Queria, como se deve, começar por dizer o
seu nome, mas, confesso, já não me lembro. Passou algum tempo, é verdade. E o
nosso tempo nunca é o tempo dos outros. Sabe, esta história nunca me abandonou,
vou tentar relatá-la com a exactidão possível, se bem que a memória, como
sabemos, tem mais sombras que luz… Estava naquela altura da vida em que olhamos
os adultos algures entre a compaixão e a reverência, depois do almoço, aos
fins-de-semana, cumpria-se escrupulosamente o rito do café, os meus pais e um
casal vizinho, cada passada parecia obedecer a um minucioso escrutínio, de
facto, o nosso tempo nunca é o tempo dos outros, quando os acompanhava, seguia
ou mais à frente ou atrás, consoante o universo em que habitava, mas nunca ao
lado, acho que, em determinado momento, jurei nunca habitar o universo dos
adultos, até hoje julgo ter cumprido na perfeição com este desígnio, não há
nada mais aborrecido e enfadonho que um adulto, e há aqueles que nascem
adultos, assim, sem direito a réplica, conheci alguns, entre carteiras de
escola e brincadeiras na rua, creio que, se sentassem com os meus pais a uma
mesa de café, teriam uma daquelas conversas balizadas por bocejos e olhares de
náufrago, sobre politiquices ou dinheiro, apesar de terem a minha altura, mas
nasceram assim, com aquela idade, se pudessem alterar, acredito que não o
fariam, lá está, são adultos, enfadonhos, aborrecidos, sem um rasgo de energia,
até as costas denunciam prematuramente a futura curvatura, apesar do meu
repúdio, não deixava de me espantar, como dizia, depois do almoço, aos
fins-de-semana, cumpria-se escrupulosamente o rito do café, os meus pais e um
casal vizinho, certo Sábado, atento na conversa da vizinha para a minha mãe,
“Pois, sabe como é, continua a falar como se ele ainda ali estivesse”, dessa
vez, desacelerei o passo para que me alcançassem, lembro-me, ia um pouco mais à
frente, talvez fosse habitado pelo universo de um super-herói veloz, é
possível, mas aquelas palavras, não sei porquê, fascinaram-me (“continua a
falar como se ele ainda ali estivesse”), havia por ali qualquer coisa dos
universos que eu abraçava a cada instante, diametralmente oposto à rigidez
enfadonha, aborrecida, sem um rasgo de energia, dos adultos, apesar de se
referirem, como logo percebi, à vizinha do rés-do-chão, uma velhota simpática
que enviuvara há uns meses, como simpatizava com ela, tinha sempre um sorriso
ou uma palavra simpática na algibeira para me oferecer, daí o meu interesse pela
conversa, e aquelas palavras (“continua a falar como se ele ainda ali
estivesse”), a conversa prosseguiu, a minha mãe tentou quase justificar a
simpática velhota do rés-do-chão “É compreensível… Já viu, décadas e décadas de
casamento… Deve ser uma dor imensa… Nem posso imaginar! Meu Deus, coitada da
senhora… Vou ver se, ainda hoje, lhe faço uma visita…”, a vizinha persistiu na
sua indignação “Repare, eu compreendo tudo isso. E até me compadeço da sua dor.
Mas daí a falar com fantasmas, vai uma distância… Isso já é um problema de
saúde pública.” Neste ponto, percebi que a voz da minha mãe se metamorfoseara:
“Mas quem lhe falou de tal coisa?” A questão saiu-lhe rápida e, pela entoação,
percebi aquele tom particular como quando olha o meu quarto da porta num final
de tarde, também não passou despercebido à vizinha que se apressou a aligeirar
as coisas “Diz-se para aí… Já sabe como é esta gente! Ouvem sempre tudo, e
sabem sempre tudo… Não ligue!” E, de facto, a vizinha foi bem-sucedida na sua
tentativa de aligeirar as coisas e logo a atenção da minha mãe em algo distinto
decorrente da conversa, contudo, a minha ali ficou, para sempre, como um
obstinado escolho numa corrente invernosa. Com o tempo, cruzei-me cada vez
menos com a simpática velhota do rés-do-chão, não obstante os meus esforços em
sentido contrário, nessas escassas vezes, achei-a subtraída, como se uma parte
dela tivesse partido para longe, sabe, manteve sempre a educação, mas não
deixei de reparar que, pelas suas algibeiras, já não havia um sorriso ou uma
palavra simpática para me oferecer, e eu que tanto queria falar com ela,
somente um pouco da sua atenção, queria esclarecer se, de facto, tinha poderes
para falar com fantasmas, quantos se podem gabar de ter um vizinho assim? Nunca
fui esclarecido, como deve calcular, a minha mãe nunca chegou a concretizar a
sua visita, quando lhe perguntava se ia hoje a casa da simpática velhota do
rés-do-chão, ou me respondia “Vou amanhã, hoje já é tarde”, ou então “Qual é o
teu interesse se vou visitar a vizinha?”, neste ponto, calava-me, se falasse,
sentia que estava a trair a identidade secreta da minha simpática vizinha. Até
que, demasiado tarde, compreendi que a deixara de ver. Ainda hoje não sei quem
se lembrou, lá no prédio, que não a via sair há, pelo menos, duas semanas,
regressava eu da escola, à porta do prédio, um cenário de luzes e viaturas, por
fim, era o cinema que vinha ao meu encontro, assim que me percebo a escassos metros da entrada, surge-me minha mãe, a envolver-me com o seu braço, logo o
mundo ficava um lugar longe, apenas umas vozes, esparsas, me chegavam,
“Coitada! Dizem que morreu para ali, sentada”, “Sentada?!”, “Sim, foi o cheiro
que nos chamou a atenção. Encontrámo-la na cadeira onde dizem que ele se
sentava a ler”, “Mas foi…”, “Não, nada disso, acho que partiu de saudade”, “E
ninguém deu pela sua falta?”, “Pois, como vê, não tinha ninguém”, “É verdade,
pelos vistos, nem vizinhos que a soubessem morta, há uma semana, numa
cadeira…”, “Sabe como é esta vida…”, “A vida não sei, mas olhe que a morte
aprendi a saber”, “Não censure! Fez melhor?”, no que restou desse dia, não ouvi
a voz de ninguém por minha casa, meus pais permaneceram em silêncio, eu, não
sei porquê, achei que não devia ir além do meu quarto, pelo ar, toda a noite,
apenas um cântico silencioso, sabe, ainda hoje, acho que muitos “partem de
saudade”, acredite que, se isso me acontecer, quero que figure na minha lápide:
“Partiu de saudade”.

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