Só quis dali sair, assim que se viu na rua, expirou longamente, o pensar incessante, sentia-se, por fim, a uma distância segura das coisas, horas antes, ali entrar com a filha, de três anos, ao colo, a testa em chamas, ainda lhe ligou, a alertar para o estado da criança, mas nada, era sexta-feira, há dois ou três meses que, com a desculpa de reuniões mais reuniões, sempre ausente, ela sabia dos jantares e sobremesas com a estagiária do escritório, o aparelho do hoje apenas uma biografia andante, bastou-lhe menos de uma dezena de minutos de distracção da parte dele, ao contrário do expectável, não sentiu raiva, dor, desilusão, apenas uma distância segura das coisas, desconhece o momento, sabia, no entanto, que o deixara de amar, simplesmente, por ele apenas ternura, pelo que foi, nada mais, deixou as coisas seguirem o seu rumo por múltiplas razões, algumas, convenhamos, pouco dignas (comodismo, preguiça, conveniência, vergonha…), parte de si acreditava que ele se apercebera, daí, ao contrário do expectável, raiva, dor, desilusão, apenas uma distância segura das coisas, começou a sentir um aperto no peito quando se cruzava com o colega, recém-divorciado, havia nele um desamparo que lhe despertava emoções há muito adormecidas, tão distintas de correr, com a filha nos braços, devido à testa em chamas, por acaso, numa dessas entediantes tardes de trabalho, encontraram-se junto à máquina de café, ele prontificou-se a encher ambos os copos, agradeceu-lhe com um sorriso algures entre a gratidão e um convite ao diálogo, havia nele um desamparo que lhe despertava emoções há muito adormecidas, como ela desejava saltar a imperativa e sempre incómoda conversa de circunstância sobre a qualidade do café, a temperatura lá fora, o volume de expediente, o seu olhar doloroso e perdido encantaram-na, percebeu-lhe a latente necessidade de diálogo, de um porto de segurança para o encapelado mar da existência, gostou da sonoridade da voz, da desajeitada timidez dos gestos, no entanto, teria de ser ele a entreabrir uma porta, um princípio de que jamais abdicaria, com a desculpa do carro na oficina, aguardou que lhe oferecesse boleia, não tardou, “Não é nenhum incómodo! Tenho muito gosto…,” percebeu-lhe zelo no carro, sempre ajudava a disfarçar os anos, o interior, ao contrário do seu, impecavelmente limpo, talvez o olhar doloroso e perdido fosse uma construção sua, assim que a marcha se iniciou, um incómodo silêncio entre eles, ouviam-se a procurar ansiosamente palavras para construir uma frase que permitisse romper aquele opressivo silêncio, foi ela que “Não queres pôr música?”, “Sim, pode ser…,” de repente, uns acordes melosos, o olhar dele ainda mais doloroso e perdido, ela “Estás bem?,” a questão já pairava e a resposta a nascer-lhe, a canção iluminava-lhe outro rosto, da mulher que o deixara, parece ter regressado a um amor de juventude, segundo se dizia, de bolsos abastados pela herança dos pais, para prolongar o delírio nada como eximir cálculos matemáticos, ele agora sozinho no apartamentozito, de um quarto, no primeiro-andar, com vista para um candeeiro de rua, foi como se parte de si lhe fosse arrancada, para superar a dor convenceu-se de que ela regressaria, ninguém o demovia, não retirou uma única foto dela do apartamentozito, de um quarto, no primeiro-andar, com vista para um candeeiro de rua, nem tudo lhe podia ser abruptamente extirpado, a verdade é que ela se sentiu uma intrusa, aqueles melosos acordes não eram para si, acabou por ser ele a colocar na primeira rádio com música, mais impessoal e despachado seria difícil, ela exprimiu a sua repulsa olhando para o relógio, se há pouco desejava saltar a imperativa e sempre incómoda conversa de circunstância sobre a qualidade do café, a temperatura lá fora, o volume de expediente, agora só lhe queria virar as costas, ser servida com o debitar musical de uma qualquer rádio constituiu um enormíssimo insulto, como se ela fosse uma vulgaridade, um pechisbeque de trazer por casa, “Estás atrasada para alguma coisa?”, a sua repulsa, afinal, não lhe passou despercebida, “A minha filha está quase a sair da escola…,” filhos, compromissos para a vida, assim lhe dizia um rotundo adeus, não que ele se importasse, já saudoso das fotografias, do candeeiro de rua avistado da janela e do desesperado regresso de uma ideia, que insistia em não abandonar, nos dias seguintes, ambos evitaram a máquina de café, semanas depois, já nem se cumprimentavam, ninguém cumprimenta equívocos, foi até ao café em frente, sentou-se a uma mesa, enquanto aguardava pelo empregado, olhou o incessante trânsito de vultos pelo passeio, reflectiu se, na realidade, há equívocos ou sublimados desejos de tudo uma outra coisa, uma voz ensonada fê-la regressar, “Ora, o que vai ser?”, uma saída de tudo isto, pensou, uma saída de tudo isto, pediu um café, ao contrário da filha, precisava de algo quente para despertar, a verdade é que sentiu inveja de nem uma canção ser para alguém, quanto mais fotos suas, espalhadas por uma casa, a aguardar pelo seu regresso, nem que das janelas se avistasse um candeeiro de rua, a chávena de café lá veio, “É mais alguma coisa?”, “Ser uma canção para alguém… Acha que demora muito?”

Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.