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domingo, 14 de junho de 2020

Deste caminhar entre o céu e a terra





Quando me falam em reféns do álcool, a primeira imagem a erguer-se na memória é a dele, parecia tão concentrado, senhor absoluto dos seus domínios, embora fossem apenas vinte metros quadrados subalugados num café, para mim era o mundo, um quiosque onde, entre jornais aborrecidíssimos para adultos ainda mais enfadonhos, brilhavam as revistas de super-heróis e as cadernetas de cromos, recordo-me ser alto, de facto quando crianças tudo é alto, depois, em adultos, percebemos quão errónea era a nossa perspectiva, neste ponto discordo, há vozes do ontem que, se ouvisse hoje, baixava-me de imediato, nem que tivesse de me ajoelhar, para continuarem a provir do alto, a de minha avó, por exemplo, jamais a voz de minha avó virá da terra, sempre proveio das alturas, mas como dizia, parecia tão concentrado, certa tarde, munido de uma providencial moeda, que possibilitava a aquisição de mais uma carteirinha de cromos, afinal, havia uma caderneta para completar, corro em direcção àquele universo de vinte metros quadrados, o meu espanto quando, em vez dele, parecia tão concentrado, surgiu-me o rosto da filha, definitivamente mais baixa, um pouco acima da minha meninice, porém de idade já folheasse os aborrecidíssimos jornais para adultos ainda mais enfadonhos, tinha um aspecto de roedora, talvez pelos incisivos saídos, era de gestos rápidos e ágeis, ao contrário da parcimoniosa concentração, creio que, nesse momento, compreendi o carácter volátil das coisas, permanente só a inconstância do acontecer, adquiri a ambicionada carteirinha de cromos e regressei, para meu espanto, demorei a abri-la, perdi a vontade durante o necessário, incomodou-me bastante não ter encontrado um sujeito alto, parecia tão concentrado, senhor absoluto dos seus domínios, embora fossem apenas vinte metros quadrados subalugados num café (...)

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