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quarta-feira, 2 de março de 2022

ANOITECEU


Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.

                                                                                                                        Mateus (5, 7)

 

Creio que lemos para não nos sentirmos sós.

(Anónimo)

 

O passado nunca fica onde o deixámos.

(Anónimo)




ÍNDICE

 

 

 

 

 

AMANHECER

ENTARDECER

ANOITECEU

 

 

 

 

 

 

 

AMANHECER

 

 


 Aquilo que muitos chamam de decisões, em verdade, é caminhar pela única via possível, não há qualquer deliberação, tudo flui na naturalidade do acontecer, num momento da minha vida, muitos enalteceram (em surdina, claro, por estes lados o elogio sempre foi deveras inflaccionado) um gesto meu, como se, após uma longuíssima reflexão, tivesse optado por uma compaixão superior, nada disso, repito, não houve qualquer escolha, uma vez que, para mim, não havia outras possibilidades. Mas não me parece que esteja a começar bem a minha narrativa, esqueci-me do essencial: abrir a porta, proceder às apresentações e convidar o leitor a entrar, assim começa toda a história, por outras palavras “Era uma vez…” Quando olho para trás, sobretudo para a minha infância, só me ocorre uma palavra: silêncio. As refeições eram ocasiões lancinantes para mim, meus pais e irmão (cinco anos mais velho) num mutismo contrastante com os esgares e roncos nascidos do mastigar (acto tão primitivo, rudimentar, por muito que se maquilhe com mesas pomposas, etiquetas de pacotilha, talheres dourados, guardanapos de seda, copos de cristal), e uma questão sentava-se-me no pensar: em que circunstância, numa vida partilhada, morrem as palavras? Com o tempo, percebi o crescente silêncio às refeições, e não só, não me lembro, confesso, de um gesto de ternura entre meus pais, uma brincadeira, nunca comentei isto com o meu irmão, os cinco anos de diferença, nas duas primeiras décadas de vida, tornam-nos habitantes de continentes distintos, além, claro, da diferença de género, creio que ele não se apercebia destas singularidades, parecia caminhar numa realidade muito sua, imune às arestas da vida, fascinava-me essa sua distância das coisas, como se tudo lhe fosse indiferente, se as refeições fossem densamente povoadas por frases ininterruptas, em vez daquele asfixiante silêncio, a sua expressão seria a mesma, não duvido, hoje somos dois estranhos, cumprimentamo-nos quando nos vemos, apenas e só, como faço com os vizinhos, embora veja estes com mais frequência, não sei em que momento, naquela casa, cada um de nós se virou para si mesmo, neste aspecto, considero-me a mais inocente, uma vez que, como última a chegar, deparei-me com um cenário há muito construído, apenas me limitei a adaptar ao decurso da narrativa, segundo dizem, cheguei por acidente, já não era esperada, dito de outra forma, desejada, não é simpático ouvirmos isto, como se estivéssemos numa festa sem convite, mas, volta e meia, quando olhava, talvez mais demoradamente, os grisalhos de minha mãe, essa frase ecoava (…”cheguei por acidente, já não era esperada…”), vinda, por vezes, de fonte incógnita, afinal, era na minha memória que ressurgia (…”cheguei por acidente, já não era esperada…”), se procurar por meu irmão nesses tempos, mais tarde também, apenas capas de livros a ocultar-lhe o rosto, mesmo à mesa fazia-se acompanhar pela leitura de então, como se de uma bengala, até aos dez anos achava normal, depois começaram a nascer-me questões numa sucessão quase vertiginosa, embora todas partissem e regressassem ao silêncio. Foi pouco antes da faculdade, estaria a terminar o liceu, quando soube, pela voz de minha mãe, da partida, definitiva, de meu pai, foi antes de jantar, estava no quarto com os afazeres escolares, ouço um ligeiro toque na porta a anunciar que ia entrar, ergo o rosto da secretária para lá, ficava do lado