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sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Carta sem Selo

 


Ele senta-se a seu lado. Ela permanece impassível, a olhar em frente, de vez em quando a cabeça oscila, como se uma idade de meses, mas não, talvez poucos meses para deixar de ter uma idade, e apenas duas datas, ele olha-a com um carinho preocupado, recosta-se no sofá, pega no jornal, ela com a televisão, mas talvez num qualquer outro lugar, o gato insinua-se pela porta da sala, num silêncio suave aproxima-se, salta para o colo dela, mas sempre a televisão, talvez nem isso, uma qualquer outra coisa, o gato, com o movimento, a descair-lhe a colcha do colo, ele pousa o jornal, antes tem o cuidado de o dobrar, levanta-se, apanha a colcha, e, na ternura singular de um gesto, devolve-a ao seu regaço, regressa ao lugar, a televisão a debitar anúncios, há muito que ele desistira daquele rectângulo hipnotizante, costumava dizer-lhe, antes de ela ser uma ilha, Dali nada de bom… Ao menos o jornal forçava-o a decifrar símbolos linguísticos, sempre era um exercício, de vez em quando, vira-se e diz-lhe Lembras-te de quando… por uma notícia, uma fotografia, uma simples alusão, afinal, a memória é uma velha fonte do verbo, mas ela permanece de olhar vítreo de quem não vê, mas se olha. Quando se tornou numa ilha? Demorou o seu tempo. O tempo das águas a cercarem… Ele, de início, aquém deste dilúvio. Tudo começou, apesar da anunciada tempestade, numa manhã de Verão, ao sair do café lá do bairro, ela a ir contra a porta de vidro, ele a censurar-lhe a distracção, apesar do ferimento evidente, a ampará-la até casa, tudo a suceder demasiado depressa, sim, num repente, o curso da vida leva-nos sem lugar a questões, ele a atribuir a apatia posterior ao embate, depois ela regressou, embora as mãos a traíssem, naquela altura já uma península, ele a não entender o avanço irreversível das águas, talvez por ainda circular, apesar da exiguidade do acesso, até ao seu encontro, certo serão, após as notícias, surgiu-lhe o primeiro vislumbre de água no caminho, indignava-se ele com mais um extenuado aumento de qualquer complemento ao existir, olhava-a enquanto suspendia a questão Sabes do que é que estes tipos precisavam?, e, neste preciso instante, algo se fragmentou no seu interior, ao contemplar aquele olhar estranho, a seu lado, de quem não vê, mas se olha. Ainda insistiu Mas, estás a ouvir-me? balbuciado num terror espantado de quem percebe, de repente, a alteração da geografia a seus pés. No final da viagem, ele teve de aprender a nova passada da sua companheira, enquanto, simultaneamente, a guiava até à pousada final. Demorou pouco até, por fim, se formar uma ilha. Da margem em frente, ele passou a gritar para a insularidade: Lembras-te de quando… O vento, apesar do eco, apenas um silêncio cantado de paragens longínquas. Agora, no rectângulo iluminado, a luz por entre folhas, como se quisesse pousar na terra com uma mensagem da distância. As ramagens a dificultar-lhe o caminho, mas compreende-se a obstinação de cada veio luminoso. Como se fosse da sua essência tanger o solo dos homens. Ele a olhá-la, a sentir-lhe a serenidade no rosto face àquelas imagens, talvez… Ele dobra o jornal, levanta-se, o gato deixa-a, num salto mudo, de novo a manta no chão, senta-se a seu lado, olha-a num sorriso, enquanto lhe afasta uma madeixa caída, sim, há sempre ramagens no caminho…

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