Parecia outro, não sei porquê, assim que
um cão, gato, até pássaros, por perto, os gestos serenavam, sorria, gesticulava-lhes,
creio, com sinceridade, que conversava com os bichos, prontamente em busca de
comida, como se uma inextinguível dívida, diante dos bípedes, proclamados de
humanos, rosto fechado, azedume e desprezo, com o tempo agravou-se, por norma é
o que sucede, há uns dias, uma vizinha não hesitou e, com a devida indignação,
abordou-me “Olhe, desculpe a frontalidade, estou muito
desgostosa com o seu marido, há uns dias, estava eu a passear o meu Petsi,
cruza-se connosco, prontamente se baixa em festas, carinhos e risos para o cão,
sabe como é o meu Petsi, sempre gostou muito de atenções, quando se ergueu,
virou costas, seguiu caminho e nem se dignou a me cumprimentar, creio que nem sequer
me olhou, se é que me viu”, “Deixe lá, deixe lá, não ligue, desde há uns tempos
que lhe deu para isso…,” “Afinal, somos vizinhos há quantos anos? Cumprimenta o
meu cão e ignora-me por completo?! Desculpe, não posso aceitar tal
desconsideração…,” neste ponto, nada mais
podia acrescentar, ao menos o Petsi feliz, lá por casa não retomaria o tema, acabava
em discussão, já houve bastantes, “Mas, agora, deste em mal-educado? Não
tens idade suficiente para ter juízo? Sessenta e três anos não chegam para
atingir tal meta? O que se passa homem?! Curvas-te perante os bichos e ignoras
os donos que, nem por acaso, na sua maioria, são nossos vizinhos de há
décadas!”, “Deixa-me, deixa-me, a essa pergunta há muito te respondi…,” “Então,
serei muito burra, continuo sem perceber a razão!”, “Queres que te repita? Pois
bem, cansei-me, cansei-me, só os bichos, como lhes chamas, não mentem! O resto
é demasiado mau…,” “Bom, nunca mais quiseste um cão ou gato em casa…”, “Se porventura
enviuvasse, Deus nos livre, iria prontamente em busca de outra mulher?”, “Só tu
podes responder a essa questão!”, “Contrapões assim, por saber que me seria
impossível… Logo, depois da morte da Babuska, como queres trazer para aqui
outro…,” “Desculpa, estás a comparar a viuvez marital com a de um bicho?!”, “Lá
estão vocês a confundir tudo! Depois vem com a conversa de eu me remeter ao
silêncio… Vou avivar-te um pouco a memória, faz agora quatro anos que conseguiste
acabar com o meu pombal no terraço,” “Em boa altura, já não era um terraço, mas
sim um antro de dejectos dessa maldita passarada,” “Como me vias feliz, lá
trataste de acabar com a coisa…,” “Desculpa, julguei, na altura, termos chegado
a um consenso… E que a decisão, de terminar com o pombal no terraço, tivesse
sido de ambos ou, por acaso, estou errada?”, “Colocas a pergunta e
simultaneamente respondes,” “Ai sim?! Talvez seja a altura de eu a te avivar a
memória: andavas sempre a queixar-te das costas por, dia sim, dia não, ires lá
para cima esfregar o pombal e quase tudo à volta… Além do cheiro, das moscas,
da fachada do prédio, suja em vários pontos, que já queixas suscitava dos
vizinhos…,” “Repito: como me vias feliz, lá trataste de acabar com a coisa…,”
“Estás a ser profundamente injusto! Falámos e falámos sobre a melhor solução
para o pombal… Queria ver-te, com essas dores nas costas, a ir lá para cima,
dia sim, dia não, esfregar o pombal e quase tudo à volta… Apontares-me o dedo
por, no teu juízo, ser a causadora do fim do pombal é cobardia!”, “Se o
dizes…,” “Tenho tanto orgulho nas medalhas que os nossos pombos conquistaram
quanto tu!”, “Nunca os trataste como também sendo teus…,” “Não te recordas de
um amanhecer, acho que seria final de Setembro, há doze anos, já se sentia um
arrefecer outonal, nós a contemplar o amanhecer da cidade, tu em ânsias com o
regresso da ave, com a missiva na pata, eu feliz por estarmos abraçados… Por
isso sei que foi há doze anos, pousei o rosto no teu ombro por mais que cinco
minutos… Se, para isso, fosse necessário aguentar todas as aves do mundo sobre
o meu tecto, não duvides que aguentava…,” “Já não tens esse robe… As águas do
rio espelhavam a coloração do amanhecer, foi das poucas vezes que te
interessaste…,” “Não me interessam pombos, mas sim o homem que escolhi para
caminhar a meu lado!”, “Então, devias respeitar as minhas decisões! Cansei-me,
há muito, de pessoas…”, “Pareces um adolescente a falar…”, “Não sei qual é o
problema… Perdi simplesmente a paciência para conversas de ocasião,
cumprimentos forçados, risos estéreis, todo o circo social, estou a repetir-me,
quantas vezes tivemos esta conversa?! Só nos bichos encontro, por muito que te
custe, espontaneidade, ausência de juízos, desinteresse… Quero sair de cena com,
pelo menos, um vestígio de inocência na palma da mão. Será pedir muito?”, “Com
o azedume que destilas à tua volta, acabas por também retirar inocência,
sobretudo aos nossos vizinhos de há décadas… O que te custa um singelo
cumprimento?”, “Sabes bem que nunca fica por aí, metem logo conversa, por isto
ou aquilo, não tenho paciência!”, “Tens consciência de que não casei contigo,
eras outro, e muitos foste ao longo destas décadas”, “É possível, também eras
outra, não tentavas impôr a tua vontade…”, “Nada quero impôr, apenas que
reflictas: o que tanto desejas estás a retirar aos outros com as tuas acções”,
“Só quero que me esqueçam!”, “Algo trouxeste do ontem, até certas frases, quando
passeavas, orgulhoso, a Babuska, todos os vizinhos paravam a fazer-lhe festas e
a conversar contigo, como apreciavas, não achas que…”, “Sei bem onde queres
chegar…”, “Posso pousar o meu rosto no teu ombro?”, “Ainda te recordas de como
gostavas?”, “Vou contar-te um segredo: para te ver feliz, aguentava todas as
aves do mundo sobre o meu tecto, não duvides que aguentava.”
Livros do Escritor
terça-feira, 9 de dezembro de 2025
Suave doçura
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