Livros do Escritor

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domingo, 21 de maio de 2023

A compreensão do Inverno

 


Uma dor algures na cabeça, logo em todo lado de si e à sua volta, a luz, de novo, a piscar, o auscultador, antes da primeira sílaba, fecha os olhos, talvez uma súplica para que a dor o esqueça por uns instantes, agora a voz sai-lhe naquele tom que tão bem conhece, afinal uma criação sua, mas que não é o seu, do outro lado, a voz de uma mulher jovem, percebe-lhe urgência pela velocidade das palavras, a questão cansada (E pretende o crédito para…), não tardou a resposta cosmética (Para obras…), a mensagem, agora, a sair-lhe destituída de qualquer sentir, como se emitida por uma voz demasiado distante da sua, Vou precisar do número do seu B. I. e do número do seu NIF. Tem-nos aí à mão? Há questões, de tão repetidas, que se sabe o tempo da resposta, assim que o NIF a chegar-lhe pelo auscultador, logo os seus dedos a iluminar o ecrã, o BI era apenas um pretexto, nunca o chegava a apontar, por ali, nada de novo, mais alguém que perdeu a corrida com os números, de novo, como se emitida por uma voz demasiado distante da sua, a frase já no mundo, Lamento informá-la, mas não nos vai ser possível conceder-lhe qualquer crédito… Tem aqui vencido…, ela já desligara, pareceu ouvir-lhe uma longa expiração, talvez fosse só uma impressão sua, talvez, no início, ainda procurava confortar, contudo, os começos têm urgência na memória, daí a sua rapidez, deixou de se interessar, também ele fora ultrapassado, há quem lhe chame incompreensão, é possível, olhou o ecrã, uma vida reduzida a números – a biografia numérica –, daquela voz, de mulher jovem, a urgência pela velocidade das palavras, apenas escolhos na forma de algarismos, ele a pensar (em que momento fora ela ultrapassada pelos números?), tudo ali diante da sua atenção, o electrodoméstico novo, umas férias em cenário de postal, o carrito em segunda mão, mas jeitosinho, por sinal, aqui e ali uns atrasos, sempre o tal crédito vencido, mas nada de significativo, até àquela data, devidamente sublinhada, desde então, os únicos números que cresceram foram os que ela tem a pagar, como se fossem acometidos de uma qualquer vertigem, tanta estrada para tão curtas pernas, pareceu-lhe ouvir uma longa expiração, entre números, colunas, somas, subtracções, percentagens, nem um recanto para se ouvir uma longa expiração, ou a alegria contida pelo electrodoméstico novo, os beijos com sabor a manhã sob o céu daquele cenário de postal, os passeios a Sintra, ao fim-de-semana, no carrito em segunda mão, mas jeitosinho, por sinal, à sua frente, e apesar da atenção dispensada ao ecrã, apenas números, colunas, somas, subtracções, percentagens, nem um recanto para se ouvir uma longa expiração, ainda se deteve, por uns instantes, em busca de uma saída naquele labirinto de colunas, mas o olhar da filha, na moldura à sua frente, a relembrar-lhe os passos do lar, olha-o do colo da mãe, uma fotografia que ele tirou, há cerca de um ano, a sua mão acaba sempre por ali pousar, como se seguisse os passos do olhar, é curioso, após certos telefonemas, como este último, pensa-se, assim fica durante o necessário, de costas para os ponteiros, em sua casa, ainda não houve como para electrodomésticos novos, tudo já lavou em demasia sob outros tectos, os beijos trocados foram sempre longe de cenários de postal, porém, nunca precisaram de tais horizontes para saberem a manhãs, os passeios de fim-de-semana entre a espera de um autocarro e a pressa do comboio, nem para um seguro lhes chegava, talvez por isso continuassem à frente dos números, numa corrida sem vencedores, pousou a moldura, desligou o ecrã, levantou-se, saiu, de repente, apeteceu-lhe saborear a manhã, talvez para silenciar uma expiração que se avizinha…

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