Uma das coisas que mais me fascinou em ti, foi facto de seres uma alma desarrumada, davas-me espelho, atenuavas-me a solidão, sabes, há divisões de mim onde nem à porta passo...
in Deslumbramento
Como sempre, àquela hora, náufrago de
mim, cedo aos doces apelos da tépida corrente do sono, no sofá, a meu lado,
minha mulher sempre com a novela, assim que me distancio do mundo, com um ténue
movimento de pálpebras, logo a sua voz a ecoar na sala, como se me adivinhasse
a distância, através de uma interrogação, exclamação, mas um tom a sublinhar o
imperativo de uma resposta, eu na contrariedade do regresso, o movimento das
pálpebras mais lento, sempre o desafio da gravidade, de seguida, o esforço de
me contextualizar, a desculpa mais à mão, Diz
lá, não te ouvi, bastava-lhe o olhar, mas ela sempre mais, Já estavas era a dormir. Já nem televisão
vês! Sinceramente, estás mesmo de todo, e eu queria mesmo era estar todo
longe dali, daquela voz tão alta que até faróis encolhia, a exigir-me um
regresso por mim indesejado, pelo menos àquela hora, ou talvez nas outras
também, as mãos dela num frenético movimento de linhas e agulhas, o olhar
absorto nas vidas que desfilam, diante de si, no ecrã, com uma pronúncia temperada,
propícia a gerúndios recorrentes, uma vez mais, O que é que achas?, eu a hesitar, entre a anuência e a
honestidade, se lhe disser Acho que sim, corro o risco da questão
pronta (Mas achas que sim, o quê?),
logo faróis temerosos em penínsulas tempestuosas, se Estás a falar de quê?, inicia o interminável rosário de
lamentações, desde o dia em que nos conhecemos, a apresentação aos pais,
depois, aquele período, na vida dos casais, que antecede, ou não, uma vida
partilhada, em que se conhecem, ou se enganam, porque aí só sorrisos e flores,
como se fosse possível expulsar o azedume do horizonte dos homens, uma altura
em que o gesto antecede o desejo, e é tão raro isto suceder na vida, só aqui um
casal caminha contra o tempo, nunca mais o volta a fazer, Enganaste-me bem! E eu, parva, caí. Cheio de falinhas mansas, promessas
e mais promessas, para acabar nisto…, entretanto, a campainha, por hoje,
escapei, o miúdo vai a correr abrir, prefere brincar no quarto, talvez já
conheça, demasiado bem, a sequência das falas desta divisão, mas ela atira, Já devias estar a dormir, assim que se
recorda da sua existência, a vizinha da frente entra, nos gestos percebe-se a
familiaridade do hábito, o miúdo aproveita para se despedir, pode ser que
assim, no seu quarto, não haja luzes encolhidas, a vizinha senta-se no sofá ao
lado, desde que entrou, o seu olhar não se desviou daquelas vidas com uma
pronúncia temperada, propícias a gerúndios recorrentes, há uns meses que
desagua na nossa sala, sempre a esta hora, parece que o vizinho se iniciou numa
actividade coral, na paróquia, desconhecia-lhe aptidões para o canto, ao
fim-de-semana só o vejo de volta do carro, primeiro com balde e pano, depois só
com pano, apesar da varanda, nessa altura, percebo que um pano diferente, mais delicado,
assim se passam as manhãs de Sábado, por fim, o aspirador ecoa pela praceta,
alimentado por uma sucessão esforçada de tomadas, que se esticam desde uma
janela até ao interior do carro, como uma ponte suspensa sobre um abismo, ora
de calçada, ora de alcatrão, de novo, uma questão povoa a sala, O que é que acha, vizinha?, enquanto
algures uma luz se encolhe, Acho que ela
o deve deixar. Se ele a traiu…, já não ouvi o resto, sempre a mesma e
cansada fórmula, o A que ama o B, o B que ama o C, o C que ama o D, que acaba
por matar A, e olhos absortos perscrutam isto numa avidez virginal, prefiro
abandonar-me aos doces apelos de uma tépida corrente que me leve para longe de
mim, para um lugar onde as luzes não esmoreçam, a distância cresce à minha
volta, continuo a ouvir gerúndios recorrentes, entre as mulheres, agora, nem
uma palavra, talvez se a vizinha não tivesse o olhar tão absorto, e se a voz da
minha mulher não encolhesse faróis em penínsulas tempestuosas, uma dúvida
silenciada encontrasse a voz e o verbo, O
que é que acha, vizinha?, e, então sim, minha mulher poderia responder, Não imagina como me irrita aquele aspirador
todos os Sábados de manhã… Já agora, você tem ido à missa?, talvez me
esteja a distanciar em demasia, há diálogos que só ocorrem num se de nós, levanto-me para ver se o
miúdo já dorme, logo ela Passa rápido!, obedeço,
da porta da sala observo-as, e, de certa forma, compreendo-as, no fundo, elas
procuram recordar sorrisos e flores, uma altura em que o gesto antecede o
desejo, como é raro isto suceder na vida, e uns instantes em que um casal
caminha contra o tempo.
Quando ali entrámos, há muito que a ideia em mim, ela a apontar-me camisolas, casacos, cachecóis, mas eu, determinada, corredor fora, a loja, àquela hora, apelava a constantes rotações de ombros, e ao afamado com licença português, sempre pronunciado num tímido sussurro, como se de uma súplica se tratasse (Há quanto tempo este povo apenas ora e suplica? Talvez já nem ore, pois isso requer fé, apenas suplique…), com aquela peculiar sucessão de cês, é natural que ora ombros, ora com licenças, tímidos e sussurrados, afinal, trata-se de um Domingo à tarde, não sei bem porquê, mas sinto que há uma tristeza espreitante nas tardes de Domingo, e não afirmo isto por canções ouvidas nos idos da infância, mas por me sentir observada, nessas tardes, por uma melancolia maior que eu, talvez não seja a única, daí ora ombros, ora com licenças, tímidos e sussurrados, nos corredores desta loja, e em todas as outras, ao jantar, em minha casa, apenas a televisão com direitos de emissor, por vezes, como na escola, ergo um dedo apenas para reportar uma ocorrência do dia, logo o meu pai com um sonoro Chiiiiiuuuuu, minha mãe nem sequer se apercebe da minha intenção de tomar as vezes de emissor, tal o magnetismo daquele rectângulo, que apenas debita fome, guerra, peste e morte, há cavaleiros que esperamos há demasiados séculos, e, de tanto esperar, não nos apercebemos de que já vivem entre nós, contudo, nesta tarde de Domingo, ora ombros, ora com licenças, tímidos e sussurrados, nos corredores desta loja, nem vestígios de cavaleiros, nem do sonoro Chiiiiiuuuuu do meu pai, eu a chegar à minha ideia, como se tal fosse possível, só mais tarde iria compreender que as ideias vivem sempre mais adiante, a sentar-me num dos poucos bancos disponíveis, a fingir que experimentava as botas, perdi-me a olhá-las durante dias, ainda tentei expor este desejo aos meus pais, mas logo Chiiiiiuuuuu, os ombros subiram-me, fui para o meu quarto, desabafei através de teclas e símbolos com uma amiga, ela quase me insultou, de anacrónica a inocente desfiou um pouco de tudo, por fim, apresentou-me a sua versão das coisas, eu, ao início, escudada na incredulidade, ela insistiu, desta feita, pela sistematização do relato, vi-me forçada a considerar a possibilidade da verosimilhança