direito, e procuro a voz (afinal, ali imperava o silêncio) para “Sim, entra…”, reticente lá abriu a porta, entrou, como se coxeasse, percebi-lhe, de imediato, uma acentuada sombra pelo rosto, nunca tal sucedera, denotava-se-lhe nos passos um quase esforço por equilíbrio, até chegar à minha cama e aí se sentar, de mãos pousadas nos joelhos olhou-me e “Filha, temos de conversar…”, não sei porquê, soube cada palavra que ia proferir, “O teu pai… Bom, o teu pai vai sair de casa…”, sabia-lhe as palavras, porém, assim que se sustiveram, entre nós, amplificadas pelo silêncio entardecido da casa, um sentir de incredulidade nasceu-me, pensei, tão estranho, tão estranho, saber-lhe as palavras e agora incrédula para as mesmas, olhei-a, sentada na minha cama, ainda de mãos nos joelhos, “Mas porquê?”, olhou em volta como se procurasse palavras que lhe ordenassem o sentir, após o necessário, uma vez mais levantou o rosto “Sabes, já não tínhamos conversa. Chega uma altura, na vida de todos os casais, mais cedo ou mais tarde, que isso sucede. Nessa circunstância, ou se procura o mundo do outro, para o verbo continuar a servir de ponte, ou o silêncio tornar-se-á ensurdecedor. Creio que, no nosso caso, foi por aqui… Éramos dois estranhos a partilhar leito e tecto. Apenas isso. Talvez ainda tenhamos ido a tempo de salvar qualquer coisa…”, espantou-me o tom analítico das suas palavras, nem dor, saudade, mágoa, nada, apenas procurava iluminar factos como se não fosse uma das protagonistas, intuí-lhe somente cansaço, indubitavelmente, a postura indiciava isso mesmo, a necessidade de se sentar, o desalento das mãos nos joelhos, parecia ter completado uma longa e dolorosa jornada, “Mas continuará a visitar e a acompanhar-vos, claro. Em nada vos faltará!”, enquanto falava, compreendi, de súbito, que não tinha memória de uma conversa, foi mais tarde, tão mais tarde, que alguém se vira para mim e diz “Devias escrever um livro!”, no momento foi como se abrissem uma janela desconhecida, embora frequentasse a casa há muito, uma perspectiva nova de um cenário cansado, “Devias escrever um livro!”, quanta dor se iria derramar sobre a brancura das páginas, ficariam indelevelmente maculadas, e que teria eu para contar assim de tão interessante? Como disse, a sugestão chegou-me da parte de uma colega de trabalho, era hora de regresso, falávamos de trivialidades, ela baixa-se pela carteira, ergue-se, enquanto ajeita a alça, olha-me diferente e diz-me (“Devias escrever um livro!”), assim, do nada, o espanto pela frase descontextualizada levou-me algum tempo a compreendê-la na sua plenitude, como se tal fosse possível, como desvelar a intenção do outro? O porquê de subitamente ser lançada tal sugestão? Entre cabides, malas, casacos, na hora de regresso ao lar. Lar? O que é isso de lar? Quando um prenúncio de regresso pelo mundo anoitecido, um sentir de orfandade aloja-se-me no sentir, ou talvez nunca dali tenha partido, como se fosse um conceito que ignorasse (e não ignoro? Lar? O que é isso de lar?), em verdade, nunca houve, debaixo deste céu, um lugar onde me sentisse em casa, onde regressar me apaziguasse o pensamento, vejo, agora, pressa à minha volta, pelas ruas percebemos o turvar dos céus, enquanto os candeeiros procuram contrariar, alumiando o possível, a ordem natural do acontecer, ouvia, ainda há pouco, sentada à secretária, “Vais ficar a fazer serão? Não vais para casa?” ou “Vais ficar a fazer serão? Então, até amanhã…”, malas quase arrancadas do chão, luzes apagadas com ferocidade, casacos vestidos sem olhar (não sei porquê, mas afigurou-se-me o oposto, em tempo e cerimónia, do gesto matinal), desarmoniosos passos por uma ansiada fuga (para onde?), tudo ao meu redor numa dessintonia veloz, e uma constância gritada (“Despacha-te! Despacha-te! Despacha-te!”) de uns para os outros, restavam dois ou três, não às secretárias, talvez olhassem o vazio de existir por