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segunda-feira, 28 de março de 2022

As coisas são sempre plurais


 

Vestiu o casaco, hoje de uma forma mais lenta, enquanto olhava o chapéu, sim, aquele com aroma a outras paragens, demasiado longínquas, mas não para o seu pensar, que as alcançava apenas com um passo, a insistência de um pedido pelos joelhos, por fim, ele a ceder, coloca o chapéu, abre a porta, logo uma corrida, à sua frente, até ao portão, aí, mais saltos, ecos, pelos ares, de um pedido, que ele conhece no suficiente do tempo, já lá vão oito anos, foi um mês depois de ela o deixar, fê-lo sem estrépito, nem acusações houve, nada, apenas uma constatação, dois meses antes, Somos tão diferentes, qualquer dia não teremos nada para dizer um ao outro, ele em hesitações para a frase, a olhar o chapéu, em repouso à entrada de casa, sempre pendurado no possível de algo próximo da porta, ela ainda, Não achas que tenho razão? Sabes, vivemos no mesmo mundo, mas em tempos diferentes…, a atenção dele a viajar com o chapéu, logo as pernas a perderem anos, o olhar a vestir-se de alma, a tropeçar num sorriso para o amanhã, afinal, sempre ali estivera, caído a seus pés (e há quanto o julgava perdido?), certa tarde, depois de entrar e fechar a porta, um sentir de abandono na expressão das coisas lá por casa, como se o eco de um choro tímido, após pousar o chapéu, o passo mais envergonhado, o olhar na compreensão do vazio, nem sorrisos de ontem para trocos na algibeira agora vazia, apesar do objecto ali depositado, quase numa obscenidade gritada, segue adiante, já costas para a chave dela, largada na mesa de entrada, testemunho de uma partida (ou de um abandono?), percorre as escassas divisões da casa, enquanto se agarra a frases flutuantes, Não, não somos assim tão diferentes, temos tanto para dizer um ao outro; Sim, tens razão; Espera mais um pouco, estou quase a chegar, para nos encontrarmos no mesmo tempo de um lugar deste mundo…, mas apenas observa subtracções, nos armários, em prateleiras, num indizível qualquer que demora o seu tempo a iluminar, por fim, desde a entrada, da obscenidade daquela chave, a luz, tacteante, a fazê-lo compreender onde estava a maior subtracção, isto ainda demorou três voltas à casa, e, então sim, sentou-se, é curioso, quando somos subtraídos adquirimos um caminhar mais pesado, há lógicas no mundo que nunca hão-de bater à porta do sentir, nessa noite o telefone, antes de lhe chegar, uma cadeira e a esquina de um móvel como escolhos, mas ainda a tempo de lhe ouvir a voz, Como estás? (…) Eu guardo um enorme carinho por ti. Espero que perdure… E que ao menos amigos, ele em silêncio, afinal, ela falou por dois, ele, que sempre gostou de caminhar a ouvir a sua respiração, bastava-se, mas, certa noite, um amigo condoído por aquele chapéu, nem lhe percebia a lonjura, a insistir para que fosse até lá casa, ele em recusas educadas, por fim, a ceder, a conversa de serão decorreu animada, não se percebiam as dissonâncias de tempos e lugares, sempre o filtro das palavras diante da novidade de um rosto, ela também numa carência de náufraga, sim, deixara para trás a ruína de um lar, felizmente sem tempo para filhos, apenas a memória de uma pressa demasiada, a engraçar com aquele anacronismo de modos e palavras, é compreensível que refreie o passo quem fora vítima da velocidade, mas tudo tem um tempo, e, assim, ela fez-se, de novo, à estrada, quando regressou a si, já ela lhe questionava o chapéu, no interior da sua casa, uma questão que os devolveu à sua circunstância, neste caso, ao seu tempo, e como era distinto, quem compreende um regresso dificilmente procura partir, ela por ali ficou até sarar as feridas, assim que refeita, partiu, ele, no entanto, aprendera a ouvir e a apreciar uma respiração a seu lado, teve, durante uns tempos, de percorrer um doloroso trilho da existência, a despedir-se dos saberes, mas ficou-lhe, pelo menos, o gosto de caminhar sob a noite do mundo, sempre com o seu chapéu, de outras paragens, e se ninguém respira a seu lado, ao menos que respire à frente, e que o aguarde sem vislumbres de partidas, sem sublinhar anacronismos, por fim, o mais importante, passados oito anos, nunca questionou o seu chapéu.


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