do sucedido, ainda me lembro, o meu sono, nessa noite, entre a ambição e uma qualquer outra coisa, que nos faz arrefecer as acções em nome de limites, tão estranho, este balizar de acções, como se fosse impossível ir além de, enquanto outros, sem qualquer freio, parecem mobilizar-se sempre sobre linhas de horizonte, naquela zona difusa de luz e sombras, eu, no aqui, mão sobre o olhar, no esforço de lhes perscrutar os gestos, e um irreprimível desejo de os acompanhar, talvez tenha chegado o dia, levanto-me, avanço até um espelho, de facto, era mesmo isto que eu queria, ela entra num dos provadores, pela hora, pelas rotações de ombros, pelos com licenças, tímidos e sussurrados, ninguém contabilizava peças, reparo que leva descontraidamente duas camisolas, como se numa indecisão de cor, ou para comprovar o tamanho, mas o seu ar resoluto jamais indiciaria a escassez de carteira, resolvo calçar a outra bota, de novo, o espelho, enquanto me revejo seguro o cabelo, como se me turvasse a visão de pés e tornozelos, quanta orfandade nos nossos gestos, volteio-me, uma e outra vez, nisto, ela abandona os provadores, as mãos à vista, disponíveis, sempre descontraídas, regresso ao banco de há pouco, pego na carteira, na caixa dos sapatos, vou arrumá-la, quem a encontrar pode ser que goste de botas em segunda mão, pelo uso, diria antes quarta mão, ela espera-me um pouco à frente, garanto-vos que é quase impossível detectar as duas camisolas vestidas debaixo do casaco da original, sempre a sistematização, ao chegar junto dela, a questão foge-me, E agora?, ela olha à volta e com um sorriso responde, Vens a meu lado, seguimos pela saída sem compras, e vamos contando umas anedotas. Ah, já me esquecia, as botas ficam-te mesmo bem, enquanto me piscava o olho, ladeei-a, por muito que tentasse, parecia-me que todos à minha volta lançavam-me olhares de censura, ao mesmo tempo que olhavam com desdém para os meus pés, sentia-me agrilhoada, tive de respirar fundo para prosseguir, ela impaciente com as minhas hesitações de marcha, a linha de caixas à vista, um segurança, do outro lado, em diálogo com o intercomunicador, os grilhões a pesaram-me mais, não resisto a colocar-lhe a questão, como se uma súplica (ou oração?) por um incentivo, enquanto lhe seguro o braço, E se somos apanhadas? A expressão dela entre a ira e o espanto, Não pensaste nisso antes? Tiveste tempo! Há semanas que me falas dessas botas… Eu nunca fui. Espero que não seja hoje… Ela a afastar-se por causa dos meus grilhões, eu Espera! Vira-se para trás, queria dizer-lhe qualquer coisa, já não me lembro o quê, acho que palavras de limites, pareceu-me que tudo, à minha volta, se imobilizara, nem rotações de ombros, nem com licenças, tímidos e sussurrados, por uns instantes, para me ouvir, aproxima-se, coloca-me a mão no ombro, baixa a voz e diz-me É compreensível. É a tua estreia. Anda! Vais ver que tudo corre bem. Deixa-te de vergonhas. Vergonha é ser caixa de supermercado… A voz dela, agora, de uma linha do horizonte, naquela zona difusa de luz e sombras, quis responder-lhe, mas, uma vez mais, o Chiiiiiuuuuu do meu pai…
Havia uma árvore, num lugar da
infância, a que gostava particularmente de subir. Quase sempre, ao final da
tarde, trepava até ao segundo ramo, e ali me deixava ficar, a olhar. Não bem a
olhar, apesar do rio, lá ao fundo, mas a estar. Talvez pela hora, um calor
emanava, como uma expiração, da árvore, enquanto o mundo, à minha volta,
acolhia a noite, ali perpetuava-se um vestígio de dia. Não havia melhor canto
para se estar. Tudo tão longe de mim, e eu somente a dois ramos da nossa
angustiada superfície. De vez em quando, o meu nome noutras vozes, tão
estranho, o meu nome só com sentido por ser noutras vozes… Mas eu a estar.
Apenas. Agora, tudo tão longe de mim. As águas murmurantes, lá ao fundo, a meio
do vale, trajadas de laranja, talvez por olharem o céu, e o levarem, na sua
corrente, como se passos numa mesma direcção, enquanto olhos que se olham. Uma
brisa cansada anima palavras perdidas entre as folhas, que me falam de
destinos, eu, neste momento, com o rio, lá ao fundo, a meio do vale, de vez em
quando, um cão lamenta-se aos céus, pelas chaminés compreende-se regressos e
jantares, uma carroça sobe o vale num gemido desesperançado, fico a ouvi-la,
afigura-se-me uma sábia melodia, pela sua humilde convicção, de onde estou,
compreendo-a melhor, quem sabe se pelos dois ramos acima da nossa angustiada
superfície, em mim, neste momento, apenas o calor emanado deste ser que se
finca na terra enquanto tacteia os céus, de novo, meu nome noutras vozes, nunca
me souberam aqui, talvez por se terem esquecido de olhar para cima, de certa
forma, compreendo-os, naquela superfície, por onde caminham, dificilmente se
tacteiam céus, continuo com o rio, lá ao fundo, a meio do vale, entretanto,
despira o laranja, agora traja um azul-escuro pontuado, aqui e ali, por
vestígios de luz, continuam passos numa mesma direcção enquanto olhos que se
olham, uma vez mais, o meu nome noutras vozes, desta vez, sinto a cor da
superfície que pisam na entoação, o meu nome pintado de angústia, contudo,
persisto com o rio, lá ao fundo, a meio do vale, extasiado por aqueles
vestígios de luz, tão longínquos e tão familiares (Quantas vezes os hei-de
encontrar em olhos que me olham?), e com o calor emanado por este ser, em parte
oculto, em parte visível, mas sempre em harmonia, as vozes recrudescem, um
pássaro canta no seu voo de lar, em mim, ainda, aquela sábia melodia, de uma
humilde convicção, como um gemido desesperançado, da carroça que subia o vale,
nesta altura, já terá cumprido o seu regresso, embora continue a ouvi-la, como
se este fosse o seu lugar natural, sempre a procura por um sentido, talvez nas
águas que fluem enquanto espelham as cores das alturas, olhos que se olham, sei
que aqui vou regressar, amanhã, depois, para o ano, mesmo quando viver amanhãs
distantes, sempre que as águas trajarem de laranja, vou-me afastar, dois ramos,
da nossa angustiada superfície, embora não saiba para onde fluem as águas,
tenho de regressar para me saber, o meu nome mais próximo, entoado com o perfil
da superfície, tenho de descer, antes, um último vislumbre a um horizonte de
sonhos, talvez por se diluírem distâncias, compreendo que cessara o calor
emanado por este ser, em parte oculto, em parte visível, mas sempre em
harmonia, talvez agora caminhe por outras paragens, quem sabe se acompanha o
fluir das águas, olhos que se olham, já estou no primeiro ramo, antes de sentir
o desconforto na sola dos sapatos, uma melodia reacende-se na minha memória,
uma sábia melodia, pela sua humilde convicção, como um gemido desesperançado,
que me acompanha os passos enquanto as
vozes de há pouco se silenciam, sob um azul-escuro pontuado, aqui e ali, por
vestígios de luz, tão longínquos e tão familiares (Quantas vezes os hei-de encontrar
em olhos que me olham?).
