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sábado, 29 de abril de 2023

A distância suaviza o olhar

 


Enquanto ele falava, no fundo, aquilo que há muito sabia, afinal, nunca se espera o que se ignora, eu detinha-me numa qualquer outra coisa, algures entre a janela e o seu ombro, um ponto indeterminado onde pudesse aportar uma angústia que pressentia aproximar-se, ele ainda com questões técnicas, pois, para as outras não havia rasgo, ainda as esperei, em certos aspectos, não sei porquê, continuo a olhar o mundo pela janela da minha Escola Primária, mas, por ali, os esquemas dos compêndios sobrepuseram-se às curvas do sentir, terminada a prelecção, sei que o meu rosto impassível, o dele expectante por uma reacção minha, permaneço algures por aquele ponto indeterminado onde pudesse aportar uma angústia que pressentia aproximar-se, neste momento, uma mão pousa, numa demasiada suavidade, sobre a minha, como se por ela um sentir interrogativo, entretanto ele Compreendeu o que tem de fazer? E eu que há muito desistira da compreensão, percebi que esse não é o caminho, opto por uma saída ligeira, encolho os ombros, ele insiste Repare, não é altura para hesitações. Para si, o amanhã vem com um dia de atraso, a mão, que pousara com demasiada suavidade sobre a minha, a emitir uma interrogação entrecortada (Vais cumprir com o tratamento, não vais?), por ali apenas rasgo para as outras questões, das técnicas nem sinal, sentia-lhe os dedos num frémito de montante longínquo, virei o rosto, detive-me nela, reparei que, pela sua face, nem sinais de adeus, pelo contrário, os dedos inquietos persistem naquele jorrar de alma, de novo, a questão (Vais cumprir com o tratamento, não vais?), neste ponto, ele, do outro lado da secretária, aproveitou para demonstrar algum rasgo, Olhe, acho que devia ouvir a sua mulher, a frase soube-me cinzenta, não sei se pela expressão, havia qualquer coisa de mecânico a olhar motores e níveis de óleo, se pela ausência de gestos, os braços ainda não se haviam descruzado desde a nossa chegada, talvez fosse da assepticidade da divisão, apenas uma janela, atrás dele, encostada à parede, do nosso lado direito, uma marquesa, na outra parede, só um armário, três ou quatro pósteres, a omnipresente e tragicamente anacrónica roda dos alimentos, outro de incentivo à vacinação, e já não me recordo dos outros, no entanto, apesar daquele jorrar de alma pelas minhas falanges, das frases ainda suspensas neste rectângulo desumanizado, eu estou com a janela, percebo-lhe um azul geral, apenas riscado, mais abaixo, por um ramo oscilante, nada mais, por ali, nem os sons do mundo encontravam uma porta de entrada, também não era muito larga, a arquitectura, de então, não privilegiava horizontes, contudo, da cadeira onde estava, era o que se me oferecia, talvez fosse o bastante, um azul geral, apenas riscado, mais abaixo, por um ramo oscilante, havia qualquer coisa de comum entre o jorrar de alma pelas minhas falanges e o ramo oscilante que riscava o azul que nos amanhece o olhar, como se, em ambos, uma voz distante nos apelasse à memória, e nós, perdidos numa noite sem manhãs, permanecêssemos numa surdez flagrante face a um ontem que se quer fazer amanhã, ela não se rende (Vais cumprir com o tratamento, não vais?), desta feita num tom mais veemente, à minha frente, os braços persistem cruzados, nesta altura, compreendo que não devo encolher os ombros, não seria de bom-tom, à vista daquele ramo oscilante, optar pela ligeireza, opto por lhe aquietar as falanges, por fim, levanto-me, peço um pouco para pensar, ela, num repente, já de pé, quase ao mesmo tempo que eu, ele estático, com os braços cruzados, observantes, como se debruçados sobre um motor, nisto, reparo que algo me ilumina a palma da mão, talvez um vestígio de alma derramado, a garantir-me que uma manhã sempre se levantará após a noite…

 

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