Há um brilho distinto numa manhã de Outono,
algo de inexplicável, uma nitidez e simultaneamente claridade sobre as coisas
do mundo, talvez pelo último estertor da terra, antes da longa e invernosa
noite, como se da própria natureza ecoasse o canto do
cisne, foi sob esta luz que saíram para o mundo, ela em passos contrariados, os
dele apenas resignados, entraram na viatura, “Não vamos lá dormir,
não achas?”, “Penso que não há necessidade, são só duas horas e pouco de
caminho…,” respondeu-lhe a olhar o retrovisor, enquanto fazia marcha-atrás, “Também
acho! Nem sei porque trouxemos mala…,” “Por precaução, já te expliquei! E a
família é tua, não te esqueças…”, “Eu sei disso, mas não me apetecia vê-los…
Falas de família e continuo a achá-los apenas uns estranhos… Partilhámos tecto
e mesa por uns tempos, contudo, para mim, são uns estranhos… E, agora, este
funeral… O passado arrumado, e mal, numa qualquer gaveta, de repente, a fixar-nos,
como se, afinal, nunca tivesse ficado lá bem para trás… É curioso, sabes, tudo
isto só me veio desorganizar… Eu já nem lhes falava há anos! Hoje, por este
imperativo-social, temos de percorrer mais de seiscentos quilómetros, se lá não
dormirmos, conviver com desconhecidos, para mim, decidi há muito, serão sempre
desconhecidos, conversas estéreis de ocasião, porém, lentamente o passado
começará a levantar-se…”, “Estranhos, desconhecidos, não te cansas de repetir,
parece-me que estás a exagerar.”, “Estranho é todo aquele que não compreendes!
E, em verdade, nunca os compreendi e o inverso também sucedeu. Ou será que
tenho de te prestar mais contas?”, acabavam de entrar naquela estrada que
tão bem se faz pagar, como se lhe houvesse alternativas, no entanto, por estes
dias, o conceito mais apregoado é “Liberdade,” se porventura lá
soubessem o que isso é, ficará para outras linhas, um pouco cansado de tanto
azedume, ele decide relembrar-lhe “Eu felizmente não lhes sou nada! Estou
aqui somente para te acompanhar…,” “Eu sei, desculpa! Não esperava nada disto,
confesso… Atendi a chamada dela sem sequer ver que número me ligava, foi
instintivo, assim que lhe ouvi a voz, enfim, tudo me regressou, como se nunca
de lá tivesse partido…,” “Sinal de que te foges! O passado encontra-nos sempre!
É uma ilusão pensar que lhe fugimos.,” “Pois, neste caso, a razão pertence-te.
Mas estava longe de fugas e esconderijos, simplesmente já nem deles me lembrava
até àquela chamada…,”Ela foi cordial, certo?,” “Fria, autómata, monocórdica, um gravador teria o mesmo efeito…,”
“Denotaste algum juízo sublimado no tom ou nas palavras?,” “Nada! Repito: um
gravador teria o mesmo efeito…,” “Menos mal! Ao menos, já não atiram pedras…
Sempre foram pródigos em juízos-de-valor! Uma existência tão desprezível, no
entanto, de indicador sempre apontado para os outros. Esqueci-me de te perguntar:
chegaste a dizer-lhe se comparecerias no funeral?,” “Não! Agradeci a informação
e desliguei. Pelo menos, tive presença-de-espírito para limitar a comunicação a
tal…,” “Fizeste muito bem! E, quando lá chegarmos, terás de manter a mesma
postura. Sempre os vi como vampiros das fraquezas alheias, se detectam uma
gotinha de sangue, um infortúnio, onde haja bolsos-cheios, ei-los a cercar a
vítima… Quanto já não sacaram à conta desta prática?!,” “É um facto! Às vezes,
penso que é impossível ser-se inteiramente feliz num seio familiar… Creio que a
felicidade é inversamente proporcional aos silêncios acumulados. E como ali,
com os anos, o silêncio se adensou… Pesava tanto! Dava conta disso sobretudo às
refeições, éramos estranhos a partilhar uma mesa… A comunicação cingia-se a: Passa-me
a salada, por favor… Onde está o comando da televisão? E pouco mais…
Quando, numa refeição familiar, quem impera é a televisão, cada um fugiu para
um canto de si… Dei por mim, enquanto vivi sob o mesmo tecto que eles, em
tantas ocasiões, com receio de desaprender a conversar… A sério! Eu vi aberta a
porta da loucura mais de uma dezena de vezes! Desculpa, estamos a viajar e eu a
perder-me com estes dramas do ontem…,” “Se fossem do ontem, não os retratavas
com tanta nitidez!”, “Houve momentos que nem contigo partilho! Desculpa… Receei
enlouquecer! A porta da loucura escancarada e eu, da soleira, a fitá-la!,” “E o
que viste?”, “A mais negra das noites! Se me engolisse, jamais regressaria… Daí
o meu respeito por quem é apelidado de louco. Tiveram a coragem de dar um passo
em frente e entrar, eu, pelo contrário, apenas me limitei a olhar…,” “Estás a
divagar! Felizmente assim foi. Lembra-te de que não há lares perfeitos, quantas
vezes, em minha casa, às refeições, a televisão a ditar as regras? Não penses
que foi só contigo…,” “É diferente, acredita. Ali era um acto misericordioso,
para não sucumbirmos às opressivas toneladas de silêncio.,” “Esclarece-me
então: porque vais ao funeral?,” “Ainda não descobri… Como te disse, desde
aquele telefonema tudo me regressou, parte de mim acredita ser a única forma de
definitivamente encerrar esse capítulo! Um funeral é um adeus, compreendes?,” “Só
o coração pode dizer adeus!” Há um brilho distinto numa manhã de Outono,
algo de inexplicável, uma nitidez e simultaneamente claridade sobre as coisas
do mundo, talvez pelo último estertor da terra, antes da longa e invernosa
noite…
Livros do Escritor
quarta-feira, 5 de março de 2025
Dolorosamente real
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