Uma questão que recorrentemente me colocam
é: “Quando
começou a escrever?” Só concebo uma
resposta: “Desde que aprendi a olhar o mundo,” curiosamente nunca perguntaram a razão que me levou a preencher centenas
e centenas de páginas em branco, pois bem, hoje revelá-la-ei, foi há mais de
década e meia, um projecto para uma curta-metragem, o guião entregue a um boneco
que ambicionava ter o dom da escrita, destino vilão que não lhe conferiu tal
dádiva, apesar disso, abnegou-se em cumprir com a narrativa da curta, até que,
certa tarde, sou interpelado por uma das protagonistas “Peço desculpa, mas
não vou dizer esta fala! É demasiado ridícula! Não lembra a ninguém! Assim, não
vamos a lado nenhum! Por favor, escreva você…,” esta última frase ecoou-me na alma, “Por favor, escreva você…,” como se, desde que caminho por este lado, a
aguardasse, “Por favor, escreva você…”, um
chamamento de ordem-superior, diante da obscenidade de uma página em branco,
não recuei, as palavras saíram com a naturalidade de quem há muito aguarda pela
sua hora de luz, assim foi, mas uma questão subsiste: Qual foi a fala, demasiado
ridícula, que a protagonista se recusou a verbalizar? Pois bem, “Vê lá se
queres levar um tabefe…,” riso e
consternação povoaram-me ao ler tal deixa, de facto, o boneco bem ambicionava
ter o dom da escrita, destino vilão que não lhe conferiu tal dádiva, é vê-lo
andar diariamente com um livrito debaixo do braço, sempre confere um ar
erudito, a melhor definição deste boneco proveio de um “dito seu amigo”: “É
como a cortiça, está sempre à superfície;” confesso,
ainda hoje, não ter ouvido melhor definição para esta figura, lá consegue, em
todo o ambiente, passar incólume, senta-se e dialoga animadamente com Deus, o
Diabo, arcanjos, demónios, e o que demais houver, embora distribua informação apenas
com quem lhe permita estar, como a cortiça, à superfície das coisas, um
autêntico dançarino, ora em reuniões, pelos cantos, com menopausas ambulantes, ora
em estéreis conversas, sobre bola, política ou trivialidades, onde a sua
opinião nunca o compromete, “É como a cortiça, está sempre à superfície;” como nunca se deu bem com volantes e pedais,
é vê-lo sempre à cata de uma salvífica boleia, uma omnipresente e colorida camisa
fora das calças, sempre disfarça as mais que notórias rotundas formas, um andar
bamboleante que, para as más-línguas, levanta certas questões, deve ser só
maledicência, afinal, pode simplesmente ir em busca de uma salvífica boleia,
sinceramente era caso para questionar essas más-línguas: “Vejam lá se
querem levar um tabefe?” O incessante
enlear do destino levou esta personagem a cruzar-se e, claro, a ficar íntimo da
Porcachona, uma obesa, com o cabelo pintado de amarelo, que arranha castelhano,
divorciada, mais que previsível, quem aguentaria, por muito tempo, a
Porcachona? Laivos de autoridade para quem o permite, como é óbvio, afinal de
contas quem no seu perfeito juízo aceitaria um conselho, quanto mais uma ordem,
da Porcachona? Há uns tempos, um familiar-directo alertou-me para quem, de
facto, era a Porcachona, achei exagerado, hoje tiro-lhe o chapéu, mais uma menopausa
ambulante, em conversas de canto com o boneco que tanto se bamboleia ao andar, a
cansada história de falar dos outros para não serem falados, temos de
compreender que alguém precisa de boleia e a Porcachona de um ouvinte, e ambos
de maquilhar a frustração das suas existências, um aspecto intrigante da vida,
que me tem feito reflectir, é como as mediocridades se atraem, parece haver uma
ordem invisível das coisas que, de forma irreversível, acaba por juntá-las, a
compreensão advém da distância, dei por mim, há uns dias, a observar estas duas
tétricas figuras de uma salutar dezenas de metros: o boneco, com o omnipresente
livrito debaixo do braço, sempre confere um ar erudito, o sorrisito lodoso, a
Porcachona, com o cabelo pintado de amarelo, à sua frente, não percebi se
grunhia em castelhano, umas calças, não obstante o XXL, apertadas, de onde
sobressaíam as marcas do pára-quedas a que devia chamar de cuecas, desculpem,
pela dimensão acreditem era, sem dúvida, um pára-quedas, e para ali ficaram, o
suficiente para expelir o seu veneno, pouco mais têm para dar ao mundo, por
fim, a Porcachona entrou, da distância até comiseração senti, que homem, no seu
perfeito juízo, se podia interessar por uma Porcachona, com o cabelo pintado de
amarelo, que usa um pára-quedas no lugar de cuecas? O boneco lá seguiu o seu
caminho, cabisbaixo, hoje não arranjou a salvífica boleia, pode não perceber de
volantes e pedais, mas ao menos bamboleia-se como poucos, e se alguma má-língua
insinuar algo, resta questionar: “Vejam lá se querem levar um tabefe?”
Livros do Escritor
quarta-feira, 26 de novembro de 2025
A Porcachona e o Tintim
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