Nunca partilhou a sua maior ambição, nem
com a mulher, volta e meia, nos entediantes passeios de fim-de-semana, a
lugares tão cansados que até as pedras quase cumprimentavam, uma palavra a
nascer-lhe “Sabes…”, ela
pronta “Sei o quê? Então, desembucha!”, ele
logo a fechar-se, a olhar um indefinível ponto na distância, onde de facto
desejaria estar, “Emudeceste?”, sabia-a
persistente, “Não é nada, estava a apetecer-me um gelado… Queres?”, “Estás
a querer enganar quem?! Assististe ao embranquecer de cada fio dos meus
cabelos, mesmo assim, após mais de quatro décadas sob o mesmo tecto, julgas que
não conheço, pela melodia da voz, por onde te caminha o pensar?”, estava encurralado, ela não desistiria, “Não
é nada, só me está a apetecer um gelado…,” a
verdade longe de cones e sabores, foi numa longínqua noite de infância, talvez
fosse Verão, folheava um álbum de banda-desenhada, e uma ideia a nascer-lhe “Um
dia, hei-de escrever um livro,” assim, de
aparente fonte incógnita, “Um dia, hei-de escrever um livro,” a imagem de o seu nome numa capa, uma
história por si narrada, seduziram-no, logicamente, na altura, atirou esse
objectivo para o futuro, de uma outra forma, para a imaginação, quando o
entardecer da vida lhe espreitasse pela janela, no entanto, o objectivo manteve-se
iniludível, palpitante, o curso da vida indiferente a sonhos, objectivos, capas
ou histórias, o trabalho possível para tecto sobre a cabeça e pão na mesa, o
casamento com a filha dos compadres dos pais, em verdade, nunca questionou os
seus sentimentos por ela, o inverso também seria facto, seduzido pela imposição
familiar, deixou-se conduzir, a timidez dela cativou-o, uns anitos de namoro
até a maioridade, o casamento, a vinda para a cidade, ele para uma
estação-de-correios, ela numa sapataria, ambos a olhar para baixo, envelopes e
sapatos, a timidez dela um adereço que, após o casamento, logo foi dispensado,
de firmes convicções a contrastar com as profundas incertezas dele, dúvidas se
teria o dom da paternidade, ela a anunciar-lhe, em júbilo, a gravidez, nesse
momento, sentiu que a vida o ultrapassava, viviam num segundo-andar, sem
elevador, pelo menos tinham dois quartos, os vencimentos davam para os gastos,
ele sonhava com um automóvel, teria de esperar, “Esquece essa história do
carro! Em breve, teremos mais uma boca para alimentar! Já não tens idade para
sonhos! Desce à realidade…,” as frases
saíam-lhe assim, imperativas, “Já não tens idade para sonhos!”, questionou se, alguma vez, teve tempo para
sonhar, foi, mais ou menos, por esta altura, que se iniciou a sua compreensão
de que sempre fora ultrapassado pela vida, certa noite, gritos de choro mesmo
ao seu lado, acordou algures entre o sobressalto e um desespero resignado, ela
em sono profundo, tirou o bebé do berço para o acalmar, viu a cena de uma
distância segura, todos os seus actos obedeciam a uma mecânica que o
ultrapassava e muito desconhecia, de onde estava não se reconhecia naquele
sujeito, com uma criança nos braços, de madrugada, tantos sonhos por despertar,
tal o atropelo da vida, passados dois anos, ela, de novo, em júbilo, a
anunciar-lhe nova gravidez, percepcionou, de imediato, que as esmeradas
poupanças, para o carro, seriam canalizadas noutra direcção, em mais uma boca
para alimentar, nem uma sílaba ousou, a verdade é que no estoicismo há nobreza,
na resignação apenas fraqueza, ele quedava-se por esta última, houve
complicações no parto, ela teve de secar a fonte muito a contragosto, ele, com
o filho mais velho pela mão, acompanhou de perto as incidências, e o tempo,
talvez a maior ironia da vida, por sempre nos iludir a cada instante, pensamos
no seu vagar, num ápice, lá se foi uma década, até que, ao olharmos para trás,
tudo se cinge a, quem sabe, um minuto, e será demasiado, ainda hoje continuam
no mesmo segundo-andar, sem elevador, pelo menos tinham dois quartos, um deles
livre, os filhos seguiram os passos do destino, um casado, também com dois
filhos, o outro já divorciado, só com uma filha, as reformas davam para os
gastos, não, ele nunca conseguiu o almejado carro, em tempos ainda equacionou
comprar um em segunda-mão, ela prontamente interveio “És doido ou quê?
Sabes lá se já teve algum acidente! E devias saber que subtraem quilómetros!
Deixa-te de aventuras, homem, deixa-te de aventuras… As nossas poupanças servem
para uma fatalidade com uma doença! E querias o carro para quê? Temos tudo,
graças a Deus, perto de casa…,” vezes
houve em que, da janela, ele em sonhos com o fim da rua onde moravam, nunca chegou
a saber onde termina essa estrada, só por duas ocasiões, no Verão, foram passar
as férias no litoral, ventoso e bravio, próximo da sua cidade, os
filhos ainda crianças, de resto, poupar com o intuito de antecipar o pagamento
da casa, poupar para a faculdade dos filhos, “Dizem que os livros e as
propinas são uma fortuna!”, nem uma
sílaba ousou, a verdade é que no estoicismo há nobreza, na resignação apenas
fraqueza, ele quedava-se por esta última, nos tempos recentes, poupar para qualquer
emergência de saúde, e a nascer-lhe a certeza de ter sido poupado à vida,
restava-lhe algo, a imagem de o seu nome numa capa, uma história por si
narrada, e um desejo “Um dia, hei-de escrever um livro,” a dúvida se talento para “Um dia, hei-de
escrever um livro,” abriu a janela, o
segundo-andar não lhe permitia largos horizontes, questionou-se “Onde
terminaria aquela estrada?”, voltou para
dentro, sentou-se à mesa, fechou os olhos, ao volante do seu carro percorreu
aquela estrada na esperança de reencontrar sonhos caídos num lugar do ontem.

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