Sim, é você novamente… Já lhe
disse que não vale a pena insistir. Não, não vá por aí. Quem você pensa que é
para julgar os outros? Sabe, um dos seus problemas foi sempre ficar à
superfície das coisas. Não, já lhe disse que não abdico do tratamento na terceira
pessoa. Veja onde nos conduziram as familiaridades. Como estava a dizer, você
fica sempre à superfície das coisas, centra-se nas acções, mas não se preocupa
com as causas, e, quantas vezes, aí a compreensão de tudo, lembra-se daquela
vizinha que, certa tarde, um grande alarido lá pelo bairro, o Abílio da
mercearia a segurá-la por um braço, à porta do estabelecimento, a abusar,
propositadamente, daquele seu vozeirão, ela, coitada, com a alma chovida por
entre as pedras da calçada, exposta aos passeios e às marquises em redor, nós,
não sei se lembra, a regressar a casa, não foram os impropérios trovoados do
Abílio que me imobilizaram, mas sim aquela desesperança cujo rosto ainda hoje
ignoro, os cabelos como um xaile, a ocultar a face, derramados para o chão do
mundo, você, logo, Estas ladras, ainda lhe gritou, Chame as autoridades, senhor
Abílio, de certa forma, ele grato pelo reforço, nisto, eu atravesso o passeio,
pergunto-lhe o que ela não pagou, estendo-lhe a respectiva nota, ainda lhe digo
para ficar com o troco, mas que a largasse de imediato, e, acima de tudo,
devolvesse silêncio aos passeios e marquises em redor, no entanto, e em dívida
com a verdade, não saí de mim, permaneci onde estava, a seu lado, você
(lembra-se?) ainda por duas vezes gritou Chame as autoridades, senhor Abílio, desejei tanto que se calasse, confesso que me apeteceu
emprestar trovoada à voz e gritar-lhe Cale-se,
há coisas que se nos somam à sombra, aquela
desesperança cujo rosto ainda hoje ignoro, os cabelos como um xaile, a ocultar
a face, derramados para o chão do mundo, é uma delas, acho que não há dia em
que não me visite para me relembrar que o arrependimento nos inclina para a
terra, segui para casa, você a meu lado, mas sempre a olhar para trás, os dias
seguintes povoaram-se de versões do sucedido, nenhuma me interessou, prefiro a
que senti naquele momento, ainda hoje, quando vou à janela, procuro, por entre
as pedras da calçada, uma alma que se derramou, você sempre com a versão da
ladra, e daí não se demoveu, ainda tentei que naquela casa talvez o pão aquém
das bocas, mas a resposta não tardava, E o trabalhinho que é bom, ah, e o
trabalhinho, recordei-lhe os números das portas que se fecham a cada dia,
talvez nem o devesse fazer, afinal, quando a conheci, você bem que percebia
essa realidade, às vezes, duvido da sua memória (ou será da minha?), houve uma
altura em que os meus dias sentado a olhar-lhe o rosto, sobretudo naquela foto
que lhe tirei junto à macieira no quintal dos pais, para jamais o esquecer,
pelo menos a voz continuo a ouvir, como se ela ainda aqui a meu lado, a
recordar-me, no fundo, quem eu sou, certa tarde, julgo que pouco antes do
Natal, a porta do prédio aberta, sempre os inquilinos de ocasião, nada perdura
nestes dias, na dificuldade da descida, um pé a atraiçoar-me o equilíbrio, o
Inverno já se apresentara aos degraus, só me lembro de vozes à minha volta,
pesarosas, aquando do meu regresso, se é que já não partira de vez, à sombra de
uma macieira, você a oferecer os seus préstimos, na altura, confesso a minha
gratidão, afinal, uma das pernas com mais ferros que osso, embora logo
acertássemos valores, habituei-me à sua presença, ou foi-me habituando, talvez
isso, mas nunca às suas opiniões, certa noite, enquanto se festejavam santos
nas ruas, você a deitar-se a meu lado, coitada, pensei eu, vem ao engano, nesta
fase, só se for mesmo pela companhia, você ainda se esforçou, porém, tudo tem
um tempo, e o meu à sombra de uma macieira, daí aos códigos dos cartões não
tardou muito, confesso que dava jeito, para as compras e demais carências, pois
um osso não dói tanto como um ferro, na altura, não lhe disse nada, não sei
porquê, desconfio que as dores nos familiarizam com o silêncio, no entanto,
quando você arrumou as fotos, naquele gavetão, na sala de estar, sem sequer uma
palavra, começou a distância, sabe, e voltando aquela desesperança cujo rosto
ainda hoje ignoro, os cabelos como um xaile, a ocultar a face, derramados para
o chão do mundo, se eu, nesse momento, tivesse, a meu lado, um perfume de
macieira, de certeza que atravessava o passeio, perguntava-lhe o que ela não
pagou, estendia-lhe a respectiva nota, ainda lhe dizia para ficar com o troco,
mas que a largasse de imediato, e, acima de tudo, devolvesse silêncio aos
passeios e marquises em redor, talvez assim, evitasse o derramar de uma
alma por entre as pedras da calçada.
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