Há quanto tempo aquela janela fechada? O estore para baixo,
tal como pálpebras a ocultar almas, perdi a conta aos dias desde que… Antes (há
quanto?), logo pela manhã, bem cedo, o dia a passear-se pelo interior em passos
alumiados, parecia que toda a casa cantava, ela, de quando em vez, na janela,
ora a lavar vidros, ora a arejar tapetes, só muito raramente em olhares de
ociosidade, no fundo, não se detinha em nenhum ponto específico, o seu olhar
vagabundeava no acaso de uma sede por uma distância sempre escassa, a meio da
manhã, saía para as compras, alternava entre a mercearia, na praceta em frente,
e a praça, um pouco mais longe, ficava ao lado da igreja, à hora do almoço, o
marido em casa, saudava-a sempre com um beijo na testa, a princípio, ela achou
graça, mas, com o tempo, o peso do gesto a acentuar-se, isto só sucede quando o
ontem nos irrompe alma adentro, ela a procurar o momento em que os lábios dele
partiram dos seus para se elevarem ao pudor da testa, como se um beijo
paternal, em verdade, nunca lhe censurou este gesto, talvez não houvesse uma
qualquer razão obscura na sua génese, ou desinteresse, bem, neste aspecto, as
coisas já foram melhores, nela ainda perduram os aromas a fruta derramados
pelas sombras estivais, aquando dos piqueniques, lá na província, onde se
conheceram, eram da mesma aldeia, ela, em verdade, só reparou nele quando, num
certo baile, a meio de uma dança, ele lhe confidenciou que, no dia seguinte, ia
para a capital, queria ser polícia, sem saber muito bem porquê, ela aproximou os
seus lábios dos dele, é curioso, nesse momento, ainda pensou em beijar-lhe a
testa, contudo, por pudor, declinou esta possibilidade, afigurava-se-lhe
demasiado maternal, desde então, entre cartas de prosa sentida,
reencontravam-se aos fins-de-semana, e nas férias, num Domingo de manhã, ele a
demorar-se com o pai dela, a porta da sala fechada, por fim, ambos saíram com
expressões de acordo, chamou-a à parte, desembrulhou um anel, envolto em papel
vegetal, com alguma dificuldade, os dedos grossos e ansiosos a retardar
delicadezas, por fim, o objecto desvelado, à vista daquele símbolo de uma vida
partilhada, a emoção a embaciar-lhe o mundo, a voz a esconder-se-lhe, no
entanto, percebeu nele um qualquer orgulho por um dever cumprido, mais tarde,
haveria de reencontrar esta peculiar expressão, ainda a atribuiu à sua vocação
profissional, mas não, nada como tecto e tempo para pousarmos os artefactos com
que nos escondemos do mundo, e foi, também, na intimidade que lhe
reencontrou-lhe aquela peculiar expressão de um qualquer orgulho por um dever
cumprido, era muito subtil, nesse momento, ele nada verbalizava, como se
ficasse na varanda de si a contemplar-se, foi este o seu percurso com os anos,
caminhar do mundo para si, ela não o sabia, não o adivinhava, houve quem a
acusasse de falta de chão quando o ajudou a desembrulhar o papel vegetal,
refutava estas acusações, em certa medida tinha a sua razão, afinal, nada como
tecto e tempo para pousarmos os artefactos com que nos escondemos do mundo,
após o almoço, ele regressava à esquadra, ainda não tinham conseguido juntar
para um carro, ela ficava, da janela, a vê-lo afastar-se, antes da escadinha
que precede a esquina do prédio em frente, ele virava-se, de mão no ar, para um
último adeus, ela retribuía, ao final do dia, o filho de volta da escola,
depois regressava ele, o serão, os afazeres despercebidos de tanto repetidos
serem, até que desaguavam no sofá, e naquele ecrã que os fazia esquecerem-se,
ele em esforços para não adormecer, chegava mesmo a levantar-se e a molhar o
rosto, umas gotas esquecidas na face denunciavam-lhe o gesto, de certa forma,
ela apreciava-lhe o esforço, nesses momentos, percebia-lhe no rosto, uma vez
mais, aquela peculiar expressão de um qualquer orgulho por um dever cumprido, o
dia seguinte diferenciava-se apenas pelo número no calendário, certa tarde, já
o filho quase a terminar a faculdade, ele a regressar da esquadra, ainda a pé,
houve dinheiro para um carrito, mas como trabalhava perto, os fins-de-semana
serviam para descansar, ela nunca se opôs a poupar, apesar de a ter ouvido
comentar, variadíssimas vezes, os passeios dos vizinhos, contudo, os dias
sucederam-se, e hoje, com as notícias alarmantes do número de acidentes, seria
um completo disparate, estranhou a janela fechada, o estore corrido como
pálpebras a ocultar almas, parou um instante após subir a escadinha que precede
a esquina do prédio em frente, antes de entrar em casa já a chamava, abriu a
porta, e sem saber muito bem o porquê, o seu olhar incidiu numa folha, na
vertical, encostada à jarra, sobre a mesinha de entrada, com a letra dela, nem
se lembra de lhe ter pegado, naquelas linhas, ela falava de regressos, de
lugares onde perduram os aromas a fruta derramados pelas sombras estivais,
aquando dos piqueniques, dizia-lhe que o esperava, com uma toalha estendida
sobre a relva, ele pousou a carta, desde então, nada mais se soube deles, há
pouco tempo, uma placa Vende-se, com
a cara de uma senhora, coloriu ligeiramente a janela fechada, certa vez, não
sei se é verdade, houve quem jurasse tê-los visto, de novo, a desembrulhar
papel vegetal sob uma sombra de Verão.
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