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quarta-feira, 12 de abril de 2023

Uma pedra, uma palavra

 



Estou a vê-lo, neste momento, a estacionar o carro, no lugar do costume, debaixo do candeeiro, sempre com medo dos roubos, não perdeu aquele hábito de retroceder, pelo menos uma vez, para endireitar o carro, agora sai, pousa a carteira no tejadilho, acho-o mais curvado, não sei porquê, afinal, não passou tanto tempo assim, vasculha o interior com o olhar em busca de uma traição da memória, fecha a porta, guarda a carteira, eu, do outro lado da rua, saio do meu carro, chamo-o, não muito alto, ele naquele seu peculiar passo arrastado a caminho do prédio, talvez não me tenha ouvido, resolvo gritar o seu nome, detém-se, por momentos, receio que rosto vou encontrar, todavia, não abrando a passada, faltavam-me cerca de dois metros, quando ele se vira, não sei porquê, mas opto por me imobilizar, o discurso que havia elaborado, com toda uma sequência frásica, a diluir-se perante aquela face, ou talvez pelo horizonte de passado que o seu olhar derramou, eu… eu… bem, eu queria dizer-lhe tanto em tão pouco, geralmente é o que procuramos, mas cansamo-nos tanto a correr atrás das palavras, que, na maioria das vezes, socorremo-nos de uma ideia cansada ou de um gesto vazio, e aquele olhar num gritante contraste com a curvatura pronunciada de há pouco, uma energia alimentada por uma dor que eu bem sei, foi há uns três anos, caminhávamos para onze de casamento, aquela fase em que sabemos a passagem dos dias pela data, como se entre nós e o mundo sempre uma janela, ele trabalhava, e ainda o faz, numa repartição pública, saía todos os dias à mesma hora, chegava a casa, hora e meia de volta do aquário, nem dava pela minha chegada, sempre depois, era balconista, e ainda sou, com muito orgulho, confesso, numa casa de modas, não há chinês que lhe chegue, via-o absorto com aquelas cores flutuantes, chegou mesmo a baptizá-las, nunca lhes quis saber os nomes, mas, surdo para o meu desinteresse, debitava-mos de qualquer maneira, como as diferenças de águas doce e salgada, nessa altura eu, felizmente, já com a novela, e um bocejo aqui e acolá para o afastar, aos fins-de-semana, os miúdos em casa, os pais dele também, de novo, em mim, aquela sensação de entre nós e o mundo sempre uma janela, ele e o pai, nas tardes de Sábado, de volta daquela caixa de vidro, cheia de água, nunca soube se doce ou salgada, com cores flutuantes, ao Domingo, depois de almoço, iam para o café, ao fundo da rua, porque tinha o canal da bola, durante uns tempos ainda me falou para metermos isso cá em casa, mas rapidamente percebeu que, em certos lares, o mês demora mais a passar, isto só sucede quando o porto está sempre um cabo adiante dos desejos do navegador, enquanto isso, o perfume naftalinoso da  minha sogra em cada divisão cá de casa, a insolência dos miúdos crescia sob o manto indulgente dos avós, e eu perdia-me a olhar as cores flutuantes na caixa de vidro, cheia de água, enquanto suplicava, a um grito de mim, que se silenciasse, confesso que não sei quantos fins-de-semana foram, sei que duraram anos e anos, talvez até à trombose do meu sogro, aí mudámo-nos para o hospital, por esta altura,  certa tarde, entra-me pela loja um antigo colega de escola, reconheci-o de imediato, chegámos a trocar uns beijos atrás do pavilhão, era atrevido com as mãos, também me reconheceu, mudara-se há pouco para o bairro, vinha saber onde eram os correios, ofereci-me para o acompanhar, era uma hora de pouco movimento da tarde, pedi à minha colega que olhasse pela loja, lembro-me de cada palavra e olhar que trocámos, é curioso, parecia reaprender a memória do tempo, quando dei por mim, após uns cafés, telefonemas, estava deitada com ele no colchão, sobre o soalho, no quarto ainda despido de móveis, o estore a meio permitia saber as horas, da primeira vez foi na pausa de almoço, ele continuava atrevido com as mãos, eu gostava, e agradecia, finalmente abria-se a janela que me separava do mundo, a certa altura, não conseguia regressar àquele horizonte de costas debruçadas sobre uma caixa uma caixa de vidro, cheia de água, com cores flutuantes lá dentro, apenas os miúdos choraram a minha crescente ausência, a minha sogra, pelo telefone, ainda me gritou um sinónimo corrente de rameira, de certa forma não me admirei desta sua atitude, cheirava-me a naftalina, mas isto foi na altura, quanto a ele, silêncio, a repartição pública, a saída sempre à mesma hora, as costas dobradas sobre uma caixa de vidro, cheia de água, com cores a mover-se lá dentro, os fins-de-semana agora apenas com a mãezinha, o pai, entretanto, partira, os miúdos quiseram ficar com ele, eu compreendi, ao contrário de mim, ele tinha gestos de lar, já não me lembro em que altura foi, mas percebi, muito a custo, confesso, que as mãos eram atrevidas e demasiado irrequietas, certa tarde, também à hora de almoço, em que era para estar na loja, no colchão, ainda sobre o soalho, no ainda quarto despido de móveis, ele e a vizinha do quarto andar, bem mais nova que eu, acho que fazia unhas numa dessas lojas a atirar para um barroco tardio, não me perceberam, talvez pelos gemidos, saí tímida, para não os interromper, tudo o que vestiu aquela casa veio de mim, dos electrodomésticos aos poucos móveis da sala, ele sempre refugiado na conversa de estar entre projectos, à espera dele, pelo menos uma vez por semana, a senha do centro de emprego, a certa altura, começou a falar mais alto (e como eu estava habituada a silêncios!), entre nós, apenas a memória do colchão, sobre o soalho, no quarto ainda despido de móveis, o estore a meio que permitia saber as horas, as mãos, afinal, sempre pluralmente atrevidas, os beijos, noutra vida, atrás do pavilhão, era pouco, talvez fosse nada, era isto que te queria dizer, enquanto por ti, quem sabe, ainda haja a memória do teu nome escrito, pela minha mão, por pedras à beira-mar, naquela praia do Norte, onde tanto gostas de passar as férias grandes, à espera dos teus primos emigrados em França, achava graça ao trejeito que fazias enquanto soletravas cada sílaba sob a luz marítima de Agosto, se pudéssemos subir, e conversar um pouco, talvez eu te ajude a limpar uma caixa de vidro, cheia de água, enquanto memorizo, para sempre, o nome de cada cor flutuante.

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