Não
sei, ao certo, que horas seriam, foi a meio da tarde, num dos passeios da
capital, avolumava-se gente perto da passadeira, à espera do verde para os
peões, quando, de repente, alguém se precipita sozinho na calçada, como estava
um pouco para trás, só reparei na boina, verde-escura, a
contrastar com a brancura da calçada, o espanto inicial, por ver um
corpo caído, deu lugar a uma miríade de reacções, houve quem prontamente
virasse costas e se mantivesse à espera do verde para os peões, outros logo com
o telemóvel para fotografar ou filmar, ainda houve os que nem se descentraram
do rectângulo, em furiosos dedilhares, quem sabe por
ali o destino da humanidade, enfim, reparei num sujeito, prontamente se identificou como médico, debruçado sobre o corpo, a tentar reanimá-lo, a gritar
aos demais “Liguem para o 112! Liguem
para o 112! Liguem para o 112! Rápido! Rápido!,” enquanto
continuava a comprimir o peito, observei que alguns se mantiveram impassíveis,
olhar absorto num indefinível ponto do outro lado da rua, como se alguém, por
ali, os esperasse, nem sequer olharam o corpo caído no passeio, as desesperadas
manobras de reanimação do sujeito, prontamente se identificou como médico, enquanto
gritava, “Liguem para o 112! Liguem para o 112! Liguem
para o 112! Rápido! Rápido!,” entretanto, caiu o verde para os peões,
quase todos atravessaram a estrada, como se, para trás, não deixassem um corpo
caído, pela calçada, alguns, enquanto caminhavam, continuaram voltados para o
rectângulo, em furiosos dedilhares, quem sabe por ali o destino da humanidade,
uma senhora – a neve pelos cabelos trouxera-lhe
bom-senso, tristemente tão singular – permaneceu ao lado do sujeito,
prontamente se identificou como médico, debruçado sobre o corpo, a
tentar reanimá-lo, cumpria com o imperativo de ligar para o 112, o meu olhar,
não sei porquê, incidiu na boina, verde-escura, a contrastar com a brancura da
calçada, reparei que alguém a pisara, conferia-lhe uma aura de dignidade
ferida, não lhe li desamparo, apenas uma paciente
espera de novamente ser restituída à sua função de cobrir o pensar de quem, por
ora, jaz a seu lado, pela calçada de um passeio da capital, por fim, os ecos de sereia desamparada da ambulância, nem a sua
estrepitante chegada fez alguém refrear o passo ou levantar o rosto do
rectângulo, com a excepção de fotografar ou filmar, estava quase a entrar na
ambulância, quando dei por mim a apanhar a boina e a correr, para lhe depositar
sobre as cobertas, antes que fechassem as portas, o sujeito, prontamente se
identificou como médico, antes debruçado sobre o corpo, agora a seu lado no
interior da ambulância, sorriu-me, retribuí, as portas fecharam-se e partiu, com
o seu lancinante gritar de sereia desamparada, olhei em volta e só constatei
vultos em movimento, também debruçados sobre o rectângulo, nem vestígios da
senhora – a neve pelos cabelos trouxera-lhe bom-senso, tristemente tão singular
– que permaneceu ao lado do sujeito, prontamente se identificou como médico, os
gestos, à minha volta, eram os mesmos, só os rostos se alteraram, segui
caminho, umas ruas adiante, um indivíduo debruçado sobre o lixo, apesar do
aspecto andrajoso, lia-se no seu porte vestígios de dignidade, sem dúvida já foi outro, a derrota no seu olhar
contribuiu para esta minha dedução, no lado oposto, uma esplanada, metade das
mesas ocupadas, afiguraram-se-me estudantes
universitários, embora a idade contrastasse com os modos, risinhos
estéreis, transpareciam uma notória futilidade, decidi estugar o passo quando
observo, numa das mesas, uma jovem pegar no telemóvel e apontar para o
indivíduo debruçado sobre o lixo, os risos em volta incendiaram-se, felizmente
ele não se apercebera, nem naquele caixote-de-lixo haveria lugar para a
dignidade daquelas patéticas figuras, afiguraram-se-me estudantes
universitários, mas desconheciam o essencial: que o amanhã é uma sombra por
iluminar; aquelas almas fediam a putrefacção, tão distantes de um porte onde se
lia vestígios de dignidade, sem dúvida já foi outro, regressou-me ao pensar a boina, verde-escura, a contrastar com a brancura da
calçada, não lhe li desamparo, apenas uma paciente espera de novamente ser
restituída à sua função de cobrir o pensar de quem, naquele momento, jazia a
seu lado, percorri o que me faltava a olhar os sapatos, como me pesava o
pensar, enquanto abria o correio, duas vizinhas conversavam animadamente na
escada “Parece que só come pão com manteiga! Veja bem!”, “E os filhos?”, “O
mesmo, claro, parece que não tem para mais… Aquilo fechou de um dia para o
outro! Não viram ordenado nos últimos dois meses! Agora, tem de esperar pelo
subsídio de desemprego…”, “E até lá?,” “Perca o orgulho e bata à porta do
ex-marido,” “Mas não se separaram por lhe bater?,” “E é melhor morrer à fome? E
arrastar os filhos por orgulho?,” “Pois, é uma situação difícil… E nós não
podíamos…,” “Deixe-se disso mulher! Enquanto teve trabalho, lembra-se de como
andava? Toda emproada, até carro da firma conduzia, assim que se separou, acho
que enfiou logo um aqui por umas noites… E com os filhos em casa! Isto serve
para acordar! Não tenha pena que eu também não! Pãozinho com manteiga nunca fez
mal a ninguém! Agora, olhe, vai de transportes-públicos para o centro de
emprego! Já se lhe baixou a crista…,” “Mas as crianças…”, não ouvi mais,
reflecti na imensidão de cretinices que se dizem nas costas de cada um, voltei
a sair, fui até ao super-mercado mais próximo, regressei com bem mais que pães
e manteiga, depositei os sacos no tapete de uma certa porta, toquei à campainha
e corri escada acima até ao meu andar, ouvi, atrás de mim, a porta abrir-se e
vozes, de uma mulher e crianças, antes de entrar em casa, de novo a imagem da
boina, verde-escura, a contrastar com a brancura da calçada, não lhe li
desamparo, apenas uma paciente espera de novamente ser restituída à sua função
de cobrir o pensar de quem, naquele momento, jazia a seu lado.
Livros do Escritor
sábado, 1 de março de 2025
Desumanização
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