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segunda-feira, 1 de junho de 2020

Era uma vez…



Esta história passou-se há três ou quatro décadas, numa aldeia algures no interior deste país. Tudo começou quando ele subiu para cima do tractor, naquele início de tarde estival. Mas, de facto, terá sido aí que tudo começou? Qual o irredutível ponto inicial de uma história? Onde, de facto, foi dado o primeiro passo? Às questões sem resposta apenas silêncio e o inevitável encolher de ombros. Por conseguinte, regressemos a ele, ao seu tractor, e a um calor de olhares baixos. Mas não esquecemos as anteriores questões. Não é nossa pretensão, ao relembrar esta história, sombrear recantos, para que floresçam, numa avidez sedenta, os inevitáveis pontos de vista do interesse. Enquanto a mulher descascava as vagens do jantar, sentada num baixo banco de madeira, e as atirava para uma bacia de plástico, com a cor dos anos, ele cobriu a cabeça com a boina, e saiu. Àquela hora, os filhos, um casal, ela mais velha dois anos, ainda na escola. Por enquanto… Ele, neste ponto, a olhar a terra e a suspirar por um não sei quê... Mas sempre um suspiro. Não se vá dar o caso de… A mulher, neste aspecto, numa sintonia coral, talvez porque o banco cada vez mais baixo, as costas gritantes, os óculos a cair mais do que as vagens, e a filha com umas palavras incompreensíveis, sempre agarrada a livros, que só lhe inculcavam ideias estranhas, havia que pôr um termo a isto, mas a visita da professora, que lhes apelou ao coração para que ela não deixasse a escola, eles ficaram de reflectir, a professora simpática, um pouco sofisticada, notava-se que não era daquelas paragens, talvez o rosto num além estações, e o espelho deles a reflectir, desde sempre, a geada de Dezembro, a chuva de Março e a canícula de Julho… Esta visita foi há uns dias. No fundo, não gostaram. Nunca gostamos dos ventos contrários à nossa rota. A visita ocorreu após a janta de uma quinta-feira. Eles foram cordiais. Afinal, era a Senhora Professora! Todavia, ele não evitou, ao longo da conversa, o acentuar dos sulcos da testa. A mulher, mais democrática, como é próprio do feminino (quem melhor sabe dizer um sim com um sabor a não?), ouviu na complacência de um sorriso. No fundo, sorria para aquela jovem mulher, para o seu entusiasmo inocente, próprio de quem coxeia, afinal, de que serve a teoria, quando tão pouco mundo se conhece? Finda a prelecção da professora, a mãe, ainda com as mãos no regaço, olhou primeiro para o marido, no olhar apenas um silencia-te, por fim, deteve-se no rosto sorridente e entusiasmado da docente, e proferiu, numa clareza inesperada, apenas uma questão: Sim, compreendo… É uma pena ela largar, ainda por cima se tem tantas capacidades, como diz… Mas onde vamos arranjar esse sustento? O sorriso entusiástico a entrar no seu ocaso, um silêncio a cair empurrado pela fatalidade, braços pendentes ao longo do corpo, olhares com o desamparo do soalho, a filha a regressar ao quarto, ouvia atrás da porta, e a compreender que a lucidez materna se estendia além portas…

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