É inevitável olhar o outro com as
cores do nosso pensar, por outras palavras, esperamos que aja ou pense de uma forma
consentânea com os padrões em voga, certa vez, dei por mim, para meu silenciado
espanto, a afirmar: “Não
há pessoas normais!”; acrescentei ainda: “O que é isso de normal?”; pois,
de facto, o que é isso de normal? Sem querer, agora, entrar no complexo campo
dos Valores, alvo de extermínio a cada dia, vou ilustrar, hoje, uma das figuras
mais singulares que se pode conhecer sob o céu, de certa forma, pagar uma
dívida, há muito merecia umas linhas, é o resultado de uma estranha combinação,
sublinhe-se que sem nenhum exagero, entre: Corto-Maltese + John Rambo + Platão
+ Santo Agostinho + Tarzan + Errol Flynn + Mr. Miyagi… Esta soma peca por
escassez! Aqui chegados, haverá quem abra a boca de espanto e questione: por
escassez? Mas existe ser-humano assim? Um todo resultante destas insignes
partes? Sim, existe, e posso assegurar-vos de que tenho o privilégio de há
muito o conhecer, sublinho que se tratou de um lento desvelar, mais velho de
quatro irmãos, todos engenheiros, doutores, filho também de um engenheiro, com
quatro doutoramentos e três mestrados, talvez seja o contrário, três
doutoramentos e quatro mestrados, ou cinco doutoramentos e seis mestrados, já
me perdi, pois, peço desculpa, qualquer um se perde nesta infinda teia de
diplomas, logo eu que só tenho algum jeito para juntar palavras, da mãe não me
recordo haver canudo, mas asseguro-vos que lhe corria nas veias sangue-azul, um
antepassado chegara a Papa, não, não se espantem, se o afirmou, é um facto, crescera
com os irmãos no Sul, quando me contou, surgiu-me logo a imagem dos quatro a
descer uma qualquer rua e tudo a esconder-se em terror, ousei balbuciar-lhe
após o relato: “Deviam ser conhecidos como os quatro cavaleiros do
Apocalipse”, a sua resposta foi lesta: “Sim, sim…”, naquele seu timbre
introspectivo, quase cavernoso, soube, mais tarde, que chegara a cantar ópera
em São Carlos, bem avisei que a soma pecava por escassez, falta Plácido Domingo, reparei que adequava a
temática do diálogo ao interlocutor, comigo, por exemplo, puxava a literatura
para a mesa, escudava-se em meia-dúzia de chavões, talvez nem a isso chegasse,
na minha infinita inocência, perante aquela sumidade, resolvi trazer alguns dos
meus autores de eleição ao diálogo, do seu lado apenas o silêncio a aumentar, quem
sabe fosse uma má interpretação da minha parte, tentei uma segunda vez, com
autores mais populares, de novo os chavões, estranhei, como aquela soma de tão
insignes partes não conseguiu desenvolver um diálogo literário tão simples, os
seus lugares-comuns estão ao alcance de qualquer analfabeto funcional,
dissera-me que crescera no meio de uma biblioteca com similitudes apenas na de
Alexandria, que devorava livros e livros, pois, estranho, complementava cada afirmação
com a expressão que intitula esta crónica: “Já o meu irmão…”; sublimadamente
ficávamos a perceber que o irmão (Qual dos três? Talvez todos…) seria também um
devorador insaciável de páginas e páginas, um dos seus relatos mais fascinantes
ocorreu num dia de Verão, estava com um dos irmãos na praia, linha do Estoril,
quando, num repente, decidiram nadar em apneia até ao forte de São Lourenço do Bugio,
fica somente a cerca de dois quilómetros e quatrocentos metros em linha recta
da costa, para não falar nas correntes, nem retorqui, o que era isso para
aquele Tarzan? Ouvi fascinado a narrativa, nem ousei interromper, imaginava-o
apenas a afastar uma alga teimosa que lhe ousava travar a odisseia submarina, também
era um ex-combatente da guerra-colonial, regra geral, evitava falar deste tema,
compreensível, os horrores da guerra não se devem partilhar, de novo a minha
infinita inocência a construir imagens daquele titã, de metralhadora, a limpar
todos os turras que se lhe atravessassem à frente, disse que estivera na força-aérea
como piloto, claro, embora também no terreno, alguém pode duvidar? De forma
espontânea perguntei se conhecia um meu familiar, oficial, que realizara três
missões, inspirou longamente, olhar no infinito, e com a sua voz de tenor
incompreendido: “Sim, sim, claro que conheço. Já o meu irmão…”; de imediato,
logo a minha imaginação a construir imagens destes três titãs a repor a ordem nas
profundezas de África, outro aspecto intrigante prende-se com a facto de já ter
calcorreado todos os cantos da Terra, não havia um ponto onde já não tivesse
ido, quem podia duvidar daquele aventureiro? Imagino os corações-dilacerados
que deixou em cada porto, com o seu bigode à Errol Flynn! Como provinha de uma
família deveras abastada, para percorrer a propriedade dos avós era necessário um
dia, não, não estou a falar de triciclo, há sempre espíritos maldizentes, mas
sim de jipe, até lá passava um rio, para não se ficar atolado é naturalmente mais
seguro o jipe, fruto de uma árvore-genealógica tão ilustre, era natural o seu
desapego aos bens-materiais, posso afirmar, sem quaisquer rodeios, jamais ter
conhecido alguém tão desligado do vil-metal, o sangue-azul guiava-lhe os passos, quando falava da família, não raras
vezes, dava por mim a visualizar o mapa-político do mundo, não me queria perder,
avó sueca, tio-avô alemão, o antepassado Papa como já referira, o outro lado da
família era oriental, daí a sua aura de Mr. Miyagi, extraordinário, tudo o que
posso dizer, havia tanto para relatar, merecia, confesso, um romance no lugar destas
escassas linhas de uma crónica, repito: se acham que isto é um delírio da minha
imaginação, experimentem ir, agora mesmo, até ao Alasca, se virem alguém, no meio
de um nevão, a correr em tronco-nu, é ele, não fiquem admirados se, ao passar
por vós, disser: “Já o meu irmão…”
Livros do Escritor
sexta-feira, 8 de julho de 2022
Já o meu irmão…
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