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domingo, 13 de março de 2022

Não foi sorte, foi destino


 

Uma das questões essenciais, deste caminhar sob o céu, é: O que, de facto, conquistámos e o que nos foi oferecido? Quantos já reflectiram nisto? Esta reflexão carece de duas premissas: maturidade e humildade. Em verdade, não abundam assim tanto. Mas perguntar-se-á o leitor: porquê toda esta conversa? Há uns tempos, num final de tarde, derramavam-se-me os cabelos sob o compasso de uma máquina, facto que, cada vez mais, me alivia, para peso já me basta o da alma, o silêncio, por norma, é confrangedor, parece desvelar a nudez de quem somos, torna-se uma quase obscenidade, assim sendo, urge preenchê-lo, liquidá-lo, atirá-lo para bem longe, por conseguinte, um lugar onde se vai tratar do tecto das ideias não convém, de todo, ser povoado de silêncios, das duas últimas vezes fui atendido por aquele peculiar português que, em pequenino, só ouvia nas telenovelas que a minha mãe avidamente consumia, agora, em adulto, parece que as novelas saltaram do écran e me cercaram, enfim, como dizia, derramavam-se-me cabelos sob o compasso de uma máquina, e, por acaso, fui eu em urgências de preencher os vazios do silêncio, nem sei bem porquê, talvez, nesse final de tarde, o compasso da máquina gritasse em demasia, algo em mim implorava que levasse o pensar para bem longe dali,  porém, nunca fui de verbo fácil com estranhos, escudo-me sempre em lugares-comuns e pouco mais, ainda hoje não sei se por timidez, se por simplesmente não gostar de me dar a conhecer, aqui chegado, creio que irei embora sem me ter conhecido por completo,  poucas dúvidas tenho quanto a isto,  uma das frases mais engraçadas que já ouvi, ou talvez seja a mais imbecil, é quando me dizem: “Conheço-te tão bem!” Como é possível dizerem-me: “Conheço-te tão bem!” Se eu tenho a certeza de que irei embora sem me ter conhecido por completo, um pouco como aquelas casas com arrecadação, embora tão cheia de trastes que nem se ousa passar à porta, e para quê? Ninguém, de facto, tenciona arrumá-la, talvez com receio de por ali se perder ou de encontrar objectos que levantem memórias de chuva, pois, não sei, essa porta está fechada, e, de facto, não tenciono abri-la, aprendi há muito que a questão é o alimento do diálogo, a certa altura, à minha volta, a acompanhar o compasso da máquina, o sujeito, naquele peculiar português com aroma a trópicos, contava como ali chegara, as vicissitudes, as coincidências, eu, que nunca fui de verbo fácil com estranhos, escudo-me sempre em lugares-comuns e pouco mais, ainda hoje não sei se por timidez, se por simplesmente não gostar de me dar a conhecer, respondo-lhe “Isso é que foi sorte!”, um lugar-comum, uma observação insossa[T1] , ao alcance de qualquer um, corrente, vulgar, rasteira (“Isso é que foi sorte!”), prontamente ele responde: “Não foi sorte, foi destino!”, ainda sentado, rodeado dos despojos que, ainda há pouco, me coroavam o tecto das ideias, recolho-me num espanto por aquela frase (“Não foi sorte, foi destino!”), há lugares, debaixo deste céu, onde, ainda não percebi porquê, não esperamos grandes sentenças, o desvelar da Verdade, como se tal fosse apenas possível entre muralhas de livros, olhei à minha volta, talvez procurasse ver se mais alguém partilhava do meu espanto por aquela súbita evidência, nada, o mundo prosseguia na sua indiferente marcha, houvesse um nascimento ou um funeral, o céu só se alteraria para quem o olhasse, eu ruminava (“Não foi sorte, foi destino!”), claro que soube disfarçar, ele não se apercebeu do efeito que a sua frase me suscitou, ele estava certo (“Não foi sorte, foi destino!”), como estava certo, creio que desconhece, quase por inteiro, as premissas da teoria “Determinista”, também de pouco lhe adianta num contexto de tesouras e laca, entretanto, percebo-lhe um insistente olhar, pois, tinha razão, aguardava pela minha resposta, com um  sorriso lá lhe  respondo: “Tem toda a razão! Não duvide!”; conheci muitos “doutos” ao longo da vida, na sua maioria doutos de pacotilha, mas também me cruzei com muitos aspirantes a doutos que nem da cave haviam saído, contudo, vincavam acerrimamente a sua posição de doutos deixando o epíteto de aspirante bem caído ao longe, a vida académica é um permanente desfilar de figuras assim, infelizmente a profissional não lhe fica aquém, todavia, há muito aprendi a ser lesto em virar-costas quando ouço: “Eu é que sei…” ou “Tenho a certeza…”; logo eu que, cedo aprendi, o desdenhoso gozo da vida em nos trocar sonhos por terrores, como se a realidade mudasse num despercebido pestanejar, mas é um facto que muda, e num lugar onde se vai tratar do tecto das ideias, a meio de uma tarde, ouço alguém dizer, com uma genuína humildade e simultaneamente resignação, também com um laivo de alegria: “Não foi sorte, foi destino!”, sem vislumbres de arrogância, prepotência, falsa humildade, teatralização estéril, vernáculo arreigado, nada, tudo fluiu com uma naturalidade desarmante, porém, uma certeza nasceu-me, e dessa não me demovo: “Não foi sorte, foi destino” alguém relembrar-me estas singularidades da existência há tanto em mim adormecidas, doravante serei ainda mais lesto a virar-costas quando me chegar aos ouvidos “Eu é que sei…” ou “Tenho a certeza…”

Pedro de Sá

(13/03/22)


 [T1]

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