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domingo, 26 de setembro de 2021

A mulher-a-dias gorda e o oxigenado


Viviam numa praceta dos subúrbios, não chegaram a casar, em verdade, se lhes perguntassem, não conseguiam explicar o porquê de terem acabado juntos, mas ali estavam, ela era mulher-a-dias, tinha quatro ou cinco casas fixas além da escada do prédio, ele mecânico, um taumaturgo do ramo, quilómetros que se evolavam das viaturas, cilindradas alteradas, matrículas trocadas e outras façanhas relevantes para adicionar em qualquer digno currículo de um profissional das oficinas, habitavam o rés-do-chão esquerdo, antes do jantar costumavam estar à janela, a olhar os vizinhos, a exercitar a maledicência e a inveja, o sujeito tinha uma aparência excêntrica, aquando dos primeiros brancos, prontamente resolveu ocultá-los, todavia, terá trocado a cor e agora ostenta um amarelo que lhe confere um aspecto a meio caminho entre um ovo-mole e um canário, ela uma gorda complexada, o horizonte restringido à esfregona, em dias mais luminosos visualiza o pano-do-pó, diz-se na vizinhança que tem por hábito ouvir atrás das portas, para prontamente usar a informação como achar mais conveniente, é bem possível, afinal aquele é um lar com horizontes de rés-do-chão, a gorda nem os pais conheceu, adoptada por uma mulherzinha com um carácter proporcional à capacidade reprodutora, dizia-se lá pela praceta que tivera uma paixão por um vizinho, embora  já vivesse com o ovo-mole da oficina, porém o vizinho, educadamente, ter-lhe-á apontado na direcção da esfregona, pois, aquele é um lar com horizontes de rés-do-chão, e seria impossível a uma mulherzinha com um carácter proporcional à capacidade reprodutora transmitir quaisquer valores dignos à gorda da esfregona, no rés-do-chão direito vivia uma solteirona com umas saias equivalentes à inteligência, costumava vir do trabalho com um colega, denotava-se-lhes familiaridade à distância, embora à noite saísse com outro, apesar de uma similar proximidade, apenas o escasso comprimento da saia subsistia, equivalente à inteligência sublinhe-se, era próxima da gorda da limpeza, como passava muito do tempo no entra-e-sai, carecia de estar informada sobre a vida na praceta e se alguém comentava as suas andanças, por cima do ovo-mole e da gorda da limpeza, no primeiro-esquerdo, vivia uma fulana que se gabava, para quem quisesse ouvir, do facto de lhe terem oferecido a casa, as conversas balizavam-se entre novelas e novelas, talvez tivesse um pensar ainda mais curto que as saias da vizinha do rés-do-chão direito, à sua frente, no primeiro-direito, vivia um sujeito discreto, mal se dava por ele, quase ninguém sabia da sua proximidade com o ovo-mole, convinha-lhe a discrição, tinha muito que esconder, de facto não era um prédio muito recomendável, quase todos os apartamentos eram alugados a um sujeito com aspecto de chulo, baixo, rasca, de gestos e palavras deselegantes, mantinha a renda uniforme a uns quantos para ser informado, de imediato, de possíveis vendas, neste aspecto, quem melhor que a gorda da limpeza? Era visita frequente da solteirona com as saias equivalentes à inteligência, ninguém sabe do que falavam, apesar da gorda da limpeza tanto insistir na lavagem do patamar nesses dias, certo dia, foi o patrão do ovo-mole que lhe veio bater à porta, era mais velho, com uma omnipresente bolsinha à cintura (seria para guardar trocos? Seria para a garrafa de azeite?), tão típica dos subúrbios, havia negócio no horizonte, qualquer coisa ilícita como é habitual nesses contextos, apenas uma frase ressoou da conversa, emitida pelo patrão (“Lembra-te: para isto dar certo, ninguém pode saber da nossa proximidade! Este negócio vai trazer-nos muitos frutos. Não te esqueças: temos de parecer dois quase estranhos!”), mais quilómetros subtraídos, matrículas trocadas, desmontagem de carros roubados, havia movimento no ar, quem os visse, de longe, a conversar, perto da janela, o patrão – os cabelos já nevados, a omnipresente bolsinha à cintura, tão típica dos subúrbios, nos pés usava um calçado de borracha parecido com umas barbatanas, parece que uma vez escorregara em óleo e a queda fora grande, desde então, optara por um calçado de borracha, dos pés à cabeça nada combinava, previsível, embora o azeiteiro transparecesse confiança no modelito – e o ovo-mole, pensasse a assistir a um comovente diálogo entre pai e filho, não obstante a origem do ovo-mole estar no disfarce dos primeiros nevões, tudo ficou acertado, mais um lucrativo negócio na forja, o ovo-mole correu para o primeiro-direito, havia que inteirar o vizinho-cúmplice do papel a desempenhar, convinha-lhe a discrição, tinha muito que esconder, de facto não era um prédio muito recomendável,  havia quem dissesse que o sujeito com aspecto de chulo, baixo, rasca, de gestos e palavras deselegantes, tinha participação nos negócios da oficina, é possível, assim se cumpre mais um entardecer numa praceta dos subúrbios, no primeiro-esquerdo, ao telefone, uma mulherzinha gaba-se de lhe terem oferecido a casa, do rés-do-chão direito uma tipa sai para a noite com uma saia equivalente à inteligência, no rés-do-chão esquerdo uma gorda complexada enfrasca-se em bolachas, de vez em quando olha a esfregona com a fé de lhe subtrair os quilos a mais, pensa em ligar à mulherzinha com um carácter proporcional à capacidade reprodutora que, de forma comovente, trata por “mamã”,  para desabafar por mais  dia de infortúnio, afinal nem o ovo-mole se lembra da sua existência, ocupado que está em ver se tem algum vestígio de neve sobre a testa.

Pedro de Sá

 

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