mais um dia, quando resolvo levantar-me (“Não, não vou ficar a fazer serão…”), vou até ao cabide retirar o casaco, aí ouço, na espantada lonjura de mim, aquela frase, regresso à secretária pela mala, por fim, saio, creio que ainda ficara um, olhava as ruas anoitecidas pela janela, talvez espelhassem o desalento da sua alma, porém, o vazio da minha já me preenchia o bastante, desço até à garagem do edifício, aí chegada, sempre um esforço para relembrar onde o carro, como me pesa o pensar a esta hora, no fundo, pesa-me mais o existir que o pensar, ou talvez o inexistir, afinal, os passos contrariam-me os desejos, apesar de tudo, agrada-me a sensação de estar sentada atrás de um volante, a ilusão de um leme, apenas isso, a ilusão, há muito que a vida me ensinara algo tão fundamental: a haver um Inferno, não será um lugar assim tão longe do aqui, talvez pelo facto de a vida tanto gostar de se rir da nossa vontade, porém, o facto de, agora, neste exíguo espaço, na distância da minha realidade (as músicas sucedem-se fazendo-me caminhar pelas paisagens de mim, mostrando-me quantas já fui nesta vida, talvez não tantas assim, apenas os horizontes fossem mudando…), e na proximidade da dos outros, as ruas, a esta hora, povoadas de viaturas rumo a um sentido inequívoco (Lar? O que é isso de lar?), não sei porquê, a imagem daquele colega (olhava as ruas anoitecidas pela janela, talvez espelhassem o desalento da sua alma) regressa-me, será que ainda por lá continua? Deixo-me ir neste indolente cortejo, volta e meia um buzinar enraivecido, no fundo, mais um grito desesperado para ser salvo desta absurda corrente, resta-me a música, e quem eu fui, neste momento, ecoa uma que me relembra quando olhava o mundo com esperança (meu Deus! De facto, já fui tantas!), leva-me para amanheceres, uma confiança indefectível nos meus passos, hoje, que ironia, à minha volta apenas uma noite imensa e gritos desesperados (na distância da minha realidade e na proximidade da dos outros), ainda tenho, pelo menos, mais quarenta minutos neste pára e arranca até casa, amanhã tudo se repetirá, creio que sem um único desvio, e compreendo-me uma derrotada, mais uma vencida a quem a existência, na sua incessante ferocidade, empalideceu os sonhos, regresso-me com outra sonoridade, levanta-me memórias com aroma a ilusão, às vezes, confesso, questiono a sua veracidade, tal a perfeição desse acontecer, eu também outra, nessa fase os sonhos já se tinham turvado, porém, ao som destes acordes materializavam-se perante a minha incredulidade, daí a minha apatia, quando a venço, já a vida, na sua incessante ferocidade, tudo destruía, por aqui viajo, de longínquos amanheceres até ao arruinar de sonhos, sem sair deste exíguo espaço, e a lancinante dor de saber que amanhã tudo se repetirá, creio que sem um único desvio, agora, à minha frente, a ponte, regressa-me uma ideia com a idade do meu pensar, dizer adeus ao aqui, muitos apelidam de desistência, cobardia, fuga, nada disso, apenas a estupidez encontra uma voz, sempre considerei um acto de profunda coragem, de arrojo, um passo sem regresso para o desconhecido, no fundo, para a Verdade, e nunca será de desistência, mas sim de afirmação, porque só nos opomos ao Ser, logo, virar costas à vida é simultaneamente um acto de exaltação, e esta noite afigura-se-me a ideal para… Nem por acaso, neste instante, estou a meio da ponte, uma das melodias que elegi para o adeus ao aqui pelo ar, baixo o vidro, a noite nem está fria, estou tão afundada na minha dor que nem me vou aperceber, uma dor que me acompanhou cada respirar, tão poucas vezes se aquietou, vou regressar-me na sua companhia, saber-lhe a génese, talvez por lá se esqueça de mim e eu relembre o conceito de lar, continuo parada no meio da ponte, abro a porta do carro, chegou a hora do regresso, de repente compreendo-me uma privilegiada, ao menos tenho a possibilidade de escolher a