempo. Não havia espaço entre eles. A forma como os ombros se tocam. Suspira, de novo. Ela, hoje, não o viu. Apenas o sentir. Diluiu-se escada acima. Abandona a fotografia. Recoloca-a nos despojos de ontem e fecha a caixa. Estava a esvaziar-se, perante aquele instante de tempo. Porque, no fundo, perante uma fotografia, opõem-se duas circunstâncias. Ele a afastar-se, naquele momento da tarde, em direcção contrária. Ela talvez tenha olhado para trás. Ou não. Por fim, arruma a caixa. Encosta-se a uma parede. E pousa uma mão no ombro. Ao de leve. De olhos fechados, mas pensar aberto, sorri, porque, sim, foi verdade.

 

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