Livros do Escritor

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quarta-feira, 26 de novembro de 2025

A Porcachona e o Tintim


 

Uma questão que recorrentemente me colocam é: “Quando começou a escrever?” Só concebo uma resposta: “Desde que aprendi a olhar o mundo,” curiosamente nunca perguntaram a razão que me levou a preencher centenas e centenas de páginas em branco, pois bem, hoje revelá-la-ei, foi há mais de década e meia, um projecto para uma curta-metragem, o guião entregue a um boneco que ambicionava ter o dom da escrita, destino vilão que não lhe conferiu tal dádiva, apesar disso, abnegou-se em cumprir com a narrativa da curta, até que, certa tarde, sou interpelado por uma das protagonistas “Peço desculpa, mas não vou dizer esta fala! É demasiado ridícula! Não lembra a ninguém! Assim, não vamos a lado nenhum! Por favor, escreva você…,” esta última frase ecoou-me na alma, “Por favor, escreva você…,” como se, desde que caminho por este lado, a aguardasse, “Por favor, escreva você…”, um chamamento de ordem-superior, diante da obscenidade de uma página em branco, não recuei, as palavras saíram com a naturalidade de quem há muito aguarda pela sua hora de luz, assim foi, mas uma questão subsiste: Qual foi a fala, demasiado ridícula, que a protagonista se recusou a verbalizar? Pois bem, “Vê lá se queres levar um tabefe…,” riso e consternação povoaram-me ao ler tal deixa, de facto, o boneco bem ambicionava ter o dom da escrita, destino vilão que não lhe conferiu tal dádiva, é vê-lo andar diariamente com um livrito debaixo do braço, sempre confere um ar erudito, a melhor definição deste boneco proveio de um “dito seu amigo”: “É como a cortiça, está sempre à superfície;” confesso, ainda hoje, não ter ouvido melhor definição para esta figura, lá consegue, em todo o ambiente, passar incólume, senta-se e dialoga animadamente com Deus, o Diabo, arcanjos, demónios, e o que demais houver, embora distribua informação apenas com quem lhe permita estar, como a cortiça, à superfície das coisas, um autêntico dançarino, ora em reuniões, pelos cantos, com menopausas ambulantes, ora em estéreis conversas, sobre bola, política ou trivialidades, onde a sua opinião nunca o compromete, “É como a cortiça, está sempre à superfície;” como nunca se deu bem com volantes e pedais, é vê-lo sempre à cata de uma salvífica boleia, uma omnipresente e colorida camisa fora das calças, sempre disfarça as mais que notórias rotundas formas, um andar bamboleante que, para as más-línguas, levanta certas questões, deve ser só maledicência, afinal, pode simplesmente ir em busca de uma salvífica boleia, sinceramente era caso para questionar essas más-línguas: “Vejam lá se querem levar um tabefe?” O incessante enlear do destino levou esta personagem a cruzar-se e, claro, a ficar íntimo da Porcachona, uma obesa, com o cabelo pintado de amarelo, que arranha castelhano, divorciada, mais que previsível, quem aguentaria, por muito tempo, a Porcachona? Laivos de autoridade para quem o permite, como é óbvio, afinal de contas quem no seu perfeito juízo aceitaria um conselho, quanto mais uma ordem, da Porcachona? Há uns tempos, um familiar-directo alertou-me para quem, de facto, era a Porcachona, achei exagerado, hoje tiro-lhe o chapéu, mais uma menopausa ambulante, em conversas de canto com o boneco que tanto se bamboleia ao andar, a cansada história de falar dos outros para não serem falados, temos de compreender que alguém precisa de boleia e a Porcachona de um ouvinte, e ambos de maquilhar a frustração das suas existências, um aspecto intrigante da vida, que me tem feito reflectir, é como as mediocridades se atraem, parece haver uma ordem invisível das coisas que, de forma irreversível, acaba por juntá-las, a compreensão advém da distância, dei por mim, há uns dias, a observar estas duas tétricas figuras de uma salutar dezenas de metros: o boneco, com o omnipresente livrito debaixo do braço, sempre confere um ar erudito, o sorrisito lodoso, a Porcachona, com o cabelo pintado de amarelo, à sua frente, não percebi se grunhia em castelhano, umas calças, não obstante o XXL, apertadas, de onde sobressaíam as marcas do pára-quedas a que devia chamar de cuecas, desculpem, pela dimensão acreditem era, sem dúvida, um pára-quedas, e para ali ficaram, o suficiente para expelir o seu veneno, pouco mais têm para dar ao mundo, por fim, a Porcachona entrou, da distância até comiseração senti, que homem, no seu perfeito juízo, se podia interessar por uma Porcachona, com o cabelo pintado de amarelo, que usa um pára-quedas no lugar de cuecas? O boneco lá seguiu o seu caminho, cabisbaixo, hoje não arranjou a salvífica boleia, pode não perceber de volantes e pedais, mas ao menos bamboleia-se como poucos, e se alguma má-língua insinuar algo, resta questionar: “Vejam lá se querem levar um tabefe?”

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