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domingo, 20 de agosto de 2023

Se cá voltar, lembra-me que te perdi…



Debruçava-me para a bacia da roupa, plástica, azul, aqui e ali um pouco desbotada, já me acompanhava há uns anos (nesse entretanto, de quanta roupa não me despedi?), uma das pegas, talvez a do lado direito, não sei bem, ameaçava ceder, tantas estações já carregou, porém, o Verão sempre mais leve, como dizia, debruçava-me para a bacia, um ardor pela zona lombar, desde há uns tempos, sempre que me dobrava, do ardor à dor nem era preciso reerguer-me, tinha de marcar uma consulta, talvez a conseguisse para daqui a três meses, sabia que, depois, exames, mais exames, mostrar os resultados, nova consulta, outros três meses, entretanto, já passou mais de meio ano, e a dor a agudizar-se, se visse uma radiografia das minhas costas, sabia o que esperar, uma curva como a dos mapas, a consternação a crescer-me, a autocomiseração também, teria de me despedir da bacia da roupa, plástica, azul, aqui e ali um pouco desbotada, e o meu marido que nunca quis conhecer a bacia da roupa, não o podia censurar, também sofria das costas, sempre com histórias intermináveis dos bicos de papagaio, no início, ainda pensei que tivesse algum fascínio por aves exóticas, só depois é que lá cheguei, se bem que, quando fechamos, como deve ser, a porta do quarto, o raio do miúdo não pára quieto, nunca sabemos quando está a dormir de facto, não lhe noto quaisquer resquícios de aves exóticas, pelo contrário, revela um apetite bastante felino, se bem que, nos últimos tempos, fechemos a porta cada vez menos, os dias passam a correr, e depois há a bola, e mais bola, e programas intermináveis a falar, claro, de bola, ele não perde um, coitado, gosta de estar actualizado, não o posso censurar, sempre que o clube dele joga, é vê-lo num alvoroço, ora ri, como logo a seguir pragueja, os braços do sofá, coitados, quantos murros têm para contar, insulta, berra, bate os pés, é curioso, nunca o vi zangar-se com um dos braços do sofá pela crescente anorexia do ordenado, nada, nessas alturas, aporta em casa com um ar de cão sofredor, que carece de abrigo e compreensão, logo eu desarmada, a correr em seu auxílio, aí sou eu que praguejo, os braços do sofá, coitados, quantos murros têm para contar, insulto, berro, bato os pés, às injustiças do mundo, neste caso, sob a forma dos seus patrões somíticos e gananciosos, ele com a cabeça no meu peito, a anuir às minhas imprecações, quando a voz se me cansa, opto por lhe passar as mãos pelo cabelo e embalá-lo para longe de braços de sofá e de recibos anorécticos, apesar de tudo isto, lá vamos somando dias, não tenho muito por onde me queixar, não me falta com o essencial, o que já é bom, também não gosta por aí além de bebida, aqui só posso levantar os braços aos céus, o vizinho do terceiro andar, por exemplo, pelo menos duas a três vezes por semana, em cantoria escada acima, demora mais de uma hora a subir os três andares, a Dona Augusta, coitada, a máscara da vergonha, nos dias seguintes até nos evita encontrar, é compreensível, logo ela, uma senhora tão bem-posta, com um porte altivo, quem diria, sempre um mundo entre uma porta que se fecha e quando se abre, é a vida, diriam alguns, também já lhe ouvi gritos, coitada da Dona Augusta, talvez nesses momentos se dilua um pouco daquele porte altivo e acabe por ficar menos bem-posta, e possível, uma vez apanhei o meu marido, da janela da cozinha, andava eu com a bacia da roupa, plástica, azul, aqui e ali um pouco desbotada, já me acompanha há uns anos, pela varanda, a acompanhar pormenorizadamente cada passo da Dona Augusta, lá em baixo, no passeio, percebi-lhe, no olhar, o apreço por portes altivos, e eu, debruçada para a bacia, logo um ardor pela zona lombar, desde há uns tempos, sempre que me dobrava, do ardor à dor nem era preciso reerguer-me, a não apreciar nada aqueles olhos gulosos, assim que me percebeu, foi logo para dentro, ao menos, tinha destas coisas, e vê-lo a brincar com o filho, parecem duas crianças, no fundo, são-no, ainda nos faltam mais de quarenta anos para pagar a casa, hão-de passar, um dia de cada vez, já dizia a minha saudosa mãe, de facto, não tenho muito de que me queixar, ele nem quis que eu trabalhasse, ainda argumentei, mas foi taxativo, O que ias ganhar, nem dava para pagar uma creche, não sei bem porquê, optei por não lhe responder dessa vez, afinal, se ainda não tinha emprego, como é que podia falar dos meus proventos, enfim, uma daquelas coisas que mais vale fingir que não vivemos, o problema, com a idade, é que essas coisas nos começam a exigir cada vez mais espaço, pois, a ilusão do esquecer, apesar de tudo, repito, não tenho muito de que me queixar, ele evita os turnos da noite, o que, para mim, é um descanso, mesmo de dia, já se sabe, basta abrir os jornais, sempre que ouço a notícia de um assalto a um taxista, quase deixo cair a bacia da roupa, plástica, azul, aqui e ali um pouco desbotada, não, por aqui, está tudo bem, se me perguntassem se ele foi a minha primeira escolha, como não sou mentirosa, teria que dizer a verdade, mas o que lá vai, lá vai, tenho é de cuidar das minhas costas, não vá ele chegar, quem sabe se com um apetite felino, e se o miúdo na rua a jogar à bola, nem haver a preocupação de se fechar uma porta como deve ser. 

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