Nessa manhã, o canto intemporal não amanheceu o mundo. O
galo morrera um pouco antes da primeira fenda de luz anunciar a derrota das
trevas. Ali estava, no meio dos excrementos, sem qualquer resquício da
majestade que fora, caído, até parecia mais pequeno, de facto, partimos apenas
com a bagagem necessária, as penas deslustradas, à sua volta, já a luz
ilusoriamente reinava sobre a terra, quando começaram a juntar-se os
companheiros da quinta, questionavam mais a ausência do canto da aurora do que
a ave ali caída, no meio dos dejectos, sem qualquer resquício da majestade que
fora, vieram de vários pontos, todos acorreram à capoeira na busca de um porquê
pela ausência do anunciar da manhã, assim que uma resposta, viravam costas,
lentamente, contudo, a meio do caminho, apercebiam-se do real estado das
coisas, e regressavam para a porta da capoeira, ali estavam todos, numa mistura
de idiomas demasiado polifónica, mas uma palavra sobressaía a todas as outras, a
palavra amanhã, desde os porcos, às vacas, as próprias galinhas, os asnos
velhos e sarnentos, passando pelas cabras, todos de costas para a outrora ave
majestosa, para sempre caída no meio da ignomínia da terra, sem qualquer
resquício da majestade que fora, Quem nos
vai anunciar, agora, o fim da noite no mundo?, gritou uma das vacas, Sim, pois é, quem vai ser?, continuou um
dos porcos, E quem vai decidir,
doravante, as coisas?, lembrou um dos perus, uma velha galinha, num tom
calmo, disse Terá de ser alguém de outro
lado. Agora, por favor, escolham quem quiserem, mas deixem-nos fazer o funeral
e o respectivo luto, de novo, polifonia pelos ares, se as galinhas não queriam
assumir, as vacas também não, os porcos ainda menos, as cabras já se retiravam,
só um dos asnos velhos e sarnentos ali permaneceu, sem saber muito bem porquê,
de repente, uma voz levantou-se Ele
ofereceu-se! O asno olhou em volta surpreendido pelo renovado barulho, quem
atentasse, por escassos segundos, no seu olhar, apercebia-se de que estava
longe do acontecer, no entanto, apesar do continente do pensar, todos o
saudaram, o seu nome ecoou pelos ares ao longo daquela manhã, instalaram uma
corneta para, dali em diante, anunciar o dia, afinal, nem todos nasceram com o
dom do canto, o asno optou por sorrir às felicitações recebidas, enquanto se
esforçava por compreender os direitos e obrigações do seu novo cargo, à tarde
deu-se o funeral, todos compareceram, bem, nem todos, o asno contemplava a
corneta que o destino lhe apresentara, ali estava, siderado, perante aquele
objecto que, visivelmente, outrora, andara pela mão de uma criança, mas que,
neste momento, para ele era o tudo, é curioso, uns querem mais, outros não
sabem o que querem, há os que só querem ser pertença dos outros, há, ainda,
aqueles que procuram o querer, também há os que nada querem, poucos, é verdade,
mas não querer também é um querer, por fim, há os que querem trocar o ver pelo
sentir, são aqueles que se debruçam à varanda de um rosto e olham o mundo pela
janela de um olhar, e como a vida é generosa para quem o compreende, mas para
este asno, velho e sarnento, a corneta bastava para lhe preencher horizontes e
pensar, o regresso do funeral deu-se já o mundo uma noite imensa, ninguém se
apercebeu do asno, velho e sarnento, e da corneta, as galinhas, condoídas com a
perda, regressaram apressadamente e em silêncio para os seus aposentos, os
restantes animais, numa passada reflectida, dialogavam sobre o amanhã e o
ontem, ninguém reparou no asno e na corneta, como se o amanhecer, naquele
preciso momento, constituísse uma impossibilidade, em verdade, convém sublinhar
que ninguém testemunhou o facto de o asno ter ficado em claro toda a madrugada,
diante da corneta, com medo de falhar o apelo da manhã, ao contrário da ave
majestosa, para sempre desvanecida deste horizonte terreno, o seu receio de
falhar sobrepôs-se a tudo, nunca, antes, lhe haviam atribuído tal
responsabilidade, apesar do frio, do canto do lobo nas lonjuras altas, da
memória, tão omnipresente, do canto inimitável da ave majestosa, a sua corneta
iria anunciar a manhã, e, pelo menos uma vez na vida, todos acorreriam para o
saudar.
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