Livros do Escritor

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sexta-feira, 8 de julho de 2022

Já o meu irmão…


 


É inevitável olhar o outro com as cores do nosso pensar, por outras palavras, esperamos que aja ou pense de uma forma consentânea com os padrões em voga, certa vez, dei por mim, para meu silenciado espanto, a afirmar: “Não há pessoas normais!”; acrescentei ainda: “O que é isso de normal?”; pois, de facto, o que é isso de normal? Sem querer, agora, entrar no complexo campo dos Valores, alvo de extermínio a cada dia, vou ilustrar, hoje, uma das figuras mais singulares que se pode conhecer sob o céu, de certa forma, pagar uma dívida, há muito merecia umas linhas, é o resultado de uma estranha combinação, sublinhe-se que sem nenhum exagero, entre: Corto-Maltese + John Rambo + Platão + Santo Agostinho + Tarzan + Errol Flynn + Mr. Miyagi… Esta soma peca por escassez! Aqui chegados, haverá quem abra a boca de espanto e questione: por escassez? Mas existe ser-humano assim? Um todo resultante destas insignes partes? Sim, existe, e posso assegurar-vos de que tenho o privilégio de há muito o conhecer, sublinho que se tratou de um lento desvelar, mais velho de quatro irmãos, todos engenheiros, doutores, filho também de um engenheiro, com quatro doutoramentos e três mestrados, talvez seja o contrário, três doutoramentos e quatro mestrados, ou cinco doutoramentos e seis mestrados, já me perdi, pois, peço desculpa, qualquer um se perde nesta infinda teia de diplomas, logo eu que só tenho algum jeito para juntar palavras, da mãe não me recordo haver canudo, mas asseguro-vos que lhe corria nas veias sangue-azul, um antepassado chegara a Papa, não, não se espantem, se o afirmou, é um facto, crescera com os irmãos no Sul, quando me contou, surgiu-me logo a imagem dos quatro a descer uma qualquer rua e tudo a esconder-se em terror, ousei balbuciar-lhe após o relato: “Deviam ser conhecidos como os quatro cavaleiros do Apocalipse”, a sua resposta foi lesta: “Sim, sim…”, naquele seu timbre introspectivo, quase cavernoso, soube, mais tarde, que chegara a cantar ópera em São Carlos, bem avisei que a soma pecava por escassez, falta  Plácido Domingo, reparei que adequava a temática do diálogo ao interlocutor, comigo, por exemplo, puxava a literatura para a mesa, escudava-se em meia-dúzia de chavões, talvez nem a isso chegasse, na minha infinita inocência, perante aquela sumidade, resolvi trazer alguns dos meus autores de eleição ao diálogo, do seu lado apenas o silêncio a aumentar, quem sabe fosse uma má interpretação da minha parte, tentei uma segunda vez, com autores mais populares, de novo os chavões, estranhei, como aquela soma de tão insignes partes não conseguiu desenvolver um diálogo literário tão simples, os seus lugares-comuns estão ao alcance de qualquer analfabeto funcional, dissera-me que crescera no meio de uma biblioteca com similitudes apenas na de Alexandria, que devorava livros e livros, pois, estranho, complementava cada afirmação com a expressão que intitula esta crónica: “Já o meu irmão…”; sublimadamente ficávamos a perceber que o irmão (Qual dos três? Talvez todos…) seria também um devorador insaciável de páginas e páginas, um dos seus relatos mais fascinantes ocorreu num dia de Verão, estava com um dos irmãos na praia, linha do Estoril, quando, num repente, decidiram nadar em apneia até ao forte de São Lourenço do Bugio, fica somente a cerca de dois quilómetros e quatrocentos metros em linha recta da costa, para não falar nas correntes, nem retorqui, o que era isso para aquele Tarzan? Ouvi fascinado a narrativa, nem ousei interromper, imaginava-o apenas a afastar uma alga teimosa que lhe ousava travar a odisseia submarina, também era um ex-combatente da guerra-colonial, regra geral, evitava falar deste tema, compreensível, os horrores da guerra não se devem partilhar, de novo a minha infinita inocência a construir imagens daquele titã, de metralhadora, a limpar todos os turras que se lhe atravessassem à frente, disse que estivera na força-aérea como piloto, claro, embora também no terreno, alguém pode duvidar? De forma espontânea perguntei se conhecia um meu familiar, oficial, que realizara três missões, inspirou longamente, olhar no infinito, e com a sua voz de tenor incompreendido: “Sim, sim, claro que conheço. Já o meu irmão…”; de imediato, logo a minha imaginação a construir imagens destes três titãs a repor a ordem nas profundezas de África, outro aspecto intrigante prende-se com a facto de já ter calcorreado todos os cantos da Terra, não havia um ponto onde já não tivesse ido, quem podia duvidar daquele aventureiro? Imagino os corações-dilacerados que deixou em cada porto, com o seu bigode à Errol Flynn! Como provinha de uma família deveras abastada, para percorrer a propriedade dos avós era necessário um dia, não, não estou a falar de triciclo, há sempre espíritos maldizentes, mas sim de jipe, até lá passava um rio, para não se ficar atolado é naturalmente mais seguro o jipe, fruto de uma árvore-genealógica tão ilustre, era natural o seu desapego aos bens-materiais, posso afirmar, sem quaisquer rodeios, jamais ter conhecido alguém tão desligado do vil-metal, o sangue-azul guiava-lhe os  passos, quando falava da família, não raras vezes, dava por mim a visualizar o mapa-político do mundo, não me queria perder, avó sueca, tio-avô alemão, o antepassado Papa como já referira, o outro lado da família era oriental, daí a sua aura de Mr. Miyagi, extraordinário, tudo o que posso dizer, havia tanto para relatar, merecia, confesso, um romance no lugar destas escassas linhas de uma crónica, repito: se acham que isto é um delírio da minha imaginação, experimentem ir, agora mesmo, até ao Alasca, se virem alguém, no meio de um nevão, a correr em tronco-nu, é ele, não fiquem admirados se, ao passar por vós, disser: “Já o meu irmão…”


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