hora, são vinte e trinta e três, passo o gradeamento para o outro lado, ouço gritos e múltiplas buzinadelas ao longe, tão ao longe, estou tão afundada na minha dor que nem me apercebo de uma mão estendida em súplica para me ater ao aqui, é tarde, estou cansada, muito cansada, só me resta um passo para cumprir o regresso. Mas se tudo fosse uma outra coisa… Se em vez de passar o gradeamento, a meio da ponte, eu permanecesse sentada atrás de um volante, a ilusão de um leme, e começasse a gizar o livro que me sugeriram escrever, mas eu nunca escrevi nada, sem ser, claro, o que a escolaridade me obrigou e menoridades quotidianas, como, de repente, posso alçar-me a tal empreitada (“Devias escrever um livro!”)? Como fazê-lo? O que tenho para contar? Eu nunca gostei de ler, ao contrário de meu irmão, o rosto sempre velado pela capa de um livro, achava perda de tempo, preferia viver, e os livros obrigatórios na escola, aborrecidíssimos, só me faziam bocejar, neste ponto, não me passou despercebido que as capas a velar o rosto de meu irmão não provinham de programas escolares, porém, a ideia enraizou-se-me, e germinou, não sei porquê, quase como se um imperativo de outra ordem, agora que reflicto nisto, eu nem ousei responder-lhe (“Devias escrever um livro!”), como se há muito a esperasse, um velho e poeirento espelho num subterrâneo de mim que não visitara e onde, de repente, me descubro, mas vou deixar-me de delongas, tenho algo em mim para verter numa folha de papel, porém, que história vou contar? A do silêncio da minha família? Os ecos dos mastigares às refeições? Quando olhamos o passado, num repente, por norma levantam-se dois ou três momentos de felicidade, pouco mais, reporto-me, claro, a espíritos elevados, que compreendem a felicidade como um estado de plenitude, os tolos conseguiam enumerar bem mais, mas não é com esses que vou ocupar a minha narrativa, curiosamente, se fizermos um balanço do caminho percorrido, procuramos luz, quase como uma justificação ao facto de aqui estarmos (como se nos disséssemos “Sim, valeu a pena”), pelo contrário, se falarmos tristeza, erguer-se-ão bem mais que dois ou três, há quem olhe para trás e vislumbre apenas uma longa noite, por aqui me situo, porém, há uma imagem que me povoa, uma indesejada inquilina que se alojou na alma, minha mãe sentada, de mãos nos joelhos, na minha cama, o paradigma da prostração, a informar-me da partida de meu pai (“Sabes, já não tínhamos conversa. Chega uma altura, na vida de todos os casais, mais cedo ou mais tarde, que isso sucede. Nessa circunstância, ou se procura o mundo do outro, para o verbo continuar a servir de ponte, ou o silêncio tornar-se-á ensurdecedor. Creio que, no nosso caso, foi por aqui…”), como tinha razão, eu, na altura, aquém de tais desígnios, limitei-me a ouvi-la, de onde estava, à secretária, mas lembro-me bem, cresceu-me uma onda de compaixão, quis abraçá-la, confortá-la, secar-lhe as verticais linhas salgadas que lhe desciam pelo rosto, contudo, permaneci imóvel, vencida pelo pudor, creio que nem a expressão consegui alterar, afinal, era habitante de um lar de silêncios, desde ali, pouco se alterou na rotina lá de casa, apenas denotei ainda menos ecos, afinal os passos de meu pai foram noutra direcção, aqui chegados, cresceu-me uma certeza: éramos de facto estranhos a partilhar um tecto! Como pôde, num repente da vida, deixar-nos, sem sequer uma palavra? Em verdade, doeu-me mais a ausência de um “adeus”, do que propriamente a sua partida. A facilidade com que se vira costas é proporcional ao carácter! Da parte de meu irmão, apenas registei, creio, a mudança da capa que lhe velava o rosto, pouco mais, minha mãe deve tê-lo informado igualmente no seu quarto, não raras vezes, enquanto arrumava a louça, apetecia-me partir um, dois ou mais pratos, para haver um pouco de barulho entre aquela paredes, no fundo, para me sentir viva, desconheço o porquê