Livros do Escritor

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sábado, 1 de março de 2025

Desumanização


 

Não sei, ao certo, que horas seriam, foi a meio da tarde, num dos passeios da capital, avolumava-se gente perto da passadeira, à espera do verde para os peões, quando, de repente, alguém se precipita sozinho na calçada, como estava um pouco para trás, só reparei na boina, verde-escura, a contrastar com a brancura da calçada, o espanto inicial, por ver um corpo caído, deu lugar a uma miríade de reacções, houve quem prontamente virasse costas e se mantivesse à espera do verde para os peões, outros logo com o telemóvel para fotografar ou filmar, ainda houve os que nem se descentraram do rectângulo, em furiosos dedilhares, quem sabe por ali o destino da humanidade, enfim, reparei num sujeito, prontamente se identificou como médico, debruçado sobre o corpo, a tentar reanimá-lo, a gritar aos demais “Liguem para o 112! Liguem para o 112! Liguem para o 112! Rápido! Rápido!,” enquanto continuava a comprimir o peito, observei que alguns se mantiveram impassíveis, olhar absorto num indefinível ponto do outro lado da rua, como se alguém, por ali, os esperasse, nem sequer olharam o corpo caído no passeio, as desesperadas manobras de reanimação do sujeito, prontamente se identificou como médico, enquanto gritava, “Liguem para o 112! Liguem para o 112! Liguem para o 112! Rápido! Rápido!,” entretanto, caiu o verde para os peões, quase todos atravessaram a estrada, como se, para trás, não deixassem um corpo caído, pela calçada, alguns, enquanto caminhavam, continuaram voltados para o rectângulo, em furiosos dedilhares, quem sabe por ali o destino da humanidade, uma senhora – a neve pelos cabelos trouxera-lhe bom-senso, tristemente tão singular – permaneceu ao lado do sujeito, prontamente se identificou como médico, debruçado sobre o corpo, a tentar reanimá-lo, cumpria com o imperativo de ligar para o 112, o meu olhar, não sei porquê, incidiu na boina, verde-escura, a contrastar com a brancura da calçada, reparei que alguém a pisara, conferia-lhe uma aura de dignidade ferida, não lhe li desamparo, apenas uma paciente espera de novamente ser restituída à sua função de cobrir o pensar de quem, por ora, jaz a seu lado, pela calçada de um passeio da capital, por fim, os ecos de sereia desamparada da ambulância, nem a sua estrepitante chegada fez alguém refrear o passo ou levantar o rosto do rectângulo, com a excepção de fotografar ou filmar, estava quase a entrar na ambulância, quando dei por mim a apanhar a boina e a correr, para lhe depositar sobre as cobertas, antes que fechassem as portas, o sujeito, prontamente se identificou como médico, antes debruçado sobre o corpo, agora a seu lado no interior da ambulância, sorriu-me, retribuí, as portas fecharam-se e partiu, com o seu lancinante gritar de sereia desamparada, olhei em volta e só constatei vultos em movimento, também debruçados sobre o rectângulo, nem vestígios da senhora – a neve pelos cabelos trouxera-lhe bom-senso, tristemente tão singular – que permaneceu ao lado do sujeito, prontamente se identificou como médico, os gestos, à minha volta, eram os mesmos, só os rostos se alteraram, segui caminho, umas ruas adiante, um indivíduo debruçado sobre o lixo, apesar do aspecto andrajoso, lia-se no seu porte vestígios de dignidade, sem dúvida já foi outro, a derrota no seu olhar contribuiu para esta minha dedução, no lado oposto, uma esplanada, metade das mesas ocupadas, afiguraram-se-me estudantes universitários, embora a idade contrastasse com os modos, risinhos estéreis, transpareciam uma notória futilidade, decidi estugar o passo quando observo, numa das mesas, uma jovem pegar no telemóvel e apontar para o indivíduo debruçado sobre o lixo, os risos em volta incendiaram-se, felizmente ele não se apercebera, nem naquele caixote-de-lixo haveria lugar para a dignidade daquelas patéticas figuras, afiguraram-se-me estudantes universitários, mas desconheciam o essencial: que o amanhã é uma sombra por iluminar; aquelas almas fediam a putrefacção, tão distantes de um porte onde se lia vestígios de dignidade, sem dúvida já foi outro, regressou-me ao pensar a boina, verde-escura, a contrastar com a brancura da calçada, não lhe li desamparo, apenas uma paciente espera de novamente ser restituída à sua função de cobrir o pensar de quem, naquele momento, jazia a seu lado, percorri o que me faltava a olhar os sapatos, como me pesava o pensar, enquanto abria o correio, duas vizinhas conversavam animadamente na escada “Parece que só come pão com manteiga! Veja bem!”, “E os filhos?”, “O mesmo, claro, parece que não tem para mais… Aquilo fechou de um dia para o outro! Não viram ordenado nos últimos dois meses! Agora, tem de esperar pelo subsídio de desemprego…”, “E até lá?,” “Perca o orgulho e bata à porta do ex-marido,” “Mas não se separaram por lhe bater?,” “E é melhor morrer à fome? E arrastar os filhos por orgulho?,” “Pois, é uma situação difícil… E nós não podíamos…,” “Deixe-se disso mulher! Enquanto teve trabalho, lembra-se de como andava? Toda emproada, até carro da firma conduzia, assim que se separou, acho que enfiou logo um aqui por umas noites… E com os filhos em casa! Isto serve para acordar! Não tenha pena que eu também não! Pãozinho com manteiga nunca fez mal a ninguém! Agora, olhe, vai de transportes-públicos para o centro de emprego! Já se lhe baixou a crista…,” “Mas as crianças…”, não ouvi mais, reflecti na imensidão de cretinices que se dizem nas costas de cada um, voltei a sair, fui até ao super-mercado mais próximo, regressei com bem mais que pães e manteiga, depositei os sacos no tapete de uma certa porta, toquei à campainha e corri escada acima até ao meu andar, ouvi, atrás de mim, a porta abrir-se e vozes, de uma mulher e crianças, antes de entrar em casa, de novo a imagem da boina, verde-escura, a contrastar com a brancura da calçada, não lhe li desamparo, apenas uma paciente espera de novamente ser restituída à sua função de cobrir o pensar de quem, naquele momento, jazia a seu lado.

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