Hoje, quando acordei, todos tinham
saído. Já não me lembro da última vez em que uma palavra pela manhã. Vou à
janela, abro as cortinas, há muito que o estore partido, o meu pai Não mexas aí, que sou eu que arranjo, eu
não mexo, mas o arranjo continua a aguardar uma vontade por cumprir, talvez
nunca a encontre, pela luz, que me devolve as distâncias, percebo a plenitude
da manhã, nisto, compreendo, na entrada do prédio em frente, minha mãe, de
esfregona nas mãos, está de costas, leio-lhe cansaço na lentidão, baixa-se para
aproximar o balde de si, percebo-lhe a dor nas costas, sem lhe ver aquele
característico esgar, jamais um lamento, tudo, por ali, se verbaliza em
falanges contorcidas, o resto, palavras sem som, minha mãe (Desde quando lava o
mundo? E a escada do prédio em frente?) longe desta minha vergonha, por
encontrar, diariamente, manhãs em plenitude (Mas que fazer?), a esfregona em
círculos, lentos, percebe-se-lhe o cansaço, dois miúdos entram a correr prédio
adentro, como se nada diante deles, o calor estende-se, em mim, dos antebraços
às mãos, a esfregona continua a sua dança circular, enquanto uma mão, de minha
mãe, visita a testa, neste momento, no cimo da rua, meu pai com a sua jornada
diária de esquecimento, começa cedo, minha mãe, do cansaço, ou talvez por uma
compreensão desgostosa, nada de censuras, afinal, uma vida inteira de trabalho,
e depois, uma carta a tentar calar décadas, ainda se deram ao trabalho de
contar as linhas, eram oito, os anos de fábrica trinta e dois, continua a sair
de casa à mesma hora, se não sair diz que endoidece, compreende-se, apesar da
diferença no destino, num destes serões, quase num sussurro, disse para minha
mãe, É a única porta que encontro aberta,
nunca se ouviram censuras, talvez na sua consciência uma esfregona limpasse
recriminações, que, assim, jamais encontrariam o verbo, nestas alturas, ela
erguia-lhe os lábios à testa, quanto a mim, permaneço numa zona indefinida
balizada por cadernos e livros e por rectângulos que se preenchem após um mês
de balcão ou sentado numa caixa, a esfregona de minha mãe persiste nos seus
lentos movimentos circulares – máscara do cansaço –, meu pai, agora, com oito
linhas que tentam justificar trinta e dois anos, a sair de casa para abraçar o
esquecimento, neste momento, à minha frente, do outro lado da rua, minha mãe
acena-me, retribuo com uma saudação tímida, afinal, só há pouco abri as
cortinas, mas no seu olhar, do outro lado da rua, não havia vestígios de
censuras, apenas uma alegria genuína por me encontrar, e, naqueles breves instantes
em que nos olhámos, sob a moldura de sorrisos, disse-me que eu não podia fazer
mais, que me ouve entrar em casa, todas as madrugadas, em cuidados pela hora,
vindo do armazém daquele grande supermercado, onde ajudo a arrumar infindáveis
caixotes, com a esperança de assinar, por mais um mês, um rectângulo, assim,
sempre ajuda lá em casa, e rectângulo a rectângulo, onde testemunho em magros
números demasiadas horas, evito trajectos de esquecimento, contudo, à vista da
esfregona, em círculos lentos, numa dança cansada, de minha mãe, daquele verbo
peculiar comunicado por falanges contorcidas, sinto-me a olhar gigantes, apesar
das horas de caixotes noite dentro, dos dedos dilacerados, das costas que
gritam numa dessintonia de omoplatas, ombros, e cervicais, de súbito, uma
vontade encontra-me, saio de casa, atravesso a rua, e, antes que as suas
falanges contorcidas pegassem de novo no balde, eu pego-lhe, ela ergue-me os
lábios à testa, já não há, em mim, vestígios de dedos dilacerados, de costas
que gritam numa dessintonia de omoplatas, ombros, e cervicais, nada, neste
momento, eu olho gigantes, minha mãe –
quantos degraus cumprem uma vida? –, neste momento, caminha o regresso a
meu lado, numa majestosidade ferida, o destino enganou-se-lhe no ceptro, entretanto,
do fundo da rua, alguém entoa uma canção de saudade, como se quisesse esquecer
e lembrar ao mesmo tempo, meu pai, perdido entre duas margens, de súbito,
compreendi a sua frase, sussurrada num destes serões, a minha mãe, É a única porta que encontro aberta.
Quantas vezes o passado visita o
presente? Esta questão ainda estava longe de mim, quando decidi entrar naquela
loja. Não sei bem porquê, nem sequer precisava de qualquer produto dali, mas já
tinha almoçado, faltava uma meia hora para entrar (como é estranho, quando
dispomos de tempo, não sabemos o que lhe fazer…), perdia-me com qualquer coisa,
não me lembro o quê, tal a sua importância, de súbito, num incessante vai e vem
de vultos, um rosto, algo me levantou o olhar, sempre me espantou esta mão
invisível que nos pousa a atenção naquilo que ainda grita em nós, os
incessantes vultos a turvarem-me a visão, contorno a prateleira, o rosto,
agora, imóvel, qualquer coisa na mão, nisto, duas crianças correm na sua
direcção, também seguram objectos, deixo-me estar, também sob o pretexto de um
objecto e da sua análise, ela acolhe, como só uma mãe pode fazer, a corrida das
crianças, gesticulam pela atenção materna, eu, afinal, não me perdia com
objectos e pretextos, mas sim com a indulgência desenhada numa face, nisto, uma
mão percorre-lhe o braço, percebi que um gesto não cansado, mas seguro pela familiaridade,
um incómodo despertou-me algures, os olhos dela saúdam o gesto recente, se me
perguntassem, neste momento, que objecto tenho na mão, não saberia que
responder, é compreensível, há muito que me abandonei ali para caminhar entre
aqueles quatro seres, ele não é muito alto, talvez tenha a mesma estatura que
ela, revela uma fisionomia de sofá, um rosto nutrido a ecrãs e cigarros,
curioso, imaginava-a com uma antítese, as crianças rodeiam-no com a sua
espontaneidade inata, ele em gestos vagarosos, como se o ontem da infância
fosse um bolso vazio, nesta altura, eu já era compaixão por aquela figura
apenas do hoje, ela deteve-lhe a atenção por ali, ele numa solicitude
demasiada, como se não contivesse uma gaveta para a reflexão, parecia
desconhecer que nos definimos não pelo que fazemos aos olhos dos outros, mas
perante os nossos, continuei a acompanhar-lhes os passos, procurava nela um
vestígio de mim, se bem que de há muito, esforcei-me, nada, até nos gestos, ela
uma outra, o pensar sempre a sobrepor-se ao movimento, não bem o pensar, antes
o que é expectável, um pouco isso, parece que temos uma dívida inextinguível
com o mundo, talvez pela existência, daí o papel que nos é imposto, e a
exigência que o cumpramos na perfeição, há muito que eu virara costas a dívidas
e papéis, certo dia, encontrei uma bússola num bolso de mim, por várias vezes,
muita gente tentou-me oferecê-las, umas até muito bonitas, sempre declinei,
aquela, que encontrei num bolso de mim, sempre me indicou as direcções
necessárias a cada momento do existir, pelo que percebo, ela aceitou, a dado
momento, uma dessas bússolas muito bonitas, que vêm em lindos embrulhos,
talvez, por isso, a minha dificuldade em encontrar vestígios de mim, começam a
encaminhar-se para a saída, por momentos, os nossos olhares tocam-se sem, no
entanto, nos reconhecermos, isto só acontece quando nem vestígios restam para
uma arqueologia dos sentimentos, enquanto ele paga, ela orienta crianças e
casacos, nunca lhe divisei estes gestos, tantas vezes, naquelas longas tardes
de suspiros e murmúrios, ela desenhou-me um amanhã distinto (quantos amanhãs
por cumprir suporta um coração?), sem descendência, falava de tempo, parecia,
não sei bem porquê, que receava perdê-lo, para agora, aos meus olhos, caminhar
ao lado de uma antítese, baixar-se, por duas vezes, para abotoar casacos, eu,
sem compras, sem ter de me baixar, quanto mais por duas vezes, para abotoar casacos, saio antes deles,
disponho de uns escassos minutos para regressar, atravesso a rua, um vento frio
relembra-me o calendário, levo instintivamente as mãos aos bolsos, talvez, por
isso, algo me dite a direcção do olhar, viro-me para trás, estão, neste
momento, a sair da loja, ela à frente, depois os miúdos, por fim, ele, com dois
sacos, da compaixão inicial derivei para uma certa simpatia por aquela figura,
é bem possível que até viesse a gostar dele, ela também leva as mãos aos
bolsos, fico a vê-los, por uns segundos, caminharem na direcção oposta, antes
de me virar, palavra de honra, pareceu-me ouvir suspiros e murmúrios, talvez
alguém tenha revisitado uma gaveta de si, onde guarde os desenhos do amanhã.
Pedro de Sá
HARMONIA
… não choreis
por Mim, chorai antes por vós mesmas e pelos vossos filhos…
Lucas 23, 27-31
Sede prudentes
como serpentes e inocentes como pombas.
