Livros do Escritor

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terça-feira, 16 de maio de 2023

Um repente pode durar a vida

 


Uma qualquer falha, no passeio, fê-la regressar ao momento, quase o tornozelo cedia, parou, esperou a dor, veredicto de imobilidade prolongada certa, felizmente apenas uma impressão, nada mais, talvez o carrinho, onde o filho, de meio ano, dormia, ajudasse ao equilíbrio, retomou a marcha, o carrinho, de novo, aos estremeções, passeio fora, pouco depois, avistava o destino, do outro lado da rua, àquela hora, já uma fila considerável, atravessou, os travões de um carro, que se imobilizou numa evidente contrariedade, alarmaram-na, olhou o condutor com uma indisfarçável repulsa, este devolveu com a máscara do desprezo, como se ela não fosse bem-vinda a este lado do existir, afinal, mais um escravo dos ponteiros de um qualquer relógio, talvez os segundos ali subtraídos demasiado preciosos, não se deteve, por muito mais, a olhá-lo, seguiu para a cauda da bicha, que entretanto se avolumara, o carro arrancou numa sonoridade, de pneus guinchantes, desajustada, todos os olhares convergiram para aquele deplorável espectáculo, gentilmente o sujeito à sua frente deixou-a passar, via-se, pelo rosto, que era daquelas pessoas que equilibrara o sabor e o conhecer da vida, tão difícil, tão raro, ela agradeceu num movimento vertical de rosto, contudo, por ali ficou, apesar da criança, do carrinho, da hora matinal, agora, à sua frente, uma mulher, fingia não ter reparado que, atrás de si, uma criança, um carrinho, a hora matinal, obstinava-se com o rectângulo do hoje, como se da sua atenção, e destreza de dedos, dependessem muitos futuros, pela indumentária adivinhava-se difícil descortinar a ocupação, ali também não ia trabalhar, mas o cabelo, enciclopedicamente arrumado, denotava público no seu contexto laboral, lamentava-se, isso sim, que tantos lados seus estivessem votados a um tão grande desalinho, de repente, a porta de vidro abre-se, como se o tiro de partida, tudo se precipita para o interior, uns para a esquerda, outros para a direita, ela ia para o andar de cima, tinha de aguardar o elevador, o carrinho, agora, a retardar-lhe a marcha, mas era por ele que ali estava, após uma noite debruçada para as suas insondáveis dores, tudo, ainda num aquém verbo, reduzido a gemidos e choro, de vez em quando, uma pálpebra a traí-la pelo cansaço, porém, os braços, como se ramos no abrigo do viajante, sempre derramados para o interior do berço, assim fora a sua madrugada, e muitas anteriores, só quando o elevador se imobiliza no primeiro andar e as portas se abrem, é que ela relembra aquele cheiro, característico deste lugar e de outros, onde se procura uma fuga da doença, no fundo, um cheiro a fim, um pouco isso, remédios somados a um cinzentismo das coisas (rostos, expressões, gestos, esperanças…), aguardou, pelo seu nome, numa sala, deficientemente iluminada, em pouco tempo, nem vislumbre de lugar, ela ainda foi a tempo, à sua volta, tosse, espirros, dores silenciadas, olhares caídos, reparou num casal idoso que se amparava numa marcha sem relógio, mas gloriosa, é curioso, por ali não havia vestígios de pneus guinchantes, de máscaras de desprezo, de escravos dos ponteiros de um qualquer relógio, pelo contrário, tudo provinha do possível de cada um, talvez antes os ponteiros caminhassem, em vez da vertigem do agora, daí esta aprendizagem, era por ele que ali estavam, do lugar onde se sentara, percebeu-lhe aquela expressão de quem partira de si mesmo, tão estranho, pensou ela, partir e ficar simultaneamente, a mulher, a seu lado, persiste naquele amparo incondicional, ele acompanha-lhe os passos, irmanado, a boca descaída, como se capitulasse de insistir com o mundo, ela ainda os acompanhou por uns instantes, partir e ficar simultaneamente, tão estranho, insistiu nesta ideia, talvez tudo se resuma a isto, daí tantos equívocos, entretanto, chamaram por um nome que lhe era bem familiar, levantou-se, de novo, o carrinho, começou a debitar com licenças, cruzou-se com o sujeito que a deixara passar, na fila, lá fora, uma daquelas pessoas que equilibrara o sabor e o conhecer da vida, tão difícil,  tão raro, mais uma vez, à vista daquele rosto, aquela ideia a atravessar-lhe o pensar,  partir e ficar simultaneamente, tão estranho, sorriu-lhe, também se cruzou com a mulher do cabelo enciclopedicamente arrumado, persistia com o rectângulo do hoje, como se da sua atenção, e destreza de dedos, dependessem muitos futuros, antes de entrar, a porta do gabinete entretanto aberta, de novo, um nome que lhe era bem familiar ecoou pelo espaço circundante, olhou à sua volta, tudo permanecia como até então, o carrinho agora em silêncio, ela lá foi, naquela marcha desamparada, sem vestígios de glória, partir e ficar simultaneamente, compreendeu, afinal, há quantas madrugadas é que os seus desamparados braços, como se ramos no abrigo do viajante, se derramam para o interior de um berço?

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