Nietzsche defendia que a essência humana se caracteriza por “Vontade-de- Poder”, até numa frase, com um pouco de atenção, é mensurável essa “Vontade-de-Poder”, não estranhem o facto de iniciar esta crónica com o grande filósofo alemão, porque hoje vou tratar a personagem que mais me fez recordar esta teoria nietzschiana, de facto, cada sofrível frase por si dita transparecia essa “Vontade-de-Poder”, também só lhe restava o verbo, pouco mais, apresentava-se como um douto na sétima-arte, durante um certo período, realizámos trocas clandestinas de filmes em formato dvd, um dos aspectos que mais me fascinava era, quando lhe entregava um filme novo, enquanto as suas pupilas quase tacteavam a capa, ouvi-lo exclamar “Isto é ganda filme! Isto é ganda filme!”, e, ao mesmo tempo, abanava a caixa, da primeira vez, totalmente desprevenido, ainda retorqui “Mas… Mas… Já viste?”, assim que terminei de proferir a última sílaba da questão, logo o arrependimento a dominar-me, o que é natural, uma vez que estava perante um douto na sétima-arte, se ele exclamava “Isto é ganda filme! Isto é ganda filme!”, mesmo sem o ter visto, eu tinha mais de me silenciar e anuir, em vez de ser povoado por questões estéreis como: Mas se ainda não viu o filme, como pode afirmar que é bom? Por que ouviu dizer? Será que é influenciável a este ponto? Logo eu que sou apologista de que a base da inteligência está no exercício do espírito-crítico, porém, confesso, e na justa reposição da Verdade, que esta personagem demarca um antes e depois em relação aos géneros-cinematográficos, abriu uma nova categoria, é a realidade, se antes tínhamos, entre outras: drama, acção, comédia, terror, suspense, guerra; passámos a ter: “filmes à Laurindo!” E o que é um filme à Laurindo, questionar-se-á o leitor? Pois, em verdade, não é um filme, mas sim um sonífero! Por norma, só enfatizamos o que nos falta, esta sublinhada vertente cultural, pontuada com máximas, até para alguns familiares, “Deixa-te disso: não é filme para ti”, no fundo era uma forma de sublimar um nono-ano incompleto, a vida é muito simples, a nossa recusa dos factos é que a torna penosa, inocente como sou, por vezes, ainda tentei elencar alguns óbices a filmes colocados na distinta categoria dos tais à Laurindo, as respostas eram proporcionais à capacidade argumentativa (“Tá maluco! É ganda filme!”), perante tal retórica, o que fazer? Houve uma altura da sua vida em que realizou duas viagens, regressou como se de um Marco Polo se tratasse, uma vez mais, as suas máximas ecoaram, sobretudo para um familiar (“Quando viajamos, vemos as coisas logo por outro prisma. É o que te falta! Devias viajar mais!”), comigo trocou umas frases sobre um destino que eu bem conhecia (“Aquilo é poesia em estado-puro”), pois, a frase que intitula esta crónica, confesso não ser desajustada do destino em causa, problema é o desajuste com o emissor, achei-a rebuscada, como um escudo para aquele nono-ano incompleto, uma das grandes aprendizagens da vida é o silêncio, foi a minha opção aqui, devidamente pontuada com um sorriso (“Aquilo é poesia em estado-puro”), poesia, pensei, mas que poetas terá lido? Pessoa, Antero, Pessanha, Rilke, Holderlin… Pois, isto é uma crónica, não, não valia a pena, como demorei a chegar ao silêncio, atenção, ainda lhe estou a bater à porta, também, por algum tempo, foi vê-lo com um livro bem volumoso debaixo do braço, veio-me logo à mente aquele velho dito popular (“Um burro carregado de livros é um doutor”), não sei porquê, geralmente Dostoiévski, achei extraordinário quando me começou a elencar as virtudes das temáticas do génio russo, talvez se tivesse esquecido de que fora eu a falar-lhe de Raskálnikov, da Sonja, e de tantas outras extraordinárias criações de Dostoiévski, uma das grandes aprendizagens da vida é o silêncio, achei delicioso aquele malabarismo com o grosso volume, de forma a que todos vissem, confesso que me enterneceu, ainda pensei em dizer-lhe, por que não lês o “Noites Brancas”? É uma obra superlativa, um Dostoiévski bem mais luminoso, e o livro é pequenino, escusas de andar tão carregado, porém, com o “Noites Brancas” não lhe seria possível aquele malabarismo, e como não é muito volumoso, talvez não ocultasse devidamente aquele teimoso e inconveniente nono-ano incompleto, mas, em verdade, a minha preocupação de ele andar com tal volume, debaixo do braço, era séria, pois vira-se privado da carta-de-condução, certa noite tivera conhecimento de que, para conduzir, necessitava de: carta-de-condução, seguro, registo-de-propriedade da viatura, nenhuma anomalia exterior na mesma, enfim, aspectos comuns a qualquer cidadão, dizem as más-línguas que, ao tomar conhecimento destes factos, exclamou para o mundo: “Tá tudo maluco!” Hoje arrasta-se a pé, embora não tenha virado costas, por completo, à moda, segundo o próprio, tem fortes ligações a este contexto, quem sou eu para duvidar, é vê-lo com umas jardineiras à Bud Spencer, só com uma das alças abotoadas – há pormenores que demarcam realidades –, umas “crocs” nos pés (peço desculpa pela publicidade, não era, de todo, intencional), e uns óculos com uma só haste, tem de combinar com a alça abotoada, pois, neste ponto confirma-se o tal passado com fortes ligações ao mundo da moda, embora não deixe de ser um paradoxo um espírito tão guindado por valores culturais imiscuir-se num contexto tão fútil, bom, são as idiossincrasias da existência, antes das quinze horas não ousem tocar-lhe à porta, ainda está no seu merecidíssimo período de repouso, talvez o serão tenha sido passado a visionar filmes que possam ser adicionados à sua ditosa categoria (filmes à Laurindo), não posso terminar esta crónica sem narrar um dos momentos mais sublimes desta personagem, uma das suas refeições passa invariavelmente por dois queijos-frescos, coloca-os simetricamente em cima do balcão, fica, por uns instantes, a contemplá-los, isto, sim, é poesia em estado-puro, a alguns passos de distância os queijos-frescos afiguram-se silos, claro que as pupilas chegam sempre primeiro, só depois, com uma faca, os vai retalhando com a devida lentidão, num cerimonial com muito pouco de pagão, não fossem aqueles silos autênticas epifanias, no Verão, aos fins-de-semana, ruma, com duas irmãs mais velhas, para uma praia dos arredores da capital, ali ficam os três, se o factor hereditário prevalecer, imaginem a genialidade daqueles diálogos, por ora, fiquemos apenas com a imagem daqueles três vultos a contemplar o oceano, sim, sem dúvida, é poesia em estado-puro!
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