Mateus 10:16
ÍNDICE
A página em branco…………………………………………....5
A Ideia…………………………………………………………..50
A Escrita…………………………………………….…………….100
A página em branco
Se me perguntassem como ali cheguei,
não saberia o que responder, afinal, tudo começou há muito. Mas, agora, ali na
rua, sob aquele inclemente sol de Agosto, a tarde no seu auge, não havia tempo
para considerações acerca da génese deste meu destino. Toquei à campainha, nem
hesitei, o trinco da porta demorou o necessário a abrir-se, entrei, aproveitei
para respirar fundo e fruir da frescura da entrada forrada a mármores, sempre
apreciei a frescura das entradas dos prédios antigos, por vezes, reflectia se,
com os tempos, não desaprendêramos de fazer as coisas… Subi a escada até ao
primeiro-andar, enquanto ouvia uma porta a abrir-se, aí chegado, deparei-me com
uma mulher, de estatura média, era agradável à vista, tinha uma beleza
dissonante dos seus gestos e voz, como se um corpo que merecesse outra alma
(quantas vezes tal sucede?), teria mais uns dois ou três anos que eu, sempre
fui péssimo a estimar idades, porém, desta vez acho que acertara, até porque,
de certa forma, estava contextualizado, cumprimentámo-nos, ela Chegou um pouco antes da hora. Não olhei
para o relógio, achei que seria uma manifestação de fraqueza, optei por um
sorriso, sempre a melhor forma de ocultar sentires e pensares, estendi-lhe a
mão, ela retribuiu, cumprimentámo-nos, convidou-me para entrar, conduziu-me
para a sala, enquanto Bom, depois do seu
telefonema, confesso que dei voltas ao assunto, e não sei bem o que quer de
mim… Afinal, não o conheci assim tão bem. Apontou-me para um cadeirão, sentei-me,
ela sentou-se, num sofá barato, bem à minha frente, porém, lá prevaleceu um
resquício de educação Desculpe, nem lhe
perguntei se toma alguma coisa… Quer um café? Não sei porquê, mas nunca
tive forças para recusar um café, aceitei, sinceramente, acho que ela esperava
o contrário. Levantou-se, enquanto isso, olhei à minha volta, percebia-se que
se tratava de um apartamentozito alugado, talvez com uma renda inversamente
proporcional ao espaço disponibilizado, mobiliário só o necessário, como é
natural nestes infelizes tempos de inconstância, além desta salita onde
estávamos, pelas portas que vi, poucas mais divisões deveria ter, regressou com
o café, vestia uma roupa de desporto, coçada em vários pontos, as cores
esbatidas, uns ténis, apesar de serem de uma marca em voga, não me escapou que
fossem o modelo mais básico, o que conferia ao quadro uma nota desagradável,
pois, a tal ideia de dissonância, a sua dicção era sofrível e o esforço pelo
verbo faziam-na salivar, felizmente ainda estava a alguma distância e eu não
uso óculos, mas, assim que se silenciava, de novo, como se por milagre, diante
de mim, aquela beleza de há pouco, discreta, é certo, mas tão longínqua
daqueles gestos, salivares, roupas coçadas, enfim, houve outro pormenor que não
me escapou, desde que ali entrei, não vi um único livro! Sempre achei que uma
casa sem livros é um homem sem ideias. Como pôde ele relacionar-se com uma
mulher assim? A minha curiosidade aumentava, de facto, ela evidenciava outros
atributos, talvez fosse por aí… Como
estava a dizer, estendeu-me a chávena e sentou-se no sofá barato, bem à
minha frente, não percebo bem o que quer
de mim. Já agora, é da família dele? Reparei que o salivar se adensava à
medida que ela procurava acelerar o discurso, talvez houvesse também alguma
nervoseira à mistura, procurei tranquilizá-la pausando as palavras, Não. Nada disso. Estou a recolher dados para
um trabalho académico. Sabe, todos os seus livros são puramente
autobiográficos. É esta a minha convicção e quero demonstrá-lo. Acredito que
cada linha que escreveu corresponde a um instante vivido. E, como é natural,
tenho esperança de encontrar resposta para a sua decisão… Percebe, não é? O que
o levou a… Neste ponto, percebi-lhe algum desconforto, remexeu-se, por mais
que uma vez, no sofá, Pois, compreendo,
mas insisto: não sei como ajudá-lo. Saímos juntos algumas vezes. Nada mais… Compreendi
que tinha de me socorrer rapidamente de uma questão, a seiva do diálogo, O que sentiu quando soube da sua morte? A
mudança tão repentina, na geografia da conversa, deixou-a perplexa, demorou o
seu tempo a recompor-se, Bom, foi
terrível, não acha? E naquelas circunstâncias… Não estava nada à espera! Foi um
amigo comum que me contou. É curioso, agora que falo nisto, uma parte de mim
não ficou surpreendida. Ele falava recorrentemente da morte. Eu até lhe dizia
para afastar tais pensamentos. Mas parecia uma obsessão. Começava a achar
que, afinal, não tinha perdido o meu tempo! Recostei-me no cadeirão, acho que
este gesto a incentivou à palavra, pareceu-me que também ela precisava de
reorganizar este acontecimento em si, Certa
tarde, estávamos num café, ele andava inquieto, isto sucedia quando não tinha
matéria para a escrita, este ponto, claro, não me passou despercebido, se
ela, há pouco, afirmou não o conhecer assim tão bem, como é possível saber a
génese da sua inquietude? Optei pelo silêncio e deixei-a prosseguir, Começava a perguntar-me pelos meus pais,
irmã, se nos dávamos bem, a minha infância, amores passados, eu respondia-lhe,
claro, mas, ao mesmo tempo, percebia-lhe esta inclinação vampiresca, afinal,
ele precisava de temáticas para escrever, agora que me lembro disto, sabe que
chegou a escrever sobre mim e um antigo namorado? Mandou-me o texto e perguntou
se correspondia, li-o, mas confesso-lhe a minha dificuldade com aquela prosa,
não sei porquê, parecia-me que ele escrevia ao contrário do suceder das coisas.
Como hei-de dizer? Parecia que estava a assistir ao desenrolar da história, mas
sob um outro ponto de vista, ou mesmo de vários pontos de vista, na altura,
optei por discordar da sua descrição demasiado suburbana da casa dos meus pais,
ele refugiou-se, de imediato, na liberdade criativa. Anuí, claro está, para
disfarçar o meu desconforto com o rótulo de suburbanos. Neste ponto, quase
não disfarcei um sorriso, relanceei, uma vez mais, a roupa de desporto, coçada
em vários pontos, com as cores esbatidas, e o modelo básico dos ténis, a
dicção, como é óbvio, só servia para coroar o quadro geral, porém, uma questão
impunha-se Mas achava-o elitista? Acho
que ficou, de novo, surpreendida com a minha frontalidade, Elitista? Bom, como hei-de dizer? Sabe, quando li aquele texto sobre
mim e um antigo namorado, no fundo, foi a única coisa que li dele, não sou
muito de leituras, então, literatura, não tenho mesmo paciência! Gosto de
coisas mais práticas, mais palpáveis, mas voltando àquele texto, ele pegou na
história que lhe contei e trabalhou-a como quis, não o reconheci naquelas
linhas. Se me dissessem que tinha sido escrito por um desconhecido, eu
acreditava, porque o texto era muito sério, muito erudito, bom, eu sabia que
ele tinha todas essas qualidades, porém, no dia-a-dia, não era nada assim,
acho, inclusive, que o procurava disfarçar, talvez para não se distanciar em
demasia de nós... Por outro lado, às vezes, roçava a extrema má educação e
chegava a ser agressivo, no trânsito, então, nem lhe digo nada… Agora,
elitista, não creio que fosse. Bom, era um bocado snobe, quer dizer, tinha os
seus momentos, sobretudo, lá está, quando tinha de demonstrar a sua erudição,
no entanto, quando a coisa virava, parecia que estávamos diante de um autêntico
cavador. Não me escapou um pormenor, resolvi jogar um trunfo na mesa, Falou-me há pouco do trânsito. Afinal, pressuponho
que saíram várias vezes, certo? Como sempre sucede nestas situações,
percebo-lhe desconforto pelo desvelar da mentira, Sim, tem razão. Mas não é meu costume falar da minha vida a estranhos,
como deve imaginar. E, já agora, o senhor anda a investigar a vida privada dele
ou a sua obra? Tentativa de inverter os papéis, um clássico, sorri-lhe de
novo, neste momento, acho que ela estava mais ansiosa por falar do que eu por
ouvi-la, não me pareceu que fosse adiantar muito ao que já sabia, contudo,
deixei-a prosseguir, Ao contrário do que
possa julgar, eu também tenho faculdade, e muito antes de si. Noutra área, é
certo, daí a minha distância das letras. Não pude reter a imagem daquela
dicção, diante de um auditório, a dissertar sobre a mais singela temática. Dei
o meu melhor para liquidar, de imediato, a gargalhada que me nascia. Consegui
restabelecer-me, assumi uma expressão de interesse pelas suas palavras,
enquanto anuía com insistência, para que ela levantasse o passado, Corremos vários cafés e esplanadas. Quase sempre
junto a praias. Percebia-se que ele amava o mar. Acho que o tranquilizava. Às
vezes, ficava-me a impressão de que o entediava, nesses momentos, percebia-lhe
pressa nos gestos e uma ânsia de regresso, no fundo, ele nunca quis dar aquele
passo, percebe, não é? Eu sabia que o coração dele já tinha, há muito, a
forma de um rosto, só não compreendia o porquê desta insistência em caminhar,
por cenários marítimos, com esta dicção a seu lado, Após a nossa primeira saída, eu percebi logo. Sabe como é? Às vezes,
estamos em casa, enfadados, e temos de ir à janela, está a perceber? Acho que
foi isso que lhe aconteceu. Eu estava no fim de uma relação, prestes a
regressar para casa dos meus pais. Imagine que, no dia a seguir à nossa
primeira saída, logo pela manhã, ele mandou-me uma mensagem: “Gostei muito do
entardecer de ontem”. Ele era diferente de todos que já tinha conhecido,
acredito que, no fundo, não tinha a menor noção do que queria. Parecia uma
criança que escolhia um brinquedo, mas assim que lho davam, hesitava… Perdia o
interesse. Ele, como lhe disse há pouco, era alguém que estava em casa,
enfadado, e teve de ir à janela, contudo, nem a ousava abrir… Permanecia ali,
somente a olhar, desculpe, acho que já estou a divagar, mas diga-me uma coisa,
uma vez que está a realizar este trabalho, ainda por cima de teor académico, já
tem resposta para o que aconteceu? Encolhi os ombros, confesso que foi um
gesto irreflexo, a questão, tornada resposta, surgiu-me espontânea Ainda não. Mas há pouco disse que não ficou
surpreendida. Tem alguma resposta para o sucedido? Ela fixou-me o olhar,
confesso que não era desagradável demorarmo-nos por ali, tinha um tom de mel
que adoçava o sentir, por fim, Como lhe
disse há pouco, era um tema recorrente nas suas conversas. Sabe, acho que, no
fundo, estava tão enfadado da vida que… Era daquelas pessoas que estão sempre
insatisfeitas. Às vezes, num lanche, por exemplo, ficava a ver-me comer, olhava
constantemente à sua volta, estivesse onde estivesse, creio que nunca
encontraria a paz… Tinha uma questão agendada para lhe colocar, mas
declinei-a, era óbvia a resposta, se o caracterizou como alguém que está em
casa enfadado e vai até à janela respirar fundo, é porque ela está precisamente
do lado de fora, faminta de um lar, à espera da melhor porta ou janela que se
abra para, então, se alojar. Agora compreendo o porquê de ele permanecer
impassível à janela, apreciou uma paisagem pintada de mel, mas não foi tolo
para a deixar alojar-se… Acredito que, no fim, terá compreendido este equívoco.
