PEDRO DE SÁ
Deslumbramento
Há uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.
In Ode Marítima
Álvaro de Campos
ÍNDICE
PASSADO
PRESENTE
FUTURO
PASSADO
- Porquê? Consegues
explicar-me? O que se passou ao certo?
- Explicar? O que há
para explicar? As coisas são como são. Para quê, agora, estarmos a teorizar
acerca de factos?
- Porque o hoje
constrói-se no ontem, e não acho correcto seguirmos em frente, sem compreender
o acontecer… Não sei, gostava de saber a tua opinião, agora que já passou tanto
tempo.
- É curioso! Mudaste
tanto nestes anos. Até em termos lexicais. Para quê levantar esse assunto? Logo
agora! Qual é a tua intenção? Ver se ainda, por aqui, algum sentir? Precisas de
elevar o ego? É isso?
- Sabes bem que não!
Apenas gostava de perceber onde nos perdemos. Quantas vezes, num instante do
dia, aqueles segundos balsâmicos que nos permitem regressar, pensar-nos, dou
por mim às voltas com esta questão: “E se…?” Percebes, certo?
- Sim, claro… Desculpa,
nem perguntei pelo teu irmão.
- Fui visitá-lo ontem. Hoje não consegui. Às vezes questiono-me se
fizemos algum mal para merecer isto! Meu irmão, um resto do que foi! Custa-me
tanto! Ontem, antes de sair, olhei para trás, tinha de me certificar, não sei
porquê, que ele continuava a olhar o mundo por uma janela, como se uma súbita
compreensão de aqui não ser o seu lugar, de lhe estar vedada a tão propalada
“felicidade” ou lá o que isso significa, meu irmão, o olhar vítreo, braços
caídos sem prenúncio de gestos num amanhã, apesar da tarde, lá fora, pegar na
mala, ele de pijama, ou seria o uniforme, nunca questionei tal, confesso, perdi
a conta às tardes ali passadas, nos fins-de-semana, em monólogos estéreis,
porém, sei que tenho de ir, chego impreterivelmente um pouco antes da hora de
visita, saio do carro e fico a olhar o robusto edifício em tijoleira, de dois
andares, envolto em vegetação, por vezes, penso ali está a “última estação”, engano-me, essa é sempre pretérita, é quando
algo se parte em nós de forma irreversível, foi o que sucedeu com ele, um
sentir demasiado deixou-o caído, de uma forma ininteligível sempre o
compreendi, e isso aconteceu muito antes de também eu cair, não por um sentir
demasiado, mas pela sua falta, é curioso, como os inversos nos podem atingir da
mesma forma, a questão extenuada (“Como está ele hoje?”), a enfermeira de turno com respostas
evasivas, já nem se detém a olhar-nos, tudo numa impessoalidade fria e
mecânica, ontem só lhe encontrei espelho no céu lá fora, plúmbeo, o chuviscar
ininterrupto, como se fosse parte integrante da paisagem, aqueles dias em que o
longe se liquefaz para nos relembrar o aqui, mas a questão ficou suspensa na
tarde chuvosa (“Como está ele hoje?”), estava
sentado na cadeira do costume, diante da grande janela que dá para o relvado,
atravessei a vasta sala, cruzei-me com outras figuras de pijama, ou seria o
uniforme, sentadas a olhar um ponto indefinível, como se aí um qualquer sentido
só por si perscrutado, à sua volta outros que me acompanharam os apreensivos
passos desde a entrada, suspiraram a mesma questão chuvosa (“Como está ele
hoje?”), obtiveram a mesma resposta, que
o longe se liquefaz para nos relembrar o aqui…
- É estranho, não achas? Sempre o achei tão concentrado, sabia o que
queria, parecia ter a vida toda delineada. E, de repente, aquela queda: súbita,
inexplicável, tão estranha…
- Imagina para nós!
- E houve respostas dos médicos?
- Não precisas de usar eufemismos comigo! Diz logo: psiquiatras! Tudo
muito vago, houve um que falou de um baile e de um episódio deveras estranho…
- Então?
- Leu-nos um texto, aparentemente, escrito pelo meu irmão. De facto, era
a letra dele.
- E o que dizia?
- Queres que te leia? Deve estar para ali na minha secretária. Por acaso,
gostava de ouvir a tua opinião.
- Sim, claro. Mas espera um pouco. Antes disso, fala-me um pouco de ti.
Como estás?
- Como estou?
- Sim, estás bem? És feliz ou lá o que isso seja?
- Sempre foste renitente quanto à felicidade. Nunca percebi porquê. Se
havia alguém, de facto, que tinha tudo para ser feliz, eras tu.
- Estás tão enganada!
- Desculpa?! Sempre tiveste tudo: pais que te amaram, boa casa, andaste
nos melhores colégios, quando uma novidade, brinquedo, roupa, ténis, eras o primeiro
a vir para a rua exibir…
- E isso, para ti, é a felicidade? Bens materiais, pais numa aparência de
sentir, colégios particulares onde aprendes a estar em vez de a ser? Pois,
creio que estejas bastante equivocada. Quantas vezes não te invejei? A ti e aos
outros miúdos lá da rua. A liberdade de ir para a escola a pé, em vez do espartilho
da carrinha à porta, trocar o tecto de casa pelo tejadilho da viatura, nem
vislumbre, por brevíssimos instantes que fossem, do céu do mundo, e a
obrigatoriedade da língua estrangeira, como se não bastasse o Português, a
Matemática, o Meio Físico, ainda o Alemão!
- Tens o passado tão presente! Não sei porquê, mas nunca te vi assim…
- Eu?! A partir de certa altura, acho que virei costas ao futuro. Daí já
nada espero.
- Estás amargo.
- Tu ajudaste…
- Talvez estivesses mais, acredita!
- Nunca o saberemos!
- Isso é verdade! Mas, na altura, foi a melhor escolha, pelo menos a que
se me afigurou mais acertada. Eu nunca ambicionei um papel secundário a tempo
inteiro. Isso não! Lembras-te do que te disse na altura? Pois, nem uma foto podíamos tirar… Pelo menos, para
testemunhar o que fomos.
- O teu sentir não era assim tão profundo… Quando é, queremos mais que o
mundo se dane! Levamos tudo à frente!
- Falas sempre preso ao instante, ao momento, não olhas as coisas com a distância,
o tempo, o que tínhamos, acredita, não sobrevivia ao desgaste dos dias, perder-se-ia
em semanas, no máximo em um ou dois meses.
- És profeta?
- Não, sou mulher.
- Lembro-me tão bem, cheguei a escrever-te, espero que te lembres:
“Prefiro perder-me por ti, do que perder-te de mim”…
- Há zonas de ti que nunca amadureceram. Daí tivesse de pensar pelos
dois. Mas não voltes, por favor, a julgar os meus sentimentos. Uma das coisas
que mais me fascinou em ti, foi facto de seres uma alma desarrumada, davas-me
espelho, atenuavas-me a solidão, sabes, há divisões de mim onde nem à porta
passo, contudo, invadem-me os sonhos, aí, claro, nada posso fazer. Há uns dias,
por exemplo, num momento da tarde, creio que regressava a casa, levantou-se-me
esta memória: houve um Natal, teria cinco ou seis anos, o primeiro após o
divórcio, lembras-te, claro, foi meu pai a sair de casa. Bom, ao contrário do
expectável, tive o Natal com mais prendas: mãe, avós, tios, até vizinhos,
parecia que todos procuravam compensar-me por ver os pais seguir em direcções
opostas. Percebi, pelo soar da campainha, a chegada do meu pai, não me
perguntes como, aquelas coisas que simplesmente sabemos numa zona de nós tão
longe e simultaneamente tão próxima do mundo, mas, como dizia, foi após o
jantar, ainda deu tempo de abrir mais de metade das prendas, estava tão feliz,
lutava e lutava com papel de embrulho, de facto, há lutas que dão prazer, não
me passou despercebido, logo após a campainha soar, o cessar das conversas, um
silêncio que ampliava o próprio respirar, curioso, não me recordo de quem abriu
a porta, minha mãe não foi, isso tenho presente, talvez uma das tias, a imagem
de meu pai, à entrada, surgiu-me, tímido, renitente em avançar, olhou em volta
à espera de um incentivo, acabou por surgir através do afável gesto de um dos tios,
lá entrou, em tímidos passos, à medida que se ia aproximando, denotei-lhe uma
crescente noite pelo rosto, parecia envelhecer à medida que se aproximava, como
se lhe fosse exigido um esforço demasiado em ali estar, não me recordo se,
