Livros do Escritor

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quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Dos sonhos por realizar

 


Nunca partilhou a sua maior ambição, nem com a mulher, volta e meia, nos entediantes passeios de fim-de-semana, a lugares tão cansados que até as pedras quase cumprimentavam, uma palavra a nascer-lhe “Sabes…”, ela pronta “Sei o quê? Então, desembucha!”, ele logo a fechar-se, a olhar um indefinível ponto na distância, onde de facto desejaria estar, “Emudeceste?”, sabia-a persistente, “Não é nada, estava a apetecer-me um gelado… Queres?”, “Estás a querer enganar quem?! Assististe ao embranquecer de cada fio dos meus cabelos, mesmo assim, após mais de quatro décadas sob o mesmo tecto, julgas que não conheço, pela melodia da voz, por onde te caminha o pensar?”, estava encurralado, ela não desistiria, “Não é nada, só me está a apetecer um gelado…,” a verdade longe de cones e sabores, foi numa longínqua noite de infância, talvez fosse Verão, folheava um álbum de banda-desenhada, e uma ideia a nascer-lhe “Um dia, hei-de escrever um livro,” assim, de aparente fonte incógnita, “Um dia, hei-de escrever um livro,” a imagem de o seu nome numa capa, uma história por si narrada, seduziram-no, logicamente, na altura, atirou esse objectivo para o futuro, de uma outra forma, para a imaginação, quando o entardecer da vida lhe espreitasse pela janela, no entanto, o objectivo manteve-se iniludível, palpitante, o curso da vida indiferente a sonhos, objectivos, capas ou histórias, o trabalho possível para tecto sobre a cabeça e pão na mesa, o casamento com a filha dos compadres dos pais, em verdade, nunca questionou os seus sentimentos por ela, o inverso também seria facto, seduzido pela imposição familiar, deixou-se conduzir, a timidez dela cativou-o, uns anitos de namoro até a maioridade, o casamento, a vinda para a cidade, ele para uma estação-de-correios, ela numa sapataria, ambos a olhar para baixo, envelopes e sapatos, a timidez dela um adereço que, após o casamento, logo foi dispensado, de firmes convicções a contrastar com as profundas incertezas dele, dúvidas se teria o dom da paternidade, ela a anunciar-lhe, em júbilo, a gravidez, nesse momento, sentiu que a vida o ultrapassava, viviam num segundo-andar, sem elevador, pelo menos tinham dois quartos, os vencimentos davam para os gastos, ele sonhava com um automóvel, teria de esperar, “Esquece essa história do carro! Em breve, teremos mais uma boca para alimentar! Já não tens idade para sonhos! Desce à realidade…,” as frases saíam-lhe assim, imperativas, “Já não tens idade para sonhos!”, questionou se, alguma vez, teve tempo para sonhar, foi, mais ou menos, por esta altura, que se iniciou a sua compreensão de que sempre fora ultrapassado pela vida, certa noite, gritos de choro mesmo ao seu lado, acordou algures entre o sobressalto e um desespero resignado, ela em sono profundo, tirou o bebé do berço para o acalmar, viu a cena de uma distância segura, todos os seus actos obedeciam a uma mecânica que o ultrapassava e muito desconhecia, de onde estava não se reconhecia naquele sujeito, com uma criança nos braços, de madrugada, tantos sonhos por despertar, tal o atropelo da vida, passados dois anos, ela, de novo, em júbilo, a anunciar-lhe nova gravidez, percepcionou, de imediato, que as esmeradas poupanças, para o carro, seriam canalizadas noutra direcção, em mais uma boca para alimentar, nem uma sílaba ousou, a verdade é que no estoicismo há nobreza, na resignação apenas fraqueza, ele quedava-se por esta última, houve complicações no parto, ela teve de secar a fonte muito a contragosto, ele, com o filho mais velho pela mão, acompanhou de perto as incidências, e o tempo, talvez a maior ironia da vida, por sempre nos iludir a cada instante, pensamos no seu vagar, num ápice, lá se foi uma década, até que, ao olharmos para trás, tudo se cinge a, quem sabe, um minuto, e será demasiado, ainda hoje continuam no mesmo segundo-andar, sem elevador, pelo menos tinham dois quartos, um deles livre, os filhos seguiram os passos do destino, um casado, também com dois filhos, o outro já divorciado, só com uma filha, as reformas davam para os gastos, não, ele nunca conseguiu o almejado carro, em tempos ainda equacionou comprar um em segunda-mão, ela prontamente interveio “És doido ou quê? Sabes lá se já teve algum acidente! E devias saber que subtraem quilómetros! Deixa-te de aventuras, homem, deixa-te de aventuras… As nossas poupanças servem para uma fatalidade com uma doença! E querias o carro para quê? Temos tudo, graças a Deus, perto de casa…,” vezes houve em que, da janela, ele em sonhos com o fim da rua onde moravam, nunca chegou a saber onde termina essa estrada, só por duas ocasiões, no Verão, foram passar as férias no litoral, ventoso e bravio, próximo da sua cidade, os filhos ainda crianças, de resto, poupar com o intuito de antecipar o pagamento da casa, poupar para a faculdade dos filhos, “Dizem que os livros e as propinas são uma fortuna!”, nem uma sílaba ousou, a verdade é que no estoicismo há nobreza, na resignação apenas fraqueza, ele quedava-se por esta última, nos tempos recentes, poupar para qualquer emergência de saúde, e a nascer-lhe a certeza de ter sido poupado à vida, restava-lhe algo, a imagem de o seu nome numa capa, uma história por si narrada, e um desejo “Um dia, hei-de escrever um livro,” a dúvida se talento para “Um dia, hei-de escrever um livro,” abriu a janela, o segundo-andar não lhe permitia largos horizontes, questionou-se “Onde terminaria aquela estrada?”, voltou para dentro, sentou-se à mesa, fechou os olhos, ao volante do seu carro percorreu aquela estrada na esperança de reencontrar sonhos caídos num lugar do ontem.

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