Uma dor algures na cabeça, logo em
todo lado de si e à sua volta, a luz, de novo, a piscar, o auscultador, antes
da primeira sílaba, fecha os olhos, talvez uma súplica para que a dor o esqueça
por uns instantes, agora a voz sai-lhe naquele tom que tão bem conhece, afinal
uma criação sua, mas que não é o seu, do outro lado, a voz de uma mulher jovem,
percebe-lhe urgência pela velocidade das palavras, a questão cansada (E pretende o crédito para…), não tardou
a resposta cosmética (Para obras…), a
mensagem, agora, a sair-lhe destituída de qualquer sentir, como se emitida por
uma voz demasiado distante da sua, Vou
precisar do número do seu B. I. e do número do seu NIF. Tem-nos aí à mão? Há
questões, de tão repetidas, que se sabe o tempo da resposta, assim que o NIF a
chegar-lhe pelo auscultador, logo os seus dedos a iluminar o ecrã, o BI era
apenas um pretexto, nunca o chegava a apontar, por ali, nada de novo, mais
alguém que perdeu a corrida com os números, de novo, como se emitida por uma
voz demasiado distante da sua, a frase já no mundo, Lamento informá-la, mas não nos vai ser possível conceder-lhe qualquer
crédito… Tem aqui vencido…, ela já desligara, pareceu ouvir-lhe uma longa
expiração, talvez fosse só uma impressão sua, talvez, no início, ainda
procurava confortar, contudo, os começos têm urgência na memória, daí a sua
rapidez, deixou de se interessar, também ele fora ultrapassado, há quem lhe
chame incompreensão, é possível, olhou o ecrã, uma vida reduzida a números – a
biografia numérica –, daquela voz, de mulher jovem, a urgência pela velocidade
das palavras, apenas escolhos na forma de algarismos, ele a pensar (em que momento fora ela ultrapassada pelos
números?), tudo ali diante da sua atenção, o electrodoméstico novo, umas
férias em cenário de postal, o carrito em segunda mão, mas jeitosinho, por
sinal, aqui e ali uns atrasos, sempre o tal crédito vencido, mas nada de
significativo, até àquela data, devidamente sublinhada, desde então, os únicos
números que cresceram foram os que ela tem a pagar, como se fossem acometidos
de uma qualquer vertigem, tanta estrada para tão curtas pernas, pareceu-lhe
ouvir uma longa expiração, entre números, colunas, somas, subtracções,
percentagens, nem um recanto para se ouvir uma longa expiração, ou a alegria
contida pelo electrodoméstico novo, os beijos com sabor a manhã sob o céu
daquele cenário de postal, os passeios a Sintra, ao fim-de-semana, no carrito
em segunda mão, mas jeitosinho, por sinal, à sua frente, e apesar da atenção
dispensada ao ecrã, apenas números, colunas, somas, subtracções, percentagens,
nem um recanto para se ouvir uma longa expiração, ainda se deteve, por uns
instantes, em busca de uma saída naquele labirinto de colunas, mas o olhar da
filha, na moldura à sua frente, a relembrar-lhe os passos do lar, olha-o do
colo da mãe, uma fotografia que ele tirou, há cerca de um ano, a sua mão acaba
sempre por ali pousar, como se seguisse os passos do olhar, é curioso, após
certos telefonemas, como este último, pensa-se, assim fica durante o
necessário, de costas para os ponteiros, em sua casa, ainda não houve como para
electrodomésticos novos, tudo já lavou em demasia sob outros tectos, os beijos
trocados foram sempre longe de cenários de postal, porém, nunca precisaram de
tais horizontes para saberem a manhãs, os passeios de fim-de-semana entre a
espera de um autocarro e a pressa do comboio, nem para um seguro lhes chegava,
talvez por isso continuassem à frente dos números, numa corrida sem vencedores,
pousou a moldura, desligou o ecrã, levantou-se, saiu, de repente, apeteceu-lhe
saborear a manhã, talvez para silenciar uma expiração que se avizinha…
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