Acho que ela pouco mais acrescentaria, a chávena de café equilibrava-se, agora,
com esforço, no braço do cadeirão, cansara-me de a segurar, antes de me
levantar, uma última questão Então, acha
que ele era apático face à vida? Demorou o seu tempo a contextualizar a
pergunta, percebi que não gostava de dar parte fraca, Sim, creio que se possa colocar a questão nesses termos. Às vezes,
parecia enjoado de viver. Refugiava-se, quase sempre, no gozo, tinha piadas
para tudo e todos, mas acho, sinceramente, que era um papel que representava,
talvez mais um, de facto, lamento dizê-lo, só estranhei a demora desta notícia…
Perante a frieza desta afirmação, levantei-me de rompante, escondi-me, de
novo, com um sorriso, ela, quase surpreendida, Então, vai já? Antes de lhe responder, peguei na chávena, não fosse
ceder ao esforço do equilíbrio, devolvi-lhe, felizmente intacta, Sim, tenho de ir. Recolheu a chávena,
num gesto aquém do feminino, era deselegante nos gestos e andar, e não se pode
dizer que tal se devesse à sua formação na área de desporto, muito pelo
contrário, era -lhe inato, Calculo que vá
ouvir outros testemunhos, denotei curiosidade nesta sua afirmação, Sim, claro, quero percebê-lo tanto quanto
possível, encaminhei-me para a porta, ela acompanhou-me, Espero ter-lhe sido útil. Permita-me a
curiosidade, o que lhe despertou o interesse por tudo isto? Foi algum livro
dele? Chegou a conhecê-lo? Pus as mãos nos bolsos, quando estava de pé, não
sei porquê, pensava melhor de mãos nos bolsos, olhei-a num jeito de adeus, é
sabido que, nesta vida, há rostos que só vemos uma vez, ver não é olhar, convém
a ressalva, apreciei, uma vez mais, aquele tom melado no olhar (se naquele
corpo uma outra alma), Conheci apenas o
que ele derramou de si em folhas e folhas. Sabe, dialogámos muito enquanto o
lia, mais do que se falássemos. Porque ler é isso, dialogar sem falar. E ele,
sem dúvida, foi dos escritores que mais espelho me deu. Às vezes penso que
nunca viveu, parece que nunca saía de si, tudo era interiorizado, não sei se me
faço entender… Procuro exactamente provar o contrário, que foi o excesso de
vida que o levou a… Percebe, não é? Por acaso, ele nunca lhe falou daquilo? Do
sucedido há muitos anos? Não queria verbalizar, de novo testava-a, Suponho que esteja a falar do… Nunca falámos
disso! Não é que fosse tabu, mas, sinceramente, nunca vi necessidade. Sabia a
causa, acho, sinceramente, que toda a gente sabia, se ele nunca tocou no
assunto, não era eu que o ia fazer… Confesso que esta foi a única resposta
que a elevou um pouco, maquilhava um pouco aquela imagem de quem está do lado
de fora, faminta de um lar, à espera da melhor porta ou janela que se abra
para, então, se alojar. Na sua opinião,
acha que ele vivia bem com isso? A resposta não tardou Acha que alguém vivia? Creio que o tornou ainda mais arrogante. Havia
uma vaidade muda por ter ultrapassado aquilo, percebi-a, segunda boa
resposta da tarde, também tinha ficado com essa imagem, dos vídeos e fotos que
dele vi, despedi-me, não sem antes desejar-lhe felicidades, ela retribuiu,
deu-me um cartão, caso quisesse pôr-me em forma, dava também aulas
particulares, fiquei com a impressão, talvez pela escassez de mobiliário, que a
coisa não lhe corria assim tão bem, já na rua, percebi que a tarde arrumava a
mala, arrefecera, tomei o caminho de casa, enquanto organizava ideias. Se
procurasse, com a exigência devida, uma nova luz após esta conversa, confesso
que seria em vão. Ela não acrescentou rigorosamente nada ao que eu já sabia.
Houve, de facto, escritos que ganharam outra vida após conhecê-la. Mas apenas
porque a percebi enquanto personagem. E o contexto envolvente, claro. Apanhei o
metro. No dia seguinte, ia visitar o vulto que mais o influenciou culturalmente.
Se ali não tivesse desaguado, a certa altura da sua vida, jamais teria escrito
uma linha. Andava pelos oitenta. Talvez já estivesse para além de tão distinto
número. Ao contrário do que esperava, foi bastante solícito em receber-me. Até
ao momento, curiosamente, a mais nova da lista, foi a mais relutante, e, no
fim, tanto queria falar e tão pouco tinha para me dizer. Consegui um lugar, há
muito que tal não sucedia, aproveitei para rever apontamentos, o balouçar das
carruagens também mudava a minha paisagem interior, não sei porquê, tinha o
efeito de me levantar memórias, fechei os olhos, e descobri-me menino com uma
bola nos pés… O trinco da porta fez-me recuar um passo, mal refeito, entro,
sorri à vista da porta de grades que protegia o elevador, sempre que, algo do
passado se nos levanta, parece conter, em si, o vestígio de uma inocência ida,
era um edifício robusto de meados dos anos sessenta, o meu destino ficava no
segundo andar, assim que o elevador se imobilizou, já me aguardava, na soleira
da porta, saí, percebi que me observava, senti-me desconfortável, quase deixava
cair a pasta, demorei cinco a seis passos até lhe apertar a mão, por fim,
conhecia-o, nós só somos para quem nos conhece, e eu estava diante do vulto que
mais o influenciou, repito: se esta porta, no segundo andar, não lhe tivesse
sido aberta, jamais uma linha teria sido escrita. Com um sorriso límpido,
convidou-me a entrar e apontou-me para o fundo de um longuíssimo corredor, a casa
num silêncio reflexivo, agradavelmente fresca, enquanto lá fora o mundo
enlouquecia sob a vertigem ardente de Agosto. Entrei numa divisória em que só
via livros, pus-me, de imediato, a ler lombadas, há coisas que nos são inatas, ao
meio, uma imponente secretária, também com pilhas de livros, papéis, muitos
papéis, rascunhos, apontamentos, pela forma como por ali se mobilizava,
percebi-lhe uma ordem, contudo, incógnita para qualquer estranho, até que Sente-se. Por favor, esteja à sua vontade.