naquela noite em especial, de luzes e aparente concórdia, onde se celebra o
nascimento Daquele que veio apenas falar de Amor e Verdade, meu pai e minha mãe
trocaram uma só palavra, não me lembro de os ver juntos, eu ainda absorvida
pela minha guerra com o papel de embrulho, até que ele se abeirou de mim,
baixou-se e abraçou-me, como só um pai sabe, não, não era impressão minha,
havia tanta tristeza naquele rosto, ajudou-me numa batalha com mais papel de
embrulho, estive quase para lhe perguntar pela minha prenda, contudo, no último
momento, calei a questão, talvez o seu rosto tão anoitecido caminhasse por
paragens distantes de luzes e papéis de embrulho, creio que estivesse
desempregado, fazia umas horas no táxi de um amigo, a fábrica fechara, sabes,
por muito que esforçasse a memória, não me recordo, nem por uma vez, de olhar os
meus pais de mão dada, é curioso, as ideias que nos atravessam o pensar, nem
lhes sabemos a fonte, simplesmente irrompem pela nossa mente, mas sempre de
proveniência incógnita, nessa noite, por curiosidade, segui-lhes os passos,
cumprimentaram-se de uma distância segura, através de cordiais acenos, após
isso, os renitentes passos de meu pai conduziram-no até onde eu estava, deu-me
a impressão, não sei porquê, de ele ter deixado cair algo atrás do sofá, antes
de se abeirar de mim, pois, talvez fosse só uma impressão, abraçou-me, como só
um pai sabe, beijou-me a testa e num terno murmurar disse “Feliz Natal, minha querida”, um dos meus tios, com uma sonoridade
exagerada, convidou-o para a mesa, mais concretamente a zona onde se
concentravam o maior número de garrafas, porém, ele declinou, deu-me uma festa
na cabeça, enquanto “Recebeste tantas prendas! Meu Deus, tantas prendas!
Que bom!”, apesar de olhar em volta, para
se inteirar da sua circunstância, pareceu-me tão longe, tão distante, a sua voz
um eco trazido por um vento de terras longínquas, apesar da idade, compreendia
tudo isto sem o corpo das palavras, percebes o que quero dizer, certo? Dessa
noite, pouco mais recordo, nem dei pela sua partida, mas o relevante aqui
deu-se na manhã seguinte, peço desculpa se me demorei a chegar a este ponto,
todavia, para compreenderes a essência do seu gesto, cada aspecto, por muito
acessório pareça, conta bastante, lembras-te de ter dito, a certa altura, “deu-me
a impressão, não sei porquê, de ele ter deixado cair algo atrás do sofá, antes
de se abeirar de mim”? Pois, na manhã
seguinte, talvez motivada pela inusitada quantidade de prendas, acordei
espontaneamente, sem resquícios de esforço, a casa ainda dormia, pelos oblíquos
vestígios de luz vindos do exterior, compreendi a hora matinal, preparava-me
para rever e certificar da veracidade de todas aquelas prendas, quando tropecei
em algo caído atrás do sofá, baixei-me para ver e reparei num urso de peluche,
sorridente, bonacheirão, humilde, de repente, percebi: à vista de todas as
prendas, algumas dispendiosas, que abria ininterruptamente, ele atirou o
humilde peluche para o lugar mais recôndito da sala, onde nem as luzes dessa
particular noite tacteiam, num incompreensível gesto de pudor, abracei-o
espontaneamente, como se procurasse, nesse momento, despontar a reprimida
lágrima de meu pai na véspera.
- Era aquele urso velho que tinhas sempre encostado à cabeceira da cama?
- Sim!
- Pois… Realmente… Que história! Quantos objectos não fazem parte da
geografia de uma alma? Às vezes nem sonhamos a história que cada objecto
carrega! E como está hoje a relação com o teu pai?
- Cordial.
- Só tens isso para dizer?
- Parece-me o suficiente. Parte de mim, não sei porquê, sempre achou que
ele não se separou só da minha mãe, englobou-nos a todos.
- Não estás a ser injusta? Afinal, não raras vezes o encontrei em vossa
casa.
- Respondo-te com uma questão: estar perto significa estar próximo?
- De facto… Lembro-me, uma vez, de ter dito a alguém: pai e mãe podem ser
bênção ou maldição.
