Livros do Escritor

Livros do Escritor

quarta-feira, 5 de março de 2025

Dolorosamente real


 

Há um brilho distinto numa manhã de Outono, algo de inexplicável, uma nitidez e simultaneamente claridade sobre as coisas do mundo, talvez pelo último estertor da terra, antes da longa e invernosa noite, como se da própria natureza ecoasse o canto do cisne, foi sob esta luz que saíram para o mundo, ela em passos contrariados, os dele apenas resignados, entraram na viatura, “Não vamos lá dormir, não achas?”, “Penso que não há necessidade, são só duas horas e pouco de caminho…,” respondeu-lhe a olhar o retrovisor, enquanto fazia marcha-atrás, “Também acho! Nem sei porque trouxemos mala…,” “Por precaução, já te expliquei! E a família é tua, não te esqueças…”, “Eu sei disso, mas não me apetecia vê-los… Falas de família e continuo a achá-los apenas uns estranhos… Partilhámos tecto e mesa por uns tempos, contudo, para mim, são uns estranhos… E, agora, este funeral… O passado arrumado, e mal, numa qualquer gaveta, de repente, a fixar-nos, como se, afinal, nunca tivesse ficado lá bem para trás… É curioso, sabes, tudo isto só me veio desorganizar… Eu já nem lhes falava há anos! Hoje, por este imperativo-social, temos de percorrer mais de seiscentos quilómetros, se lá não dormirmos, conviver com desconhecidos, para mim, decidi há muito, serão sempre desconhecidos, conversas estéreis de ocasião, porém, lentamente o passado começará a levantar-se…”, “Estranhos, desconhecidos, não te cansas de repetir, parece-me que estás a exagerar.”, “Estranho é todo aquele que não compreendes! E, em verdade, nunca os compreendi e o inverso também sucedeu. Ou será que tenho de te prestar mais contas?”, acabavam de entrar naquela estrada que tão bem se faz pagar, como se lhe houvesse alternativas, no entanto, por estes dias, o conceito mais apregoado é “Liberdade,” se porventura lá soubessem o que isso é, ficará para outras linhas, um pouco cansado de tanto azedume, ele decide relembrar-lhe “Eu felizmente não lhes sou nada! Estou aqui somente para te acompanhar…,” “Eu sei, desculpa! Não esperava nada disto, confesso… Atendi a chamada dela sem sequer ver que número me ligava, foi instintivo, assim que lhe ouvi a voz, enfim, tudo me regressou, como se nunca de lá tivesse partido…,” “Sinal de que te foges! O passado encontra-nos sempre! É uma ilusão pensar que lhe fugimos.,” “Pois, neste caso, a razão pertence-te. Mas estava longe de fugas e esconderijos, simplesmente já nem deles me lembrava até àquela chamada…,”Ela foi cordial, certo?,” “Fria, autómata, monocórdica, um gravador teria o mesmo efeito…,” “Denotaste algum juízo sublimado no tom ou nas palavras?,” “Nada! Repito: um gravador teria o mesmo efeito…,” “Menos mal! Ao menos, já não atiram pedras… Sempre foram pródigos em juízos-de-valor! Uma existência tão desprezível, no entanto, de indicador sempre apontado para os outros. Esqueci-me de te perguntar: chegaste a dizer-lhe se comparecerias no funeral?,” “Não! Agradeci a informação e desliguei. Pelo menos, tive presença-de-espírito para limitar a comunicação a tal…,” “Fizeste muito bem! E, quando lá chegarmos, terás de manter a mesma postura. Sempre os vi como vampiros das fraquezas alheias, se detectam uma gotinha de sangue, um infortúnio, onde haja bolsos-cheios, ei-los a cercar a vítima… Quanto já não sacaram à conta desta prática?!,” “É um facto! Às vezes, penso que é impossível ser-se inteiramente feliz num seio familiar… Creio que a felicidade é inversamente proporcional aos silêncios acumulados. E como ali, com os anos, o silêncio se adensou… Pesava tanto! Dava conta disso sobretudo às refeições, éramos estranhos a partilhar uma mesa… A comunicação cingia-se a: Passa-me a salada, por favor… Onde está o comando da televisão? E pouco mais… Quando, numa refeição familiar, quem impera é a televisão, cada um fugiu para um canto de si… Dei por mim, enquanto vivi sob o mesmo tecto que eles, em tantas ocasiões, com receio de desaprender a conversar… A sério! Eu vi aberta a porta da loucura mais de uma dezena de vezes! Desculpa, estamos a viajar e eu a perder-me com estes dramas do ontem…,” “Se fossem do ontem, não os retratavas com tanta nitidez!”, “Houve momentos que nem contigo partilho! Desculpa… Receei enlouquecer! A porta da loucura escancarada e eu, da soleira, a fitá-la!,” “E o que viste?”, “A mais negra das noites! Se me engolisse, jamais regressaria… Daí o meu respeito por quem é apelidado de louco. Tiveram a coragem de dar um passo em frente e entrar, eu, pelo contrário, apenas me limitei a olhar…,” “Estás a divagar! Felizmente assim foi. Lembra-te de que não há lares perfeitos, quantas vezes, em minha casa, às refeições, a televisão a ditar as regras? Não penses que foi só contigo…,” “É diferente, acredita. Ali era um acto misericordioso, para não sucumbirmos às opressivas toneladas de silêncio.,” “Esclarece-me então: porque vais ao funeral?,” “Ainda não descobri… Como te disse, desde aquele telefonema tudo me regressou, parte de mim acredita ser a única forma de definitivamente encerrar esse capítulo! Um funeral é um adeus, compreendes?,” “Só o coração pode dizer adeus!” Há um brilho distinto numa manhã de Outono, algo de inexplicável, uma nitidez e simultaneamente claridade sobre as coisas do mundo, talvez pelo último estertor da terra, antes da longa e invernosa noite…

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.