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quarta-feira, 23 de junho de 2021

Bela porque simples


 

O que é a melancolia? Talvez seja quando fechamos a porta de nós, corremos os estores, e refugiamo-nos numa qualquer divisão nossa, à espera de um apelo, sempre amanhã, do mundo. Há quanto ela e a melancolia? Talvez viajem juntas desde sempre. No início, ainda criança, ela era sorrisos e curiosidades, contudo, numa tarde, naquela peculiar hora de expirações e despedidas, em que tudo se suspende num relembrar de uma saudade indefinível, sim, como se de outros reinos e de outros mundos, no fundo, cada ocaso não é uma despedida, mas uma saudação à finitude, ela corria pela praia, de balde plástico na mão, ora conchas, ora búzios, assim que os elementos se tangeram no horizonte, e os céus e as águas pintados de despedida, ela imobilizou-se numa estranha tristeza, talvez compreendesse a sombra que derramava pela areia. O pai olhou-a, e intuiu que, naquele preciso instante, ela convidara a melancolia a sentar-se a seu lado. Ele também o fizera, há muito, num crepúsculo de campos e árvores. Sorriu. Sabia que ela não teria uma jornada plana, a dor seria sua vizinha, mas, em contrapartida, teria, em si, um lugar recôndito sempre à espera, de onde contemplaria as arestas terrestres de uma distância segura. O pai estava certo. É verdade, os pais, quando olham os filhos, relembram a voz dos seus. Daí a certeza dos prognósticos. Mas regressemos aquela criança, de balde na mão, ora conchas, ora búzios, que se imobilizou numa estranha tristeza a contemplar o abraço último dos elementos. Aquela estranha tristeza que sempre a acompanharia. Olhava os outros como se lhes desvelasse a dor. Alguns incomodavam-se. Achavam-na estranha. Chegavam a dizer à mãe: Olha que a tua Paulinha anda triste… A miúda tem um olhar esquisito. Mas a mãe também conhecia o olhar que adormecia a seu lado, as vezes que falava sozinha, embora insistisse Estás a ouvir-me? Não achas que tenho razão?, e o marido sempre distante, com uma orfandade no olhar, sempre na distância, nem ligava às preocupações alheias, imbuído numa reconstrução das coisas muito sua, talvez olhasse a mulher de uma divisão de si, lá muito longe, ela, apesar de tudo, preferia que a miúda saísse mais ao seu lado. Mas sabia não. Já pisava os corredores da faculdade, quando, certo dia, anuncia em casa Vou casar-me! Os pais, que nem lhe conheciam namoros, atónitos, entreolharam-se, Mas… Que disparate é esse? A filha, desta vez, com um olhar resoluto. Quem é ele? Esta questão não se pôde silenciar. Perceberam tratar-se de um colega. Os gestos dela rápidos. O olhar sempre no aquém da circunstância. Nem vislumbres, por esta altura, da velha companheira de viagem. Agora ela estava com a pressa, e esse é o problema da paixão: só vê a pousada, e descura a viagem… Daí os acidentes. A mãe ainda se indignou, procurou chamá-la à razão, chegou a promover um jantar para conhecer o rapaz e as suas proveniências, o pai sempre com uma distância segura das coisas, não descurava os entardeceres na varanda, só, a sentir a pulsação do mundo, e a dor que cercava a filha. Certa manhã, depois de uma noite de gritos com a mãe, ela saiu de mala na mão. O pai nem palavra. A mãe num pranto de raiva, percebera, nessa noite, que a filha entregara o melhor de si a um ainda estranho, através de uma lamela de comprimidos destinados a reter efeitos indesejáveis, não, a mãe não era retrógrada, longe disso, afirmava-se, num orgulho desmedido, como uma mulher de esquerda, mas aquela era a sua menina, e do indivíduo nem o nome, além disso, havia um curso a meio, há um tempo para tudo, ele ainda um incógnito, se tivesse boas intenções, já se tinha vindo apresentar, não, isso não podia aceitar, e aquele silêncio gritado do marido… Meses depois, souberam que a filha somara um apelido. Uma noção de derrota, muito particular, desceu sobre eles. Porque, no fundo, apenas assistiram a factos, nunca puderam digladiar. Temeram pelos amanhãs dela. Mas o pai sabia que, em breve, a campainha de casa iria soar. Já se haviam familiarizado com o vazio daquele quarto da casa, as refeições de apenas dois pratos, uma crescente diminuição do número de frases pronunciadas, quando, após o almoço, a campainha soou numa timidez receosa. Entreolharam-se num silêncio compreensivo. O pai avançou para a porta. Ela, sobre o tapete, de mala na mão, derrota no olhar, e desespero nos gestos. Nada se disse. Ele limitou-se a deixá-la entrar e a segurar-lhe a mala. Ela refugiou-se no quarto. A mãe ainda tentou o verbo, mas o pai conteve-a. Com os dias, conheceram, através de gestos e intenções, o novo apelido da filha. Oriundo de uma humilde família de caseiros do interior, com um invulgar sentido de oportunidade, alimentou-lhe possibilidades, por outras palavras, sonhos, ela correu atrás, nunca dele, mas do possível… Como censurá-la? Agora, era uma ruína, nem ocasos, balde, ora conchas, ora búzios, o pai aquém espanto, sim, previu que a dor não se esqueceria de visitá-la, por fim, a seu lado, esfumado o possível, havia um lugar para a melancolia. Ainda lhe resistiu, uma longa estrada de efémeras tentativas de partida, a mãe e os receios das manhãs, uma vez mais a angústia de lamelas e frascos vazios, agora por outros motivos, ainda a internaram, um par de anos nisto, por fim, num dia já distante, ela olhou para o lado, contemplou a face da melancolia, sorriu-lhe, e compreendeu o destino.


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