Livros do Escritor

Livros do Escritor

terça-feira, 11 de junho de 2024

O dia em que devia ter partido


 

Faz hoje anos que devia ter partido daqui, nem todos se podem gabar de ter uma data assim na sua biografia (Faz hoje anos que devia ter partido daqui), é verdadeiramente o único dia do calendário que me inquieta por antecipação, é natural: faz hoje anos que o Terror se me gravou na carne! Se me contassem, na manhã desse dia, como terminaria, creio que responderia com uma gargalhada, há uns tempos escrevi: “Há dias que nunca deviam ter existido”; baseei-me claramente neste, o Sentido do hoje é o absurdo do amanhã, passado todo este tempo continuo a achar que devia ter partido nesse dia, há ideias de que, felizmente, ninguém me consegue demover, a percentagem de sobrevivência ao sucedido, e no contexto em que foi, era, de facto, mínima, contudo, lá houve alguém que soube como proceder para salvar uma vida, a minha, não obstante tanto sujar-se de sangue, abençoo ou amaldiçoo? Sempre me inclinei mais para a última, é a verdade, não sei quem é, onde vive, o que faz, não deixa de ser curioso: um dos vultos mais decisivos da minha biografia é um ilustre estranho! E continuará a ser, talvez seja melhor assim, abençoo ou amaldiçoo? Se me dessem a escolher, se efectivamente tivesse poder de decisão, optaria inquestionavelmente pela partida nesse funesto dia, também há uns tempos escrevi que “a Dor só nos anoitece a visão das coisas, pouco mais…”, há quem defenda ser uma grande mestra da vida, enfim, é possível que não lhe conheçam o Terror, é fácil afirmar lugares-comuns de uma segura distância do acontecer, o problema começa precisamente quando o Terror nos engole, a verdade é que nunca gostei da expressão “sobrevivente”, um eufemismo para quem teve a “sorte” de escapar a algo, ou o “azar”, pois, uma perspectiva de acasos, e como eu os detesto…! Faz hoje anos, como é natural, que se me quebrou a Confiança com a realidade, se me contassem, na manhã desse dia, como terminaria, creio que responderia com uma gargalhada, jamais as coisas podiam regressar ao antes, até hoje, nunca houve quem tivesse o arrojo de colocar uma questão essencial: “O que aprendeste com esse Terror?” Há uns anos, diria: “Nada!” Hoje respondo: “Anoiteceu-me a visão das coisas…” Isso tem algum aspecto positivo? Nenhum! Tornei-me numa pessoa melhor? Não! A amargura torna alguém melhor? A compreensão de que se atropelam para nos ver caídos e se escondem para não nos verem guindados é positiva para alguém? Não me parece, quando não há poder de escolha, somos simplesmente engolidos pelo acontecer, o pensar nem chamado é para a arena da vida, e, quando estamos caídos, os imbecis em volta multiplicam-se com uma velocidade desconcertante, parte de mim faz hoje anos que morreu, a morte de um sonho é também a nossa morte, e quantos sonhos não morreram neste dia há uns anos? Demasiados, sem dúvida, demasiados… Faz hoje anos que devia ter partido daqui, nem todos se podem gabar de ter uma data assim na sua biografia (Faz hoje anos que devia ter partido daqui), é verdadeiramente o único dia do calendário que me inquieta por antecipação, é natural: faz hoje anos que o Terror se me gravou na carne! À minha volta vi manifestações de nobreza e simultaneamente o mais vil e torpe da humanidade, tudo entrelaçado numa harmonia inquietante, como se à luz se sucedessem as trevas, e vice-versa, até “à consumação dos tempos”, se parte de mim morreu nesse dia, jamais posso ser considerado um sobrevivente, sei que desejava ter partido, nem olharia para trás, no entanto, lá houve alguém que soube como proceder para salvar uma vida, a minha, não obstante tanto sujar-se de sangue, abençoo ou amaldiçoo? Sempre me inclinei mais para a última, é a verdade, não sei quem é, onde vive, o que faz, não deixa de ser curioso: um dos vultos mais decisivos da minha biografia é um ilustre estranho! Há balanços que nos são vedados, este é um deles, os meus desejos aqui não encontram porta por onde entrar, cabe a quem me acompanha os passos decidir se abençoa ou amaldiçoa quem, há uns anos, tanto sujou as mãos de sangue para me adiar a partida…

(10/06/24)

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.