Livros do Escritor

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sábado, 13 de maio de 2023

Uma janela que se fecha, uma voz que se cala

 


Há quanto tempo aquela janela fechada? O estore para baixo, tal como pálpebras a ocultar almas, perdi a conta aos dias desde que… Antes (há quanto?), logo pela manhã, bem cedo, o dia a passear-se pelo interior em passos alumiados, parecia que toda a casa cantava, ela, de quando em vez, na janela, ora a lavar vidros, ora a arejar tapetes, só muito raramente em olhares de ociosidade, no fundo, não se detinha em nenhum ponto específico, o seu olhar vagabundeava no acaso de uma sede por uma distância sempre escassa, a meio da manhã, saía para as compras, alternava entre a mercearia, na praceta em frente, e a praça, um pouco mais longe, ficava ao lado da igreja, à hora do almoço, o marido em casa, saudava-a sempre com um beijo na testa, a princípio, ela achou graça, mas, com o tempo, o peso do gesto a acentuar-se, isto só sucede quando o ontem nos irrompe alma adentro, ela a procurar o momento em que os lábios dele partiram dos seus para se elevarem ao pudor da testa, como se um beijo paternal, em verdade, nunca lhe censurou este gesto, talvez não houvesse uma qualquer razão obscura na sua génese, ou desinteresse, bem, neste aspecto, as coisas já foram melhores, nela ainda perduram os aromas a fruta derramados pelas sombras estivais, aquando dos piqueniques, lá na província, onde se conheceram, eram da mesma aldeia, ela, em verdade, só reparou nele quando, num certo baile, a meio de uma dança, ele lhe confidenciou que, no dia seguinte, ia para a capital, queria ser polícia, sem saber muito bem porquê, ela aproximou os seus lábios dos dele, é curioso, nesse momento, ainda pensou em beijar-lhe a testa, contudo, por pudor, declinou esta possibilidade, afigurava-se-lhe demasiado maternal, desde então, entre cartas de prosa sentida, reencontravam-se aos fins-de-semana, e nas férias, num Domingo de manhã, ele a demorar-se com o pai dela, a porta da sala fechada, por fim, ambos saíram com expressões de acordo, chamou-a à parte, desembrulhou um anel, envolto em papel vegetal, com alguma dificuldade, os dedos grossos e ansiosos a retardar delicadezas, por fim, o objecto desvelado, à vista daquele símbolo de uma vida partilhada, a emoção a embaciar-lhe o mundo, a voz a esconder-se-lhe, no entanto, percebeu nele um qualquer orgulho por um dever cumprido, mais tarde, haveria de reencontrar esta peculiar expressão, ainda a atribuiu à sua vocação profissional, mas não, nada como tecto e tempo para pousarmos os artefactos com que nos escondemos do mundo, e foi, também, na intimidade que lhe reencontrou-lhe aquela peculiar expressão de um qualquer orgulho por um dever cumprido, era muito subtil, nesse momento, ele nada verbalizava, como se ficasse na varanda de si a contemplar-se, foi este o seu percurso com os anos, caminhar do mundo para si, ela não o sabia, não o adivinhava, houve quem a acusasse de falta de chão quando o ajudou a desembrulhar o papel vegetal, refutava estas acusações, em certa medida tinha a sua razão, afinal, nada como tecto e tempo para pousarmos os artefactos com que nos escondemos do mundo, após o almoço, ele regressava à esquadra, ainda não tinham conseguido juntar para um carro, ela ficava, da janela, a vê-lo afastar-se, antes da escadinha que precede a esquina do prédio em frente, ele virava-se, de mão no ar, para um último adeus, ela retribuía, ao final do dia, o filho de volta da escola, depois regressava ele, o serão, os afazeres despercebidos de tanto repetidos serem, até que desaguavam no sofá, e naquele ecrã que os fazia esquecerem-se, ele em esforços para não adormecer, chegava mesmo a levantar-se e a molhar o rosto, umas gotas esquecidas na face denunciavam-lhe o gesto, de certa forma, ela apreciava-lhe o esforço, nesses momentos, percebia-lhe no rosto, uma vez mais, aquela peculiar expressão de um qualquer orgulho por um dever cumprido, o dia seguinte diferenciava-se apenas pelo número no calendário, certa tarde, já o filho quase a terminar a faculdade, ele a regressar da esquadra, ainda a pé, houve dinheiro para um carrito, mas como trabalhava perto, os fins-de-semana serviam para descansar, ela nunca se opôs a poupar, apesar de a ter ouvido comentar, variadíssimas vezes, os passeios dos vizinhos, contudo, os dias sucederam-se, e hoje, com as notícias alarmantes do número de acidentes, seria um completo disparate, estranhou a janela fechada, o estore corrido como pálpebras a ocultar almas, parou um instante após subir a escadinha que precede a esquina do prédio em frente, antes de entrar em casa já a chamava, abriu a porta, e sem saber muito bem o porquê, o seu olhar incidiu numa folha, na vertical, encostada à jarra, sobre a mesinha de entrada, com a letra dela, nem se lembra de lhe ter pegado, naquelas linhas, ela falava de regressos, de lugares onde perduram os aromas a fruta derramados pelas sombras estivais, aquando dos piqueniques, dizia-lhe que o esperava, com uma toalha estendida sobre a relva, ele pousou a carta, desde então, nada mais se soube deles, há pouco tempo, uma placa Vende-se, com a cara de uma senhora, coloriu ligeiramente a janela fechada, certa vez, não sei se é verdade, houve quem jurasse tê-los visto, de novo, a desembrulhar papel vegetal sob uma sombra de Verão.

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