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quinta-feira, 28 de abril de 2022

Quantas conversas encontram o amanhã?


 

Há lugares que são o que sempre foram. Talvez por ali permanecer uma parte de nós pronta, sempre que regressamos, a sair-nos ao caminho e a relembrar a sua existência. Como se fôssemos partes largadas no mundo. E sempre a tola ilusão de um eu. Não, somos, de facto, partes largadas no mundo, umas em sorrisos quentes, iluminadas por um sol adentro através de largos vidros, outras em recato, numa sombra perpétua de um qualquer enviesado recanto, e sempre a ilusória ambição de um compreender, como se fosse possível reunir sombras perpétuas de enviesados recantos e sóis adentro através de largos vidros no espaço de uma mesma mesa. Hoje reentra naquele café, sim, aquele que tem mesmo um candeeiro, no passeio, diante da entrada, a cada passo a procura de um rosto conhecido, sempre assim foi, a carência de espelhos, mas nada, talvez pela hora, não, talvez pelos anos de permeio, desde que tivera, no passeio, de contornar o candeeiro, para ali entrar, mas entrava, nessa altura, num outro café, à sua passagem mãos que se levantavam, outras no calor de uma saudação que desconhecia amanhãs, e como ele conhecia aquela geografia, cada mesa um continente, talvez pela singularidade de sonhos que as povoavam, logo à entrada, do lado direito, sentava-se aquela morena, olhos para o rectângulo de vidro que ilustrava a rua, talvez, naquele tempo todo que ali estava, com um café diante de si, não se tivesse apercebido do candeeiro, no passeio, diante da entrada, é possível, o seu olhar ia além disso, esperava por alguém, que, a essa hora, se despedia da namorada, em beijos apaixonados, com juras de amanhãs de mãos dadas, ela, com o café à frente, sabia das juras, das despedidas, dos beijos apaixonados, mas sabia também que, assim que ele aparecesse, se iria sentar à sua frente, com gestos aquém teatralidade, por outras palavras, gestos despidos de ilusão, confessar-lhe dúvidas e receios pelo amanhã, suplicar-lhe compreensão, ela, entretanto, adicionava uma chávena vazia à outra há muito arrefecida, levantava-se, apontava para as moedas sobre a mesa, por trás do balcão um movimento de anuência, saía, contornava, sem se aperceber, o candeeiro, no passeio, diante da entrada, ele seguia-a, após o candeeiro, ela numa pausa para cadenciarem passos e palavras, por esta altura, a mão da noite descia uma qualquer promessa de sonhos sobre a terra, aqui era o momento em que se silenciavam para se olharem, talvez nunca falassem tanto, é curioso, o amanhã nunca entrava nestes diálogos, retomavam a marcha, sim, numa cadência muito deles, por fim, diante da porta da casa dela, momentos para sentir a noite, a luz que o dia obscurece, horizontes de promessas, ela a entrar, a segurar-lhe a porta, ele, uma vez mais, segue-a, não acendem luzes, sempre o sentir da noite, recorda-lhe o rosto na delicadeza de dedos tacteantes, ela retribui o gesto, e percorre-lhe a face no possível de uma eternidade feita gesto, sentam-se, como se uma capitulação, no largo sofá, a janela da divisão aberta, a cortina relembra a brisa nocturna numa lentidão graciosa, por vezes, limitam-se a olhar a cortina, talvez por lhes ensinar a noite, o momento, sim, é verdade, entre eles nunca se pronunciou amanhã.


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