Livros do Escritor

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terça-feira, 5 de julho de 2022

A dona Suzete


 

Pergunta óbvia do leitor: Quem é a dona Suzete? Por norma, quando se pergunta quem é alguém, responde-se com a sua profissão, o que constitui um gravíssimo erro estrutural, porque jamais a actividade-de-subsistência pode definir um sujeito, afinal, há uma miríade de factores a contribuir para direcção dos passos de cada um de nós sobre a terra, porém, um ponto-de-interrogação continua pendente: Quem é a dona Suzete? A dona Suzete já dobrou as seis décadas, ostenta uma cabeleira demasiado loura, como se tivesse algures um patrocínio da Robbialac ou de qualquer outra marca de colorir o mundo, tal a sua inclemente luta por calar os brancos que brotam da sua cabecita, é baixa, daí os saltos de três andares, medida transversal a todas as sujeitas que Deus não dotou com o dom das alturas, pelo menos trabalham o equilíbrio, e, de facto, a dona Suzete era pródiga na arte do equilibrismo, mais à frente iremos desvelar estes seus dotes, nascera no Sul, por contingências do destino viera para a capital, embora nas férias regressasse às origens, nem por acaso, uma das suas fotos mais expressivas é precisamente em terras do Sul, só se veem os pezinhos, inchados, deselegantes, curtos, as unhas pintadas, embora estaladas em vários pontos, numa clara expressão de: Finalmente, descanso! Como se a dona Suzete fosse uma incansável trabalhadora! Não, nada disso, a dona Suzete é tudo menos trabalhadora, se falarmos em termos de teatralidade, aí sim, a dona Suzete é uma ilustre actriz, do melhor, consegue abstrair-se singularmente do contexto, benéfico ou hostil, para fitar somente as coordenadas da personagem que encarna, é operária numa empresa de carimbos, ganhou relevância um pouco rápido demais, chegou a tesoureira da empresa, quem tem a mão sobre o dinheiro, tem a mão sobre tudo, assim é, infelizmente, a deplorável história deste ser bípede de nome homem, muitas teorias procuram explanar esta celeridade, mas não é isso que nos importa, o nosso foco está no que a dona Suzete fez, em relação aos demais, com a sua ascensão na empresa de carimbos, diz a sabedoria-popular que: “Se queremos verdadeiramente conhecer alguém, basta dar-lhe poder ou uma arma”; a partir desta velha premissa, vamos, então, realmente conhecer a dona Suzete, já sabemos que veio do Sul, da sua tristemente risível foto dos pezinhos inchados, deselegantes, curtos, as unhas pintadas, embora estaladas em vários pontos, num hino surdo ao descanso, como se disso precisasse, da baixa-estatura, ainda nem falámos das largas-ancas, contudo, uma das suas características mais flagrantes, na empresa de carimbos, é que está a caminho ou a sair de uma reunião, logo apontando o dedo aos outros funcionários, que se esfalfaram o dia inteiro na produção dos carimbos, “Pois  é, vocês a caminho de casa e eu ainda vou para uma reunião…”, sublinhe-se o tom dramático com que entoa cada sílaba, pois, a dona Suzete é uma actriz de primeiríssimo-nível, houve, lá na fábrica, maldizentes que a apelidavam de papa-reuniões, como se o fizesse por gosto, nada disso, se a dona Suzete estava presente seria para delinear o futuro da empresa, a solvência da mesma e o ordenado dos trabalhadores, alinhada com os ventos políticos de ocasião, como qualquer invertebrado, desde que não voltasse a ter de arregaçar as mangas, afinal “Pois  é, vocês a caminho de casa e eu ainda vou para uma reunião…”, tinha uma vida árdua, apesar de tesoureira, a dificuldade com as contas era notória à distância, embora o maquilhasse com laivos doutorais, mas aí não havia Robbialac que lhe valesse, sobretudo para os olhares mais atentos, em certa ocasião, um incauto convidou a dona Suzete para ser oradora num evento cultural, a flamejante cabeleira contrastava com a discreta e profunda aura reflexiva inerente a esses contextos, o desastre foi total, meia-dúzia de lugares-comuns e pouco mais, se ao menos os pezinhos inchados, deselegantes, curtos, as unhas pintadas, embora estaladas em vários pontos, sobre um banco, a proclamar:  Finalmente, descanso!  A dona Suzete era pródiga, como qualquer actriz de nomeada, em ocultar emoções, às vezes questiona-se o carácter humano destas personagens, só tinha, por ali, dois objectivos: a mão sobre o dinheiro e agilizar a produção de carimbos, carimbos e mais carimbos, se, por acaso, alguém se levantasse a chamar a atenção para a qualidade dos mesmos, logo a dona Suzete arranjaria uma reunião para o silenciar ou despachar para bem longe, menos para Sul, não fosse o desgraçado morrer de susto ao ver, sobre um banco, uns pezinhos inchados, deselegantes, curtos, as unhas pintadas, embora estaladas em vários pontos, ninguém sobreviveria a tal visão, se, por acaso, alguém tiver curiosidade em conhecer a dona Suzete, é bastante fácil, deve estar a vir ou a caminho de uma reunião, não se espantem se, num tom dramático, vos proclamar: “Pois  é, vocês a caminho de casa e eu ainda vou para uma reunião…”

(05/07/22)


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