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sábado, 22 de abril de 2023

O nosso tempo nunca é o tempo dos outros

 


Perdi o tempo da viagem, talvez por encontrar o outro tempo, enquanto o retrovisor me espelha curvas, copas e mais copas, muito fugidiamente um vulto, debruçado sobre a terra a semear amanhãs, casas, terras, daquelas que apenas sabemos o nome por ali passarmos, numa inevitabilidade da viagem, mas, em verdade, as terras são todas iguais, olhares que se cruzam, corações que se sorriem, caminhos que se desviam, vozes que se emudecem, costas em vez de rostos, e, sempre, no fim de tudo, uma pedra erguida do chão no lugar de sonhos caminhantes, pouco mais há, uma praça, uma fonte, um miradouro, isto é do ver, o antes é pertença do sentir, e é isto que me faz estar ao volante há horas esquecidas, ela, a meu lado, porém, não sei em que tempo ela, continua a falar-me, desde a primeira curva, há demasiadas horas atrás, ainda não cessou, amiúde, uma frase suspende-se Já viste a alegria da tua mãe com um netinho nos braços… E a minha, coitada, com medo de partir deste mundo, sem esse sonho se cumprir… Nem uma observação para a satisfazer, mantinha aquele ar compenetrado, de quem leva a condução muito a sério, afinal, na estrada, e noutros lados, a segurança é um valor vizinho da existência, fascinava-me a facilidade com que encontrava temáticas, eu sempre falei mais comigo, neste momento, em que regresso a uma outra idade, é curioso, há lugares onde somos sempre plurais, tristes são os lugares onde somos o singular, nesses nem uma janela para se abrir, as sombras das árvores espreguiçam-se, como se quisessem abraçar o momento, no céu, aqui e ali, acende-se um fogo longínquo, como se nos relembrasse que a noite caiu para todos, olho-a para lhe dizer que certamente já não chegamos hoje, de vez em quando, perco aquele ar compenetrado, talvez já me demore a sair de mim, as horas demasiadas a pesar sobre os ombros das pálpebras, ela a sugerir aquele hotel onde, também há muito, nós, certa noite, de novo, uma frase suspende-se, Já viste a alegria da tua mãe com um netinho nos braços… E a minha, coitada, com medo de partir deste mundo, sem esse sonho se cumprir… Sem o escudo do ar compenetrado, da estrada levada a sério, encosto naquele lugar, onde, antes, nós, ela contava-me sonhos, eu sempre na serenidade de uma sombra de Verão, compreendia-lhe os anseios e lançava-os para o futuro, de certa forma, ela agradecia-me o gesto, mas nunca se esqueceu de os recolher à medida que caminhamos juntos, daí a partida para aquele Norte distante, onde o Inverno parece devorar as outras estações, lembro-me, na hora da partida, de sussurrar a meus pais, Compreendam, dizemos adeus ao desemprego, meu pai cansado de tantas compreensões, a sua boca numa horizontalidade calada face ao hoje dos seus filhos, minha mãe, a seu lado, procura, através de gestos vazios, incentivar-nos à estrada, e isto já foi há tanto, mas, para mim, continua a ser há tão pouco, uma vez mais, naquele lugar, onde, antes, nós, ela contava-me sonhos, eu sempre na serenidade de uma sombra de Verão, compreendia-lhe os anseios e lançava-os para o futuro, ela insiste em recolher algo do caminho através de uma frase que se suspende, Já viste a alegria da tua mãe com um netinho nos braços… E a minha, coitada, com medo de partir deste mundo, sem esse sonho se cumprir… Das primeiras vezes, relembrei-lhe o Inverno devorador de outras estações, a incerteza com que levávamos o pão à mesa, o meu bolso alargado pelo dicionário, e o dela também, todavia, hoje, nada tenho para lhe relembrar, no meu rosto vislumbro a linha de uma horizontalidade calada, e eu, ao contrário de meu pai, ainda não me cansei de compreender, naquele lugar, onde, antes, nós, ela contava-me sonhos, eu sempre na serenidade de uma sombra de Verão, compreendia-lhe os anseios e lançava-os para o futuro, repousa o rosto no meu ombro, é verdade, há lugares onde somos sempre plurais, ela recolheu futuro e trouxe-mo na forma de um gesto feito desejo, acompanho o seu olhar às alturas, aqui e ali, acende-se um fogo longínquo, como se nos relembrasse que a noite caiu para todos, talvez não, neste momento, caminhamos por sorrisos, sob um sol de Verão, em busca de uma sombra repousada.

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