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segunda-feira, 4 de abril de 2022

Afinal, a vida é dizer adeus


 

Caminha de olhar na calçada, enquanto a mão direita percorre a alça da carteira, como se a familiaridade daquela textura lhe apaziguasse uma qualquer estranheza recente. Quando se percebe próxima do destino, o olhar deixa aquele excesso de brancura, talvez pela hora, talvez por si, talvez pelo olhar, e procura abrigo no porto de um rosto. Já chegara, ali estava, sentada a uma mesa, cigarro entre indicador e médio, substitutos escrupulosos dos lábios, sorri para o movimento nervoso da carteira, que avança ao seu encontro. A carteira, por fim, descansa na calçada quente da tarde, enquanto o rosto se despe de uns óculos escuros, máscara do hoje, por ali nem risos nem lágrimas, apenas um hermetismo espelhado que acentua a horizontalidade inexpressiva de uns lábios, os óculos agora sobre a mesa desvelam um olhar que sente em demasia, o empregado, de radar apurado, aproxima-se, o olhar, em pudor, a descer, enquanto a voz se eleva tenuemente, Um café, por favor, entretanto, o cigarro oscila entre lábios e dedos, agora com maior frequência, por fim, pergunta Então, que novidades? Antes de responder, sempre a olhar o tampo da mesa, dedos nervosos numa das hastes, os óculos em movimento de embarcação por mar encapelado, Foi lá a casa ontem à noite. E eu sei que a outra estava no carro. Da varanda, só lhe via os joelhos. Mas foi o suficiente… O cigarro, neste momento, imóvel, a sugerir-lhe que esquecesse os joelhos, que assinasse o divórcio, sim, a vida continua, há um filho por criar, os óculos continuam a enfrentar uma borrasca, contrapõem os dez anos de casamento, o facto de ele ter dito que ia trabalhar para o exterior, afinal já um outro lar (Como é possível um homem pisar solos tão distintos?), esta ubiquidade persistiu por dois anos, tudo tem um tempo, sobretudo os milagres, um telefonema anónimo, a voz mal disfarçada da vizinha do rés-do-chão esquerdo, Esteja atenta. O seu marido tem outra, nessa noite, ela confronta-o, assim que ele fecha a porta de casa, há questões que só se respondem com o olhar, esta foi um exemplo, foi ela quem se sentou, ele permaneceu na entrada, Já era para te ter dito há mais tempo. Peço desculpa, e ela a pensar, pedir desculpa por isto, como se pisasse alguém por descuido, ninguém pisa uma alma inadvertidamente, aqui ela levantou o olhar à altura da vergonha dele, Quando tencionavas dizer-me? Ele a olhar o tapete da entrada, O mais depressa possível, conseguiu balbuciar, ela, depois, compreendeu que a velocidade é sempre subjectiva, nessa noite, ele já não dormiu em casa, ela deixou de dormir, uma noite, ele liga-lhe para ir buscar as suas coisas, ela marca uma tarde, embala tudo o que lhe pertence, ainda levou uns dias, antes de fechar o último caixote, com aquela desagradável fita adesiva castanha, espelho de mudanças do instante, ainda pensou em fechar-se no caixote, sim, talvez assim não se esquecesse dela, afinal, ele não vinha buscar tudo o que lhe pertencia? Mas resistiu. No caixote apenas se fecharam ainda alguns sentimentos caídos sob uma forma líquida, sim, esses também lhe pertenciam. Da última vez que o telefone tocou, a palavra mais pronunciada foi divórcio, mas as contas, os empréstimos comuns, a casa, o filho, por essa altura, de novo, a voz do rés-do-chão esquerdo a elevar-se, Já está grávida de três meses, a dor numa espiral ascendente, o olhar a percorrer as fotografias da cómoda da entrada, por ali não se ouviam vozes de rés-do-chão, nem sinais daquela desagradável fita adesiva castanha, espelho de mudanças do instante, apenas olhares que se perdiam no instante e palavras em sussurros melodiosos, demorou o seu tempo, mas o telefone insistiu em chamá-la, uma vez mais, a palavra divórcio, ela Tudo bem. Assim que as contas estiverem arrumadas, a olhar a cómoda da entrada, agora, por ali, uma jarra com flores silvestres, nem sinal de fotografias com olhares do instante e palavras sussurradas em melodia, talvez estejam para sempre encerradas num caixote fechado com aquela desagradável fita adesiva castanha. É possível. Há quem chame a isso memória.

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