- Concordo plenamente.
- Acompanham-nos, para o bem ou mal, até ao nosso último respirar. Por
muito que o tentemos negar! Sabes, às vezes, olho-me ao espelho e revejo o meu
pai, ou ouço a sua voz numa expressão que verbalizo…
- Isso agrada-te?
- Confesso que não!
- Pois, compreendo, a mim também não. Mas, no caso do meu irmão, foi ele
quem melhor percebeu a situação.
- E o tal texto?
- Qual texto?
- O que ias ler! Escrito pelo teu irmão.
- Ah, sim… Espera um pouco, deixa-me só procurar na secretária. Bom, aqui
está. Sabes, não gosto nada, a esta hora, de falar destas coisas…
- Mas o que se passou ao certo? Qual a verdadeira razão do seu
internamento? Falou-se de tanta coisa: tentativa de suicídio, depressão,
drogas, jogo, meu Deus, diz-se tanta coisa…
- Por favor, nem me contes mais
nada! Só me mete nojo essa gentinha que fala sem fazer a mínima ideia do que se
passa! Sempre uma necessidade de catalogar os outros. Como se só assim
circulassem melhor no mundo. Tão previsíveis! Enfim… Não foi nada disso a
derrubar o meu irmão. Foi algo bem mais sublime: virou costas ao mundo por
amor. Existe melhor razão? Pois, não me parece. A sua narrativa vale o que
vale, todavia, como pediste, vou ler-ta.
Quando me apercebi, falávamos disto e
daquilo, pareceu-me que já nos conhecíamos, nesta vida, de facto, pela melodia
da voz, a familiaridade peculiar de um gesto que risca o ar, a compreensão
derramada por um olhar, há quem, manifestamente, pareça caminhar há muito a
nosso lado, ela segurava um copo de sumo, embora o ignorasse, desde que
encetáramos o diálogo, à nossa volta só ruído, porém, nós permanecíamos naquele
peculiar universo velozmente criado para nos comunicarmos, nunca fui festivo,
por isso, nessa noite, ali desaguei somente pela promessa de que seria uma
pequena reunião de amigos para celebrar o aniversário do… Pois, não interessa,
não vou chamar para aqui o seu nome, como dizia, fui dos últimos a chegar, em
verdade, não havia muita gente, embora, para mim, sempre fosse gente a mais,
entrei relutante, logo a demasia do som a empurrar-me para o Inverno da rua, as
vozes histriónicas também concorreram para a hesitação dos meus passos, mas era
o aniversário do… Pois, não interessa, não vou chamar para aqui o seu nome,
apenas sublinho que ele vinha de um momento difícil e merecia ali a minha
presença, falava-se que, certa tarde, os pais encontraram-no caído, ao lado da
cama, próximo estava um frasco aberto, do seu interior rolaram pequenos
cilindros coloridos pelo chão, ainda houve tempo, embora o desgosto de ver o
filho caído, acompanhado de pequenos cilindros coloridos, fosse indelével,
sobretudo para o coração de uma mãe, ainda houve tempo, mas se não houvesse,
nem um “adeus”, nem um “adeus”, tudo porque, apesar da data próxima, dos
preparativos, de ela, inclusive, já ter experimentado o vestido, para uma
mulher esse deveria ser o “vestido”, e ainda razões de outra ordem, mais
próxima de nuvens e cumes, ele ter depositado o seu coração nas suas mãos, durante
seis anos, naquela casa, longe, muito longe, de cilindros coloridos derramados
pelo chão, o nome dela num tom meloso, perigosamente próximo da subserviência,
quando um nome acompanha o respirar, o coração já não pertence ao peito onde
bate, assim foi, Belinha, Belinha, Belinha, a mãe na dúvida se era o nome em si
que a irritava, se a respiração que lhe acentuava as sílabas, além do ar
apalermado do filho, sempre que pronunciava Belinha, os olhos resplandeciam, e
a energia ia-se-lhe, pois, quando um nome acompanha o respirar, o coração já
não pertence ao peito onde bate, o pai compreensivo com o persistente Belinha,
antes por ali do que noutros cenários, e Belinha, Belinha, Belinha, continuou a
ecoar, durante seis anos, até que, apesar da data próxima, dos preparativos,
ela, por telefone, nem a face lhe mostrou, “Desculpa, estive a pensar, e acho
