Livros do Escritor

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segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Talvez um dia a vida se canse de tanto subtrair…

 


Era indesmentível o seu receio ao olhar, dali do passeio, a entrada do edifício, apesar do constante entre e sai de gente, alguns de bata branca, a alvura a pacificar corações em certa medida, no entanto, sempre dependente da distância entre o olhar e o coração, e ela, neste momento, longe destas equações, no fundo, está longe de tudo, desde aquela tarde, há uns dias, em que a frase trivial de um emissor, se tornou numa noite sem manhã no seu pensar, meses antes, começou a acordar e adormecer com aquela estranha sensação no peito esquerdo, uma rigidez que lhe afectou igualmente a mobilidade do próprio braço, pensou num mau jeito qualquer, o pensar, primeiro, procura sempre o aligeirar das coisas, talvez não o pensar, mas o sentir, os dias sucederam-se, a rigidez permaneceu, o braço espartilhado por algo que crescia em si, ela sentia-o, como se o simples movimento disseminasse esse intruso, certa noite, quis falar-lhe, mas sem saber muito bem porquê, desviou o tema para uma qualquer vulgaridade balizada entre uma factura que aguarda recibo ou as horas do miúdo na manhã seguinte, ele não reparou nas demoras dela diante do espelho, em verdade, já pouco reparava nela, tinham chegado àquela fase da partilha de um tecto, e pouco mais, também de um despojo para o futuro, com apenas seis anos, à noite, ele sentava-se no sofá, de luzes apagadas, o ecrã sempre iluminava qualquer coisa, porém, ele nunca foi de televisões, levava a mão ao bolso, e acendia o passaporte para um qualquer lugar, desde que se perdesse de si, assim ficava, até adormecer, poucas não foram as noites ali dormidas, ela não se importava, percebera, a seu tempo, mas já demasiado tarde, sempre o despojo, de seis anos, que eram dois estranhos, nunca elevaram vozes, quando assim é, ainda há sinais de luta por uma qualquer coisa, no seu caso, não, limitaram-se a afastar, gradualmente, como o navio que zarpa e o cais que permanece, até que nem horizonte, ela conformada com o trabalho ao balcão da farmácia, conferia-lhe um ar asséptico, com os anos, talvez a assepsia se tenha alastrado para o sentir, é uma possibilidade, pensava ele, que errava de emprego em emprego, não me sinto realizado, era uma frase recorrente a cada trimestre, tempo médio de permanência em cada trabalho, até que os trabalhos entraram em extinção, e ele viu-se ultrapassado pelos tempos, ou pelo que os homens querem que os tempos sejam, o seu quotidiano entre um cilindro fumegante, passaporte para um qualquer lugar, desde que se perdesse de si, e aquele café esconso, pródigo em sombras que ocultam sentires, entretanto, no meio de tudo, sempre o despojo, de seis anos, por vezes, quando chegava a casa, ela encostava-se à porta de olhos fechados, pousava a carteira e assim ficava, o tempo necessário, chegou, numa dessas vezes, a concluir que, na realidade, é um tecto que nos apresenta o outro, antes de se endividarem por um apartamento, e de surgir o despojo, de seis anos, ele sempre tão atencioso, tão solícito, a sua voz apenas entoava utopias e música, longe de não me sinto realizado, nessa altura, ela anuía às utopias e sonhava sob o enlevo daquelas canções, a vida é tão curiosa, ele apresentou-lhe horizontes, ela ensinou-lhe chão, no fim, ambos se perderam, agora, ali, no passeio, diante da entrada daquele edifício, leva a mão ao bolso, segura na firmeza possível a réstia de esperança, sob a forma de pedras oradas, que a sua avó lhe legara, assim entra, entoando aquele murmúrio secular que mais não é que trazer um pouco do céu à terra dos homens, depois dos exames, oscilantes entre dor e humilhação, o peito desnudado, escrutinado, espalmado numa máquina com o seu quê de tortura medieval, a espera, e mais espera, por fim, outra frase trivial de um emissor, se tornou numa noite sem manhã no seu pensar, Vamos precisar de fazer mais umas análises, para termos um resultado mais conclusivo. Até lá, evite realizar esforços, como poderia ela evitar esforços, se, desde há tanto, um tecto lhe ensinara o esforço do outro, deram-lhe uns comprimidos para atenuar a rigidez, e a dor no braço, olha o relógio, já passa da hora do filho, mesmo assim, o autocarro, se ele se esqueceu, o miúdo no desespero de uma espera solitária, com apenas seis anos, meu Deus, seis anos, e já com o saber de que é um tecto que nos apresenta o outro.

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