daquele naufrágio, ou talvez não, neste particular, as palavras daquela tarde, prostrada, com as mãos nos joelhos, espelharam o acontecer, conheceram-se no interior, eram de aldeias próximas, um percurso natural (em verdade, não sei o que é), o namoro, casamento, o apelo da cidade, porém, foi nele que mais ecoou, ela sempre reticente, os pais, a carência de horizontes, rostos conhecidos, acabou por ceder, e mudaram-se, ele bibliotecário, ela também na autarquia, mas noutro departamento, aquando férias ou fins-de-semana prolongados, de imediato, ela apontava à aldeia, pelos pais, sogros, um problema com a delimitação de uma terra, tudo era pretexto, ele contra-argumentava com um novo restaurante, de aromas e paladares longínquos, que deviam experimentar, os bilhetes mais baratos, para o futebol, que um colega arranjara, a estreia de um filme há muito ansiado, tudo era motivo para não regressar, inversamente tudo nela gritava por horizontes de há tanto, aqui começaram a olhar em direcções opostas (algum dia olharam na mesma? Os equívocos, pois, os equívocos…), e a caminhar também, desconheço se entre eles chegou a haver paixão, pelos relatos chegados da sua história, por avós e conhecidos, não me parece, embora a paixão não seja mensurável, o amor, num determinado sentido, sim, pode ser mensurável, a paixão não, é como uma febre de que somos acometidos, só há um horizonte, nada mais, o resto do mundo torna-se um acessório inútil, desde que me lembro, nos seus gestos e olhares, nem resquícios de um incêndio ido, uma distância e lisura no trato inversamente proporcionais a fogos e tormentas, acho que foi nos olhares, talvez por não se demorarem assim tanto, é natural, ela almejava distâncias, ele um labirinto ruidoso onde se pudesse esconder, ou perder, foi minha avó materna, certa noite, diante da lareira, que, não sei a que propósito, levantou a questão, foi depois daquela tarde, prostrada, mãos nos joelhos, desde então, sempre que a carteira permitia, rumávamos para a aldeia, regra geral, somente eu e minha mãe, nessa altura, meu irmão já na faculdade, cursava letras, escolha óbvia, curioso, às vezes acreditava que ele ia às aulas para ver se os professores ensinavam bem, outras esperava somente que os anos passassem para levantar o canudo, mas falava de um serão de lareira, um serão com sabor a meninice, pensava eu, as ondulantes chamas despertavam a menina adormecida no rosto de minha mãe, percebia-lhe uma alegria aquietada, tão distante de mãos nos joelhos, lembro-me bem, meu avô já se deitara, hábitos de há muito, neste mundo existem lugares onde a vida começa cedo, minha avó com a tenaz a juntar toros foragidos para o lume não esmorecer, olha o rosto da filha, sem nunca largar a tenaz, e “Já pensaste, tudo podia ser bem diferente… Bastava que, naquele dia, o…”, a frase silenciou-se-lhe porque o olhar a lembrou da minha presença, ao ouvi-la, desenhou-se sonho na face da filha, para meu espanto, respondeu “É bem verdade, minha mãe, é bem verdade”, bastava um gesto ter-se aquietado, um olhar demorado, talvez um passo subtraído, e o hoje uma soma distinta do ontem, minha avó  prosseguiu, não sei porquê, intuí que iam abrir divisões por mim desconhecidas, apesar de, desde sempre, conhecer a fachada do edifício, “Ninguém estava preparado para aquilo! Bem sei, vou repetir-me, mas há dias que nunca deviam ter existido! Esse foi um dos tais! Eu sabia onde vocês se encontravam, no lagar-seco, não é verdade? (Li um espanto infantil no olhar de minha mãe, como se lhe revelassem algo encoberto há pouco, e, realmente, foi há tanto, quase numa outra existência, que as palavras de sua mãe traziam para o agora, como se tudo ainda respirasse.) O teu pai nem desconfiava. Mas, sinceramente, nunca me ralei muito, bastava ver-vos a caminhar juntos, sabia que iam em direcção ao amanhã (...)

 

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