que não devíamos dar este passo. Ainda somos bastante jovens. Temos toda uma
vida pela frente. Acho que é uma precipitação. Compreendes, não é? Mereces ser feliz…”,
ele mais nada ouviu, o telefone simplesmente caiu-lhe, pois, assim que Belinha,
a energia ia-se-lhe, a única coisa boa dos cilindros coloridos derramados pelo
chão foi o silenciar, definitivo, entre aquelas paredes, de Belinha, acompanhei
de perto o seu reerguer, se bem que, depois de certas quedas, nunca se caminhe
da mesma forma, por tudo isto, era imperativo que marcasse presença no seu
aniversário, percebi que ele optara pela representação, não era de censurar, há
momentos, na vida, em que um atalho é sempre a melhor das vias, assim o fez,
colocou uma máscara e com a sua ajuda reaprendeu a caminhar, Belinha tornou-se
uma palavra interdita, mais uma daquelas questões tácitas que se outorgam sem
argumentar, pensava em despedidas quando, de repente, o meu olhar se imobilizou
nela, de facto, foi o que sucedeu, estava sozinha, para meu espanto, detinha
uma aura de timidez que me encantou, se adicionarmos uma genuína beleza e a
graciosidade dos gestos afigurava-se um sonho esquecido pelo mundo, quando me
apercebi, falávamos disto e daquilo, pareceu-me que já nos conhecíamos, nem o
nome lhe perguntei, é curioso, há quem, manifestamente, pareça caminhar há
muito a nosso lado, pressenti-lhe um desejo de partida, proporcional ao que em
mim existia desde que ali entrara (apesar de ser o aniversário do…), ofereci-me
para a acompanhar até casa, ela assentiu, havia no seu rosto e gestos uma
dignidade de majestade sem coroa, assim que saímos para noite do mundo,
sabia-me perdido, o meu coração assumira a forma de um rosto, ela estava de
férias em casa dos avós, daí a novidade do seu rosto, ficava a escassas
centenas de metros do local da festa, sugeri-lhe que caminhássemos junto ao
rio, ela anuiu de imediato, acho que aguardava a minha sugestão, gostei
particularmente de vê-la caminhar a meu lado, como se me completasse, mesmo a
nossa passada logo se harmonizou, a noite convidava à palavra, ficou amena, nem
uma brisa para agilizar o mais ténue movimento, as luzes alongavam-se nas
águas, pareciam desdobrar-se numa outra existência, gostava de caminhar pela
margem, ela também, fazia-me pensar em que momento dar-se-á a foz do meu
existir, não sei de onde se me levantou esta ideia, mas creio que ela leu este
meu pensamento, olhou-me com serenidade, pareceu-me ouvir-lhe (“No fim,
compreenderás, no fim, compreenderás… Não poderia ser de outra forma),
continuámos a acompanhar o curso das águas, rumo a jusante, volta e meia ela
detinha-se, eu perdia-me no seu olhar que reflectia o céu nocturno, para onde
se evolam os sonhos calados dos homens, a certa altura, parámos num jardim,
sentou-se num banco, sentei-me a seu lado, o mais próximo possível para sentir
o calor do seu corpo, estava tão inebriado pelo momento que me escapou o
desejado calor, ela contou que vinha ali em criança, bem à nossa frente ficava
o carrinho do vendedor de algodão-doce, não me escapou o tom pausado das suas
palavras, o peso da saudade acentuava-se a cada sílaba, olhei o vazio derramado
pelo candeeiro onde, outrora, estava o carrinho do vendedor de algodão-doce,
acrescentou que só no regresso a casa ali paravam, pareceu-me vislumbrar um
brilho sem luz pelos seus olhos quando falou em “regresso”, o sentir
precipitou-se-lhe discretamente pelo rosto, não o disfarçou, permaneceu imóvel,
no banco de jardim, a meu lado, a olhar o vazio derramado pelo candeeiro onde,
outrora, estava o carrinho do vendedor de algodão-doce, não resisti e
peguei-lhe na mão, estava fria, achei natural, falávamos de despedidas sob a
noite do mundo, poucos sonhos reflectiam-se na distância das alturas,
levantou-se, “Já é tarde. Chegou a minha hora”, eu, tolo, tão longe do tom
pausado das suas palavras, peguei no meu casaco e pu-lo pelos seus ombros, ela
sorriu um agradecimento, percebi que faltava pouco para a deixar, os nossos
passos continuavam em harmonia, perguntou pelos meus sonhos, respondi-lhe que
vivia um, arrependi-me de imediato, achei forçada e demasiado óbvia, disse-me
“É pena termos de acordar, não é?”, aumentava a insularidade das sílabas e o
seu peso, até que, “Fico aqui”, um sentir de orfandade precipitou-se sobre mim,
por deixá-la, compreender o tanto que ficou por dizer, talvez o essencial,
acima de tudo o rosto que se me alojara
no coração, ela subiu os dois degraus até à sua porta, olhava um ponto
indefinível ao fundo da rua, se um pouco mais de atenção da minha parte, talvez
percebesse que procurava, num vazio agora derramado por um candeeiro, o
carrinho do vendedor de algodão-doce, onde sempre paravam aquando do regresso,
pelos seus ombros ainda o meu casaco, fingi esquecê-lo de propósito, tinha de
revê-la, já me doía o corpo de sabê-la longe do meu olhar, subi num ímpeto os
dois degraus que nos separavam, aproximei o meu rosto, ela recuou, apreciei o
seu pudor, um gesto que a fez ganhar mais espaço no meu coração, porém, antes
de descer os dois degraus, segurei-lhe a mão, entrelacei os dedos, pareceu-me
segurar gelo, não lhe passou despercebido o meu espanto, suspirou “Mãos frias,
coração quente”, não foi só o casaco, sobre os seus ombros, que deixei, nessa
noite, no alto daqueles dois degraus, o meu coração também ali ficou,
depositado no frio da sua mão, no dia seguinte, logo após o almoço, tomei a
direcção da sua porta, sempre tinha a desculpa do casaco, caso a magia da noite
se diluísse na cegueira do dia, mas a sua melodiosa voz ainda por aqui, como se
uma promessa, “Mãos frias, coração quente”, com a luz, a rua outra, eu também
outro, só o rosto que me ocupava o coração se mantinha, subi os dois degraus,
também diferentes, nem mais altos, nem mais baixos, apenas diferentes, e toquei
à campainha, uma senhora de idade fez-me encurtar o sorriso que ostentava na
cara à espera que ela me surgisse, pareceu-me avó, embora receasse ofender,
porque há maternidades tardias, daí o meu balbuciar, até que, perante a
expressão de estranheza da idosa, lá consegui encadear palavras de forma a
conseguir expressar-me sem ofender susceptibilidades alheias, especialmente se
houver maternidades tardias, “Boa tarde. Vinha à procura da… Ontem deixei-a
aqui à porta…”, só nesse momento me apercebi de continuar a não lhe saber o
nome, como foi possível? A expressão de estranheza manteve-se no rosto da
velha, retorquiu que morava sozinha, decido descer os dois degraus para
confirmar a porta, não, não havia dúvidas, foi ali que a vi, do alto desses
dois degraus, olhar um ponto indefinível ao fundo da rua, insisti, “Desculpe,
mas tenho a certeza de que foi aqui…”, uma vez mais, “Desculpe, mas tenho a
certeza de que foi aqui…”, a velha, quase num lamento, “Vivo sozinha”, eu
“Mas…”, ela “Tão sozinha, às vezes falo para acreditar que ainda respiro…”,
atrás da esguia silhueta, numa moldura, pareceu-me ver um rosto familiar, o meu
indicador instintivamente, ela acompanhou o gesto, abriu a porta, nem dei conta
de subir os dois degraus, de ali entrar, só me lembro de segurar a moldura e o rosto
que se me alojara no coração quase junto ao meu, olhei a velha, permanecia na
ombreira da porta, “Foi ela quem…”, aproximou-se, pegou na moldura com uma
indizível ternura, abraçou-a, “A minha neta… A estrada levou-ma, juntamente com
a minha filha, há dois anos…”, não ousei insistir, nem ao vislumbrar o meu
casaco pendurado no espaldar de uma cadeira, antes de sair, beijei a face da
velha, doravante, ela estaria bem mais acompanhada que eu, saí para o mundo,
pelo menos o que de mim restava, não sei para onde fui, de repente, percebi-me
na margem do rio, à minha frente só as águas no seu incessante caminho de
jusante…
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