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sábado, 29 de junho de 2024

Olvidar


 

O seu olhar só com a janela, dia ou noite, só a janela, percebia, por aquela quadrícula envidraçada, um telhado, talvez uma extensão deste edifício, e um ramo, por demais tortuoso, como se a própria árvore em esforços para aqui continuar, e o céu, pouco, mas, ainda assim, o céu, pelo menos compreendia se dia ou noite, embora de que adiantasse? Estava na horizontal, num catre longínquo do seu lar, procurava, tanto quanto possível, silenciar uma frase, todos julgam que não a ouvira, porém registou-a, entre o sucessivo despertar e adormecer, entre dores, excessivas, e o choque, “Duvido que volte a andar,” assim, sem mais, uma voz estranha, embora firme na sua convicção “Duvido que volte a andar,” há vozes que jamais deveríamos ouvir, pensou ele, de tão abjectas serem, perdeu o tempo desde que ali estava, afinal, é fácil voltarmos costas ao tempo, num canto do quarto, por acaso a luz não lhe chegava, um objecto, para ele, demasiado ameaçador, como se jamais o deixasse de fixar, uma sentença impronunciada, chegou a ouvir sentenças como “Vai ser a sua melhor amiga, vai ver… Doravante, não quer outra coisa! Será tão natural como respirar… Daqui a dois meses, até corridas fará, acredite…” Limitou-se ao silêncio perante tais alarvidades, não valia a pena argumentar, promover diálogo, estava caído por terra, o seu espírito anoitecera, não havia ânimo para articular uma sílaba, quanto mais para construir argumentos,  num canto do quarto, por acaso a luz não lhe chegava, um objecto, para ele, demasiado ameaçador, como se jamais o deixasse de fixar, uma sentença impronunciada, a cadeira-de-rodas olhava-o e simultaneamente subtraía-lhe o futuro, naquele canto sombrio estavam sepultados os seus amanhãs, não sabia que horas eram, pois, afinal, é fácil voltarmos costas ao tempo, o pior era a altura das visitas, uma chuva verbalizada de lugares-comuns, de forma sublimada alguns fincavam mais os pés na terra, como se lhe gritassem, em silêncio, o que lhe fôra subtraído,  o desespero gritado e teatral dos familiares mais próximos, tudo para maquilhar “Decepcionaste-nos!”, apenas e só, “Decepcionaste-nos!”, como se ali fossem contrariados, e é legítimo, quem deseja ver um familiar, sentenciado com “Duvido que volte a andar,” caído  num catre-hospitalar? Mas as dores respiravam-nele e simultaneamente consumiam-lhe a alma, eram intraduzíveis, sempre foram, há factos onde o Verbo não encontra porta de entrada, a dor é indizível, não obstante o seu carácter universal, é vivida na recôndita singularidade da essência de cada um, jamais o outro lhe tem acesso, assiste apenas ao jusante do seu manifestar, ao contrário do expectável, por estar restringido a um catre-hospitalar, não se apercebeu do tempo, de repente, um mês evolara-se, subtraída a privacidade, não conseguia pensar-se, havia um constante entra-e-sai de gente no quarto, ora com a medicação, ora pela limpeza, as visitas dos familiares, de facto, com o decorrer das semanas, só os familiares, os outros já satisfizeram a curiosidade, há conclusões, pelo seu carácter obscuro, que levam o seu tempo, esta foi uma delas, no entanto lá aportou, tudo se centrava no que poderia fazer, em verdade, se lhe perguntassem, de repente, do que sentiria mais saudades, não saberia responder, a sua atenção estava no futuro: foi aí que se lhe anoiteceu a existência… Quando somos engolidos pela dor, não é possível compartimentar a visão das coisas, algo em si murmurava que o sentir ainda estava sob a anestesia do choque, que quando dali sair talvez desabe perante a realidade das sequelas, com o decorrer das semanas, de facto, só os familiares, os outros já satisfizeram a curiosidade, há uns dias (não foi ontem???) considerava-os como família, os amigos, os tais parentes que escolhemos, hoje, na hora de visita, nem o eco das suas vozes por ali, vendo bem as coisas, havia um aspecto comum a todos: pressa, do olhar aos gestos, em confirmar: “Sim, é verdade, sim, aconteceu-lhe…” Se, agora, já sente o respirar da solidão, apesar do constante entra-e-sai de gente no quarto, ora com a medicação, ora pela limpeza, as visitas dos familiares, de facto, com o decorrer das semanas, apenas os familiares, os outros já satisfizeram a curiosidade, a tal voz sussurrante dizia-lhe que, quando dali sair, talvez enlouquecesse de tão só, mais do que uma voz estranha, embora firme na sua convicção “Duvido que volte a andar,” era este murmurar que tanto lhe oprimia o peito, de certa forma, o excesso de cilindros-coloridos serenava-lhe o pensar, e como as madrugadas de hospital são longas, múltiplos gritos por uma singular e indizível dor, tanto que alguns partem pela desesperança de rever a chegada de um vestígio de manhã, “O inferno é aqui”, pensou ele, “O inferno é aqui, um demónio pegou-me na mão e resolveu fazer-me uma visita-guiada”, num canto do quarto, por acaso a luz não lhe chegava, um objecto, para ele, demasiado ameaçador, como se jamais o deixasse de fixar, uma sentença impronunciada, a cadeira-de-rodas olhava-o e simultaneamente subtraía-lhe o futuro, naquele canto sombrio estavam sepultados os seus amanhãs, se, neste momento, lhe perguntassem do que sentia mais saudades, por acaso já teria uma resposta, as ideias aclaravam-se-lhe, creio que prontamente responderia: “Do que tenho mais saudades? Saudades de sonhar.”

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