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domingo, 21 de junho de 2020

Uma pauta musical aberta na madrugada




Naquele instante, sobre o precipício de si, nascera uma decisão. A decisão de um passo. Que importância tinha isso? Afinal, quantos passos damos na vida? E em que direcções? E ele longe de tudo isto. Sob o crescente inebriar da vertigem. Como se a saboreasse. Voltemos à sua decisão. Mais em concreto, à sua génese. Nunca há uma razão. Isto devia ser uma lei de carácter universal. E cansada de tanto se repetir. Há, isso sim, razões. Dito de uma outra forma: a razão é sempre plural. Sim, soa melhor. Neste momento, uma brisa com aroma de sul no seu rosto. Esboça o agradecimento na forma de um sorriso. Desde que ali chegara, mantém-se de olhos fechados. Não por cobardia. Mas para exponenciar o sentir último das coisas. O corpo num balançar ligeiro. Não, não se trata de qualquer vislumbre de nervosismo. Apenas um sinal de que o movimento encontra o pensar. Ele, neste momento, à janela do passado. A paisagem demora a aclarar-se. Puxa mais o estore. Abre, por completo, a janela. Demora a amanhecer. Por fim, surgem uns vestígios de luz. Acompanhados de sons. Coloca a cabeça de fora. Repara na extensa fila que se avoluma para passar sob a janela. À frente, surge um casal. De novo, em si, um sorriso e um ligeiro frémito no braço (sim, ia nascer uma saudação). O casal olha-o, mas, à medida que se aproxima da janela, ele repara numa turva linha riscada sobre os rostos: a de uma genuína tristeza. O casal, agora, afasta-se, talvez fosse uma ilusão, mas pareceu vê-los, com um gesto, a mandá-lo afastar-se da janela. De seguida, passa uma rapariga, com uma boneca debaixo do braço. A boneca com um vestido gasto do brincar, duas tranças rematadas com laçarotes cor-de-rosa. O rosto da rapariga desconhecia a idade vinda dos anos. Assim permanecera. A boneca debaixo do braço, numa candura própria do feminino. Tinha o inato da maternidade em si. Também olhou para cima. Disse-lhe um adeus demorado. Um adeus sem desilusões. Um gesto nascido de quem provou pouco do sal da vida. Talvez tivesse havido, e muitos, sonhos inconclusos naquele rosto de criança. A rapariga afasta-se. Sempre com a boneca debaixo do braço. Ele a olhá-la, mas nem sinal do verbo. O rosto, de novo, para a sua direita. O cortejo continua a avolumar-se. Neste momento, um casal idoso. Trajes de aroma campestre. Olham-no sem recriminações. Com um amor genuíno. Como se fosse um acto da natureza. Por conseguinte, não é questionável. Acontece, e pronto. Se chove em Fevereiro, ninguém questiona o porquê. Bom, talvez seja um pouco assim o amor espontâneo, nas suas diferentes manifestações. Manifesta-se, nada mais. Afinal, é do ser das coisas. A velha levanta, um pouco, a mão, sob a janela. Um gesto de pensa bem, apenas isso, e encerra, nesse erguer de mão, um mundo de significações. E ele: tenho saudades; os velhotes, ao olhar para trás, afinal é breve a passagem por debaixo de um peitoril, tudo a seu tempo, tudo a seu tempo… 

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