Já vi que gosta de livros! Percebi, nesta sua afirmação, entoada com algum
entusiasmo, como alguém que perspectiva uma possibilidade de diálogo, um pouco
como um viajante, em terras longínquas, que encontra alguém que fale a mesma
língua, no fundo, a compreensão, Sim, desde
criança. Sentei-me num sofá, demasiado baixo, bastante desconfortável, mas
esforçava-me para iludir a minha situação, Então,
pelo que percebi do seu telefonema, está a redigir uma tese sobre a sua obra…
Algum livro em especial? Expliquei-lhe o meu ponto de vista, que tinha a
convicção de que todos os seus escritos são autobiográficos, e é esta a ideia
que pretendo sustentar. Bom, não serão
todas as obras literárias autobiográficas? Não é uma ideia nova. Retorqui
que o sabia, mas, no caso dele, acrescia o trágico e recente fim… Muito bem, em que posso ajudá-lo? De
novo, aquele sorriso límpido, um olhar que transparecia uma compreensão
sapiente e, simultaneamente, uma curiosidade, quase infantil, em conhecer o
outro, a farta cabeleira prateada conferia-lhe um ar de majestade resignada, a
sua entoação parecia iluminar cada sílaba, havia nele uma familiaridade com a
palavra irrepetível, É simples, respondi-lhe,
Fale-me um pouco das vossas conversas,
troca de ideias, leituras, autores favoritos, e até, se quiser, o que acha da
sua obra… Cruzou os dedos, expirou longamente, endireitou-se na cadeira, Nem imagina quantas vezes já me colocaram
essa questão! Reporto-me à última, naturalmente. Só queria um tostão por cada
vez! Estava rico! Se me perguntassem, a certa altura da vida, quem, com toda a
certeza, jamais escreveria uma linha, o nome dele pontificava entre os
primeiros a elencar. E, no fim de contas, foi o que se viu… Pois é,
enganamo-nos! É sinal de que a vida nos surpreende. Ainda me lembro, o telefone
a tocar, e, do outro lado, a sua voz, muito resoluta a declarar-me: “Vou
escrever um romance”. Parte de mim, confesso, riu-se, mas houve outra que levou
a coisa muito a sério. Afinal, o rapaz já nos havia surpreendido. Tinha uma
característica ímpar: determinação. Agora que abordo isto, não sei se era tanto
determinação ou maturidade. Talvez estivesse naquela fase da vida em que
começavam a escassear as munições, e não podia dar-se ao luxo de falhar. Creio
que fosse mais por aqui… Procurei redireccionar um pouco a conversa, ir ao
encontro das áreas que procurava iluminar, E
o que mais apreciou nos seus romances? A resposta não tardou muito, uma vez
mais A maturidade! Atenção, a maturidade
de conteúdos, a forma, como sabemos, é um aperfeiçoar constante. Mas, sim, para
a sua idade, olhava o mundo como um ancião. Quem o conhecesse não diria, porém,
conseguia descer ao invisível universo do sentir. Às vezes, punha-me a dar-lhe
conselhos, no fim, fazia sempre à sua maneira. Não valia a pena! Se concordava,
até os seguia, contudo, sublimadamente deixava no ar que a escolha seria sempre
sua. Percebi, pelas entrelinhas, a fricção normal entre duas personalidades
bem firmadas, mas que, ao mesmo tempo, se admiravam. E a admiração desagua
necessariamente no respeito. Aproveitava cada pausa para olhar à minha volta,
do chão ao tecto, lombadas e lombadas, estava fascinado, não lhe passou
despercebido o meu espanto, Sabe, sempre
achei que uma casa sem livros é um casa sem alma, sorri-me, pensava o
mesmo, mas expressava-o de outra forma, como anteriormente referi, “uma casa
sem livros é um homem sem ideias”, Disse-me,
há pouco, que foi a maturidade do sentir o que mais apreciou nos seus romances.
Que, infelizmente, não foram muitos, como sabemos. Destaca algum? Passeou o
olhar pela paisagem de papéis sobre a secretária, expirou, até que O terceiro, sem dúvida. Antes que
pudesse esboçar um “porquê”, prosseguiu Quanto
à forma, no meu entendimento, atinge o seu ponto mais alto enquanto prosador.
Em relação ao conteúdo, é a história, romanceada, é certo, da sua família. De
facto, tudo aconteceu, só que sob uma outra luz. É como se um acontecimento, da
manhã, fosse relatado ao entardecer… Por falar nisto, sabe, numa das nossas
últimas conversas, confessou-me, com alguma relutância, que receava o
anoitecer… Como justificação, acrescentou que lhe pesava mais o pensar a essa
hora, fiquei curioso, também já tinha andado por aí, infelizmente, algo se
colocou, não sei se um telefonema, a minha mulher a bater à porta, qualquer
coisa, não me lembro, e esta pertinente questão diluiu-se… Mas quando procurou
palavras, para confessar esse receio, percebi-lhe uma genuína apreensão. Não
sei se foi mais um factor a contribuir para… Percebe, não é? Não, não andava
bem… De certa forma, e penitencio-me por isso, sinto que contribuí para o
efeito, sempre que o via, a minha fatal insistência: “Então, meu rapaz, já
voltaste ao romance?” Ele, coitado, muito condoído, a olhar o soalho, “Ainda
não. Continuo sem matéria…” Eu, imprudente, logo: “Deixa-te daqueles
textozinhos, deixa-te disso, e consagra-te ao romance! É aí que o escritor se
revela!” Os textozinhos a que me reportava eram as suas crónicas, no fundo,
tecnicamente falando são contos, mas ele denominava-as de crónicas, que fazer?
Eu gostava, tal como muita gente, a multiplicidade temática era admirável, lá
está, a maturidade, contudo, acho que dispersava tempo e talento num tão curto
galope. Repare, o romance perdura, aquilo não, por muito que se goste. Mas ele
sempre precisou de palco… Tive de interromper, a questão interessava-me, Como assim? Palco em que sentido? Não se
mostrou surpreendido com a minha interrupção, prosseguiu como se não tivesse
ocorrido, Sabe, há pessoas que, assim que
saem de casa, caminham pela sombra, nem ousam buscar um rosto conhecido no meio
da multidão. Apenas e só porque não lhe sentem a falta. Se o encontrarem,
cumprem com a educação, se não, ainda melhor. Ele pertencia ao lado oposto,
carecia de atenção, precisava de ser reconhecido, admirado, para prosseguir.
Era o alimento do seu ego, do “eu”, como lhe queira chamar. Chegávamos quase a
discutir quando tentava refrear-lhe as desmesuras, porém, creio que tudo
brotava de uma carência inextinguível, mas havia nele um aspecto distinto,
assim que obtinha o que procurava, fechava-se em si mesmo, num pudor de gestos
e sentires, quase numa confissão sem verbo de que este não era o seu lugar…
Somos tão estranhos, não é verdade? Concordei prontamente, ainda
acrescentei Que grande verdade! Emoldurada
por aquele cenário de lombadas e lombadas, a conversa decorria sem ponteiros,
havia uma questão que talvez ali encontrasse o seu fim, O que acha que o levou a escrever? De novo, cruzou as mãos, olhou
pela janela, inspirou, expirou, longamente, pelo menos duas vezes, Acho que é essa é uma pergunta sem resposta.
Porque ou se nasce escritor ou não, como músico, pintor, por aí fora… Bem sei
que, agora, há escolas de e para tudo. Tolos a enganar tolinhos, apenas e só.
Sabe, olho à minha volta e cada vez revejo-me menos nas coisas. Com a idade,
senti essa distância a aumentar, a aumentar, até que fiquei nesta margem de
indiferença, olho as coisas sem um vislumbre de espanto… Foi a forma que
encontrei de manter o meu equilíbrio. No fundo, aquilo que todos procuramos. É
impossível, com o tempo, não nos tornarmos saudosistas. Acho que as saudades
são proporcionais aos grisalhos. É uma aprendizagem da vida. Parece que, de
certa forma, vamos sendo empurrados para fora do palco do existir: pela saúde,
pelas modas, tecnologia, convenções, ideias, hábitos… Bom, peço desculpa,
acabei por me dispersar, e estou a falar mais de mim… Perguntou-me qual o
motivo, no meu entendimento, que o levou a escrever… Acho que foi quando
desistiu de fugir de si. Ou talvez tenha sido o contrário: houve um momento, na
sua vida (não sei se quer que o especifique), em que se viu irremediavelmente
cercado, de facto, não tinha mais por onde escapar, foi aí que se sentou à mesa
consigo mesmo e se descobriu. Pois, as vozes… Só quem escreve as entende. Uma
frase insistentemente sussurrada, alguém que nos sai ao caminho e suplica que
contemos a sua história, um vulto que nem conhecemos, mas que se ergueu no
nosso pensar, insiste para darmos corpo à sua narrativa, passa a acompanhar os
nossos passos durante dias, semanas, meses se preciso for, até que capitulemos
à sua insistência, e, por fim, resolvamos preencher folhas em branco com a sua
voz, ou um momento que se deve emoldurar numa folha, para que não se vá da memória
sob os caprichos do rio do tempo, enfim, podia continuar a minha dissertação
sobre a génese da criação literária, mas creio que se tornaria fastidioso.
Agora, um facto notório foi a sua mudança. Não retive a questão Como assim? Percebi, pelo seu olhar, que
caminhava por paisagens idas, Ficou mais
amargo, pessimista mesmo. Passou a refugiar-se num humor sarcástico para
enfrentar este lado de cá do existir. De certa forma, parecia apático face a
tudo. Nada o mobilizava. Quando antes, vociferava, revoltava-se, explodia
perante qualquer injustiça, desde a política ao trânsito, do futebol à taxa de
desemprego, porém, não me passou despercebido que, nestes últimos tempos,
limitava-se a um sorriso esbatido, por vezes, acompanhado por um encolher de
ombros, acho, olhando para trás, que iniciara aí o adeus às coisas, começara a
descer os degraus de si… Aceita um café? Não pude recusar, reparei, pela
janela, que a tarde já acenava despedida, de facto, a conversa ia longa,
algures por mim nascia a sensação de que me perdera perante tanta informação, o
meu desnorte não pôde passar despercebido àquele olhar límpido e intuitivo, Acho que o soterrei com tanta informação, instintivamente
neguei com a cabeça antes de dar voz ao pensar, mas ele prosseguiu, No fundo, tudo se resume ao mesmo: dar
sentido! Ele escreveu para dar sentido às coisas! O café chegou pela mão da
empregada, pelas escassas frases trocadas, percebi que a sua mulher estava
noutra divisão, sentada, teria dificuldades em se mobilizar, diante de um
televisor, não aprofundei o tema, afinal, não era a sua existência que me
movia. Bebi devagar, sempre gostei de saborear um bom café, espantei-me ao
perceber que ele já devolvia a chávena ao tabuleiro, pois, procurava o efeito e
não o sabor, assumiu, de novo, um ar professoral e começou a dissertar O sentido! Creio que, a certa altura,
escrevia para não enlouquecer. Seja lá o que isso for da loucura! Com os meus
oitenta e dois anos na terra dos homens continuo sem saber o que é a loucura!
Mas, sim, ele abriu uma porta, como todos que escrevem – repare: eu disse:
escrevem, e não escrevinham, creio que entendeu –, daí as vozes, a quem a
caneta cegamente obedece, percebia-se tão bem quando ele estava imbuído num
livro, um pouco como quem está a viver uma enormíssima paixão: distante, feliz,
absorto, com pressa em regressar, antes que o perca… É esse fatalmente o maior
receio: que a voz se cale… Quantos, na história dos livros, não acabaram assim
com as suas vidas? Fala-se disto e daquilo, mas o terror de quem escreve é que
a voz o abandone. Só assim o sentido! Não creio que ele tenha perdido a voz ou
vozes. Para mim, a coisa apresenta-se de uma outra forma. Já lhe disse
anteriormente, perdeu a alegria, o entusiasmo pela vida… Claro que não foi algo
espontâneo, vistas daqui as coisas, foi como uma hemorragia ao longo dos anos,
nestas últimas semanas, nada o movia, nada, um fastio de tudo e todos, acho
que, ao contrário de muitos, não se separara da realidade, muito pelo
contrário, mergulhara em demasia nela. Aí começou o esboço do seu desejo de
partir… Um estado de consciência absoluto, aquela inextinguível sede de controlo
sobre si e o acontecer à sua volta, inevitavelmente algo teria que ceder, e a
escrita, sempre a escrita, muitos viravam costas, a maioria por estar aquém de
tais desígnios, e havia os outros, os passageiros da inveja, sempre os piores,
esses fingiam que nada se passava, como se ele nunca tivesse escrito uma linha,
como se não houvesse nada de novo debaixo do céu do mundo, contudo, ele tinha
pena destes últimos, afinal, são sempre os que mais sofrem, porque,
lastimavelmente, têm consciência da sua limitação. Dei por mim a olhar para
o relógio, o meu gesto, claro, não passou despercebido àquele olhar límpido, Espero não estar a maçá-lo… Fui
imprudente, o que eu insisti para que me recebesse e, agora, dou ares de
apressado, tinha de prontamente rectificar a situação, mas nem uma palavra se
me aflorava para construir uma frase com um sentido de desculpa, ele olhava-me
impassivelmente, sabia-me sua presa, quanto mais tempo de silêncio, maior
dificuldade em preencher o súbito vazio que se abriu entre nós, tudo devido à
imprudência de um gesto irreflexo da minha parte, até que lá consegui balbuciar
qualquer coisa que felizmente conseguiu terminar em frase, Não… Nada disso! Peço-lhe imensa desculpa pela minha deselegância. De
forma alguma, me está a maçar. Pelo contrário, nem dei pelo tempo passar. Daí a
minha surpresa pelos candeeiros, lá fora, já iluminados. Até lhe queria pedir
se poderia voltar. Creio que ficou tanto por dizer. E, permita-me, felicitá-lo.
Nem imagina os horizontes que já me abriu! De certa forma, a questão do meu
regresso, para uma segunda conversa, pareceu-lhe
natural, creio que a aguardava, afinal, melhor que ninguém, sabia que ficara
tanto por dizer. Levantou-se, eu secundei-o, colocou as mãos nos bolsos,
olhou-me com um sorriso compreensivo, Já
agora, diga-me uma coisa: qual foi o livro que mais gostou dele? Não
estranhei a sua pergunta, talvez a aguardasse, não tardei a resposta, O segundo, sem dúvida. Contornou a
secretária, foi até à porta, e disse-me Venha!
Acompanho-o até à saída. De novo, o longuíssimo corredor, ao contrário do
que geralmente sucede, afigurou-se-me ainda mais longo no regresso, talvez por
estar mergulhado em sombras, no patamar, após chamar o elevador, a sua voz, com
aquela entoação que parecia iluminar cada sílaba, disse-me Regresse quando quiser. Ainda há muito por dizer. Em verdade, calamos
sempre mais do que dizemos… Além disso, gosto de falar com alguém que olha
lombadas. Apertei-lhe a mão, combinámos para dali a três dias, de novo, a
porta de grade a proteger o elevador, sorri-me, já na rua, após dois ou três
passos no passeio, parei para inspirar a noite recém-chegada, tanta informação
recebida que estava num estado de quase letargia, era uma noite sem brisas,
quente, como se o dia não tivesse partido, apenas o céu fechasse as pálpebras,
encaminhei-me para o metro, não sei porquê, mas sempre tive a sensação de que
regresso a um lar que nunca foi meu, desde a infância, este sentir de que a
minha casa estaria num outro lugar, talvez numa esquina para além do meu passo,
e esta funesta solidão que me acompanha o ser, creio que já me aguardava, deste
lado de cá do existir, para se instalar em mim, mesmo quando acompanhado, seja
com ela, com familiares, amigos, este sentir só caminha por mim, então, em
festas, nunca consegui corresponder à alegria e risadas atiradas ao ar, como se
constituísse uma impossibilidade, em verdade, nunca fiz um esforço, como se
intuísse o malogro, para ultrapassar tal enfermidade, nestes contextos,
sobrepunham-se as questões Então, o que
se passa? Estás bem? Houve algum
problema? Limitava-me a um tímido encolher de ombros, assegurava, com a
veemência possível, que tudo estava bem comigo, e só queria que restituíssem um
pouco do espaço à minha volta, pensava-o, mas não o dizia, claro, não queria
que me achassem ainda mais estranho, é curioso, ao mesmo tempo gostava destas
manifestações de preocupação, ele tem uma expressão na qual me revejo
inteiramente, Somos cemitérios de
afectos, houve vezes em que a funesta solidão, que me acompanha o ser,
afigurou-se-me o único lar possível neste lado de cá do existir, desço as
escadas do metro, aquele peculiar cheiro invade-me, uma vez mais, a infância
ergue-se em mim, na plataforma avolumam-se vultos à minha volta, sinto-lhes a
presença, porém, não lhes vejo o rosto, por estes dias, estão velados por um
rectângulo luminoso que há muito lhes devorou a alma, por fim, uma esperança,
em forma de luz, acompanhada de um silvo metálico, quando retomo o caudal dos
meus pensamentos, já sentado, a olhar-me no reflexo da janela, com as trevas
exteriores e a artificial luz interna, apenas a minha imagem no vidro, nada
mais, de novo, um regresso, por ele escrito, acende-se-me no pensar, Enquanto
o mar se pintava de ocaso, um paquete ladeava o comboio numa corrida com metas
distintas. Sempre que via um barco assim, no regresso a casa, ele percebia onde não queria estar. E o seu olhar nem o barco via,
apenas que vogava rumo à única réstia de luz do mundo. Enquanto o comboio, de
estação em estação, apenas derramava despojos de ilusões,
sorri-me, conseguiu traduzir, na perfeição, o sentir desordenado que trazia no
peito, percebia onde não queria estar, e
há tanto que isso me sucede, já a rodar a fechadura de casa, do interior nem um
som que anunciasse uma possibilidade de vida, entrei, fechei a porta, pelo chão
apenas caixotes e caixotes, sei que no seu interior estão os despojos, dos
vinte e cinco anos de casamento, do meu pai, que apenas aguardam a sua vinda
para serem recolhidos, os de minha mãe por aqui ficam, tal como as paredes que
nos abrigam, assim ficou decidido entre eles, pelo menos conseguiram trocar
frases suficientes para chegar a este consenso, nos últimos três anos talvez
não tenham comunicado tanto, houve um período em que eu servi de intermediário,
uma vez mais, aquela sua expressão Somos cemitérios de
afectos, ambos
sofriam (e
como eu o sabia!), contudo, nenhum soube ceder, persistiram nas suas torres de
orgulho, enquanto tudo se desmoronava à sua volta, inclusive eu, minha irmã só
uma ausência, ou um nome da saudade, nunca concebi a imagem deles separados,
como se, de uma moldura, subitamente duas, talvez até em mesas distantes, como
se nunca se tivessem conhecido, falado, apaixonado, beijado, dormido juntos,
confidenciado sonhos e temores, é tudo tão estranho nesta vida, procuramos
fundar a nossa existência em certezas, talvez para podermos caminhar, mas, de
repente, num imprevisto, tudo muda na geografia do nosso ser… Quem sabe, mais à
frente, regresse a esta questão de duas molduras, em mesas distantes, como se
nunca se tivessem conhecido, como se nunca tivessem partilhado Verões em praias
a Norte, como dizia, a cada passo, tinha de olhar para o chão, não fosse
tropeçar num qualquer despojo de vinte e cinco anos de vida conjugal do meu
pai, assim que ouviu a porta fechar-se, logo minha mãe És tu, meu filho? Respondi-lhe afirmativamente, embora sempre me
parecesse uma questão inócua, o cheiro a tabaco e tintas invadiu-me logo à
entrada, por um lado, agradado por ela retomar a pintura, por outro, crescia-me
uma náusea por tão fortes odores, perdi o apetite, fechei-me no meu quarto,
sabia que, quando tabaco e tintas pela casa, durante dias ela não sairia da
divisão que consagrou à sua arte, nem providenciaria refeições, por esta
altura, teria uma garrafa de um bom tinto aberta, numa mesa de apoio, e
alimentar-se-ia dessa seiva até preencher o último resquício desafiador de
brancura da tela. Sentei-me à secretária, verti para uma folha os pontos
relevantes da conversa de hoje, aproveitei para organizar os meus apontamentos
de leituras, estudos, da anterior entrevista com a mulher da dicção sofrível,
senti uma ponta de vaidade, no fim de contas, o meu trabalho começava a ganhar
corpo. De novo, o trinco da porta fez-me recuar um passo, mal refeito, entro,
sorri, uma vez mais, à vista da porta de grades que protegia o elevador, pois,
sempre que, algo do passado se nos levanta, parece conter, em si, o vestígio de
uma inocência ida, chegado ao segundo andar, e pela porta de grades, vi que já
me aguardava, mãos nos bolsos, a farta cabeleira prateada, que lhe conferia um
ar de majestade resignada, quase iluminava todo o patamar, agradou-me rever
aquele sorriso límpido, o olhar sapiente, não sei porquê, pareceu-me ser
recíproco, afinal, íamos falar de livros, cumprimentou-me com aquela entoação
que parece iluminar cada sílaba (como me soube bem ouvir de novo aquela voz!), e
percorrer, uma vez mais, aquele longuíssimo corredor, a casa sempre num
silêncio reflexivo, como se também mergulhada numa leitura, vejo-me novamente
rodeado de lombadas e lombadas, do chão ao tecto, a majestosa secretária
continuava afundada em pilhas de livros, papéis, muitos papéis, rascunhos,
apontamentos, indicou-me novamente o sofá, demasiado baixo, bastante
desconfortável, procurei, outra vez, mascarar a minha situação, Então, como vai a sua tese? Adiantou alguma
coisa por estes dias? Expliquei-lhe que ainda não passava de um mero
esboço, estava tudo numa fase embrionária, que teria de realizar mais entrevistas
para consolidar ideias e abrir perspectivas, Como foi que se deparou com ele? A questão saiu-lhe sem inflexões, apanhou-me
desprevenido, houve um flutuar de emoções em mim, por um lado, achei-a pertinente,
por outro, pareceu-me desafiadora, não sei bem porquê, não obstante o facto de
estar nos alvores desta minha caminhada, as noites de sono sequenciais há muito
partiram do meu viver, creio que se todos, ao entrar em casa, tivessem de se
desviar de ilhas, com vinte e cinco anos de vida dentro, estariam igualmente
cansados… Não fugi à questão, Foi na livraria
de uma cidade do Norte. Olhava as novidades na montra, e, subitamente, aquele
título não mais me largou… Entrei e comprei! Nem sabia quem era o autor, mas
sempre comprei livros pelo título! Acho que traduzem, ou, pelo menos, deviam
fazê-lo, a essência da obra. Resolveu clarificar a situação, Presumo que se esteja a referir ao seu
primeiro livro. Respondi prontamente, Sim,
claro, “Olhei para trás e sorri…” Continuo a achar belo e sugestivo. Cruzou
as mãos num gesto que já percebia tão seu, as sílabas, de novo, iluminadas por
aquela tão singular entoação, Concordo.
É, de facto, um belo título, e sugestivo também. Sabe, uma bela tarde toca-me
aqui o telefone (apontou com o queixo, estava camuflado por papéis), era ele, com uma voz muito resoluta declarou-me:
“Vou escrever um romance!” Não interrompi, apesar de se estar a repetir,
receei ofendê-lo, esperei que prosseguisse, felizmente não me arrependi, Passados quatro meses, de novo, o telefone,
a informar-me que havia terminado, se eu queria ler, que enviava uma cópia.
Acedi, de imediato, o resto é fácil pressupor, a minha surpresa com a qualidade
da obra, ainda para mais sendo a primeira, na altura declarei-lhe “Surpreendeste-me
muito positivamente”. Apenas e só, sempre fui muito parco em elogios. Acho que
não fazem bem a ninguém! Acabam por nos adormecer, anestesiar, quando, em
verdade, devemos caminhar continuamente… Percebe o que quero dizer, não é…? Anuí
prontamente. No fundo, ele fez tudo ao
contrário. Lembro-me bem de lhe dizer que devia ter começado por redigir
pequenos contos, só depois tentar o romance… Nada! Escreveu o romance, depois,
sim, começou a enviar-me os contos, que designava de crónicas. Que fazer? Nada!
Até a sua vida foi ao contrário, tudo tão rápido, nem teve tempo para a idade
do sonho, já que nessa altura sonhou enquanto vivia, seguiu-se, fulminante, a
aridez da realidade, por fim, assentou rapidamente… Aí, sim, sentiu a ausência
de sonhar, ainda procurou, mas o tempo sorriu-lhe desdenhosamente na cara, e
fê-lo perceber que, algures lá atrás, o sonho jazia na berma de um qualquer
caminho. É possível que, nesse momento, se tenha percebido um escritor. Quem
sabe? Havia uma questão que não me abandonava Alguma vez lhe contou o porquê de subitamente ter-se dedicado à
escrita? Percebi que não olhava um qualquer ponto indistinto, porque nunca
olhamos nada de indistinto, quando aparentamos fazê-lo, é sinal de que olhamos
quem fomos, Não. Nunca falámos sobre isso.
Houve sempre um grande pudor nessa matéria e noutras também. Mas o que há para
falar quando descobