Os seus passos, agora lentos, mas não
menos decididos, naquela cadência muito própria de quem ainda procura um
apeadeiro, onde talvez apenas o vento, pelas mãos aquelas pedras de súplica, os
lábios a conferir-lhes um sentido, tudo numa singular discrição, afinal, a
oração sempre é um caminho, o destino, agora, a uns passos, sobe os degraus
daquela forma infantil, ainda se lembra, é verdade, tudo é regressar, àquela
hora ainda o silêncio, e como ela o apreciava, há lugares que nos elevam,
talvez não muitos, mas a igreja da sua terra era um deles, poucos vultos por
ali estavam, pelo xaile dizia-lhes os nomes, deixou-se ficar perto da porta,
ali queria estar por inteiro, olhar aqueles quadros com ressonâncias das
alturas, perder-se no precioso brilho emanado por cada vela, aquele frágil
equilíbrio que se derruba a cada brisa, mas que se reergue num milagre aparente
para iluminar e, quem sabe, guiar passos alheios, e, sim, o silêncio, a
amplificar os gritos que há muito soterrara, permanecia sentada, as pedras a rolar
por entre os dedos sob a cadência dos lábios, afinal, a oração sempre é um
caminho, os joelhos já não lhe permitiam mais, chegou a dizer bem alto, uma
manhã, após a eucaristia, Ajoelhem-se os
jovens, esses é que precisam de aprender a humildade, houve xailes a anuir,
nunca soube bem porquê, mas ali dentro parecia que o mal não encontrava porta,
e não se cansava de olhar, olhar, e olhar, aquele corpo flagelado que pendia de
uma cruz, como se cada chaga nos aquietasse uma lágrima da memória, o rosto pendente
a olhar a terra, no fundo, a olhar-nos, do seu lado esquerdo, aquela concha de
pedra onde se gravou o nome aos três filhos, foi há tanto, e há tão pouco,
parece que ontem, chega a uma altura em que tudo é um ontem, e nós já não
pertencemos ao amanhã, os seus passos acelerados, agora a descer a escada, e a
pergunta ansiosa O senhor doutor não vem
esta semana?, a mãe a levantar-lhe uma sobrancelha, Porquê essa ansiedade pelo senhor doutor?, ela a disfarçar, uma mão
pelo cabelo, o olhar pela janela, Por
nada, por nada, apenas curiosidade, porém, há muito que a mãe elevara a
sobrancelha, desde que o senhor doutor se hospedara num dos quartos, lá em casa, que o olhar da
filha seguia por trilhos além-janela, todos os meses ficava, pelo menos, uma
semana, uma bênção para gente de tão remotas paragens, num ontem há tanto ido,
a presença do médico, em certos espíritos médico rima com vida, talvez isso
inquietasse em demasia a sobrancelha materna, às horas da refeição
percebia-lhes os olhares, a prontidão com que ele ia ajudá-la a trazer água do
poço, os risos, os vizinhos procuravam baixar a sobrancelha materna, Ó mulher, sempre é o senhor doutor! Não há doença que vos pegue, e, de facto,
sempre que a semana findava, e ele partia para a freguesia próxima, deixava as
oferendas como pagamento pela estadia, coelhos, vagens, galinhas, alheiras, e
tudo o mais que os braços pudessem arrancar à terra, com o tempo, a ansiedade
numa questão cresceu O senhor doutor não
vem esta semana?, era demasiado evidente, a partir daí as duas sobrancelhas
maternas elevadas, o senhor doutor tratava os doentes de fora, enquanto ali
refreava o calor de um olhar e a sede de uns lábios entreabertos, razão tinham
certos espíritos, de facto, médico rima com vida, quando soube da notícia,
pelas duas sobrancelhas elevadas, o senhor doutor assumiu todas as
responsabilidades, a gente da povoação intercedeu pelo senhor doutor, houve,
naquela casa, mais coelhos, vagens, galinhas, alheiras, e tudo o mais que os
braços pudessem arrancar à terra, a criança recebeu o apelido paterno, as
sobrancelhas, para sempre elevadas, ainda falaram do rito em falta, o senhor
doutor desculpou-se com os pais no Porto, o trabalho infindável nas outras
freguesias, a filha saciava-se com aquela semana por mês, com o tempo, houve
mais dois filhos, também herdaram o apelido paterno, talvez um dia, quando a
compreensão lhes iluminar o passado, o rejeitem, talvez, o ontem foi-se
aproximando do horizonte, as sobrancelhas, para sempre elevadas, conheceram a
terra, o senhor doutor não pôde comparecer, andava por outras freguesias,
soube-se, mais tarde, que, noutros lados, também refreava o calor de um olhar e
a sede de uns lábios entreabertos, aquela semana ainda persistiu um pouco no
tempo, e, sempre que ele se aproximava da porta, os seus passos acelerados,
tudo há tanto, e, no entanto, sempre no ontem, nunca houve censuras, afinal,
era o senhor doutor, hoje, ali sentada, num daqueles lugares que nos elevam, a
olhar aquele corpo flagelado que pendia de uma cruz, como se cada chaga nos
aquietasse uma lágrima da memória, o rosto pendente a olhar a terra, no fundo,
a olhar-nos, compreende-se, isto só acontece quando o arrependimento não nos
fecha a janela do ontem.
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