Desde que o miúdo saiu de casa,
pareces outra, desinteressada de tudo, antes, Vamos ao cinema?, eu, no sofá, já por paisagens distantes, a rezar
que não falasses, para, assim, não me obrigares a regressar, no entanto, logo
que um passo, a tua voz em cada canto da casa e de mim, Não me digas que já estás a dormir, eu, contrariadíssimo, a abrir
um olho, a negar a evidência com a cabeça, a reforçar ainda Que disparate! Só fechei os olhos um
bocadinho, por causa desta dor de cabeça, porém, tu sempre convicta, Vai tentar enganar outra! Caramba! Já nem um
programa vês comigo, e acrescentavas sempre aquele golpe fatal: Pareces um velho! Aí chegados, só podia
reagir, E tu pareces uma avozinha! Basta
ver a forma como tratas o miúdo! Quase te babas só de olhar para ele, sabia
que te acertara, sem qualquer necessidade, sempre esta carência de arenas, de
nos retalharmos, as palavras de hoje, os gumes de outrora, o teu olhar pelo
tapete, duvido que te levantasses, nesse ponto, optavas pelo silêncio, sempre
foi a tua estratégia preferida, aí não tinhas par, sabias que a minha
capitulação estava à distância de uma camisa por passar ou no paradeiro de uma
gravata, contudo, compreendo a desnecessidade do meu comentário, afinal, esta
terra, sobre a qual caminhamos, é um cemitério de sonhos, o teu quase se lhe
juntava, é tão estranho, o real que a vida, hoje, nos tira, devolve-nos amanhã
em possibilidade, um ano após aquele dia de altar, famílias e banquete, já não
disfarçávamos o azedume perante a estupidez daquela extenuada pergunta Então, para quando um herdeiro? Sabia
que não era de mim, nunca to disse, em verdade, nunca me perguntaste, também
não te devia explicações, foi antes de te conhecer, ainda trabalhei umas férias
na oficina de um tio meu para pagar o desmancho, foi de comum acordo, ela
também não queria, quando assim é, mais do que a idade, é sinal de que não
desejamos apearmo-nos na mesma estação, umas semanas depois, é curioso, quando
nos cruzávamos na rua apenas um levantar de mão, enquanto antes nos
entregávamos até à nudez do sentir, assim foi, agora é do domínio da memória,
só aí vive, e não é todos os dias, como te estava a dizer, sabia que não era de
mim, daí te tivesse convencido àquela consulta, achei engraçado que nunca me
equacionasses com a génese da extenuada pergunta, talvez já conhecesses enlaces
até à nudez do sentir, no entanto, nem queria espreitar por tais janelas, lá
foste, sem objecções, após uma semana de testes, a confirmação da dificuldade,
seguiram-se meses de medicação, em vez da nudez do sentir entregávamo-nos
abnegadamente a um objectivo, por vezes, tinha alguma dificuldade ao início,
confesso, mas sempre gostei de saborear a viagem, foste paciente com essas
minhas hesitações, reconheço, mas o teu olhar só se focava no destino, estavas
para além da viagem, cerca de meio ano depois, conseguimos, perdão,
conseguiste, a extenuada pergunta cedera lugar a felicitações, todos aquém
meses de medicação e enlaces abnegados por um objectivo, sem o doce e
desarmante tempero da nudez do sentir, desde então, a tua existência
caracterizou-se por um antes e depois, nem me vou dar ao trabalho de sublinhar
qual o marco, como é óbvio, primeiro, é tão pequenino e dependente, o nosso
espaço invadido por aquele berço intruso, e logo tu a deslocares esse sentir e
a fazeres-me o intruso, não sei até que ponto não o terei sido de facto,
daquele vosso universo tão particular, olhavam-se numa admiração mútua e
extasiada, diziam-se tanto e eu para sempre surdo aos vossos dizeres, ainda
olhava à minha volta por um dicionário de tal idioma, mas o feminino é sempre
um continente da distância, tempos depois, tentava caminhar sobre a terra, e tu
curvada no amparo das primeiras quedas, procurava, de certa forma, amenizar as
coisas Deixa! Do chão não passa, e
logo aquela tua expressão de desprezo, que nos faz procurar a lonjura,
seguiu-se a escola, os livros, as letras, os números, mas é curioso, sempre que
vos olhava, naquele vosso universo tão particular, continuava a olhar à minha
volta por um dicionário de tal idioma, e, aqui chegado, só te posso culpar por
nunca, em verdade, o teres deixado conhecer-me, mesmo quando saíamos de
raquetas, apressavas-te na intromissão, e lá ias, também de raqueta na mão como
podias segurar uma mala, um livro, um saco de compras, desde que te
intrometesses, e quando levou aquela loirinha lá a casa, nem lhe possibilitaste
terminar a apresentação, alegaste uma reunião urgente e bateste com a porta,
todos percebemos a tua fúria repentina e desmedida, pensavas que não, e, com os
anos, esquecemo-nos de que uma pergunta estúpida é sempre servida aos pares,
ainda tentaram, algumas vezes, Então,
para quando o segundo?, reconheço que, aí, a fúria e os repentes me pertencerem,
é saudável, de vez em quando, estalar o verniz, permite-nos o respirar da alma,
não achas, agora que o miúdo saiu de casa, percebi logo que ele e aquela
loirinha se iriam apear na mesma estação, podíamos olhar as possibilidades que
nos são devolvidas, e talvez uma delas nos relembre um cinema, o regresso a
casa, uma porta que se abre, a penumbra tépida, e o doce e desarmante tempero
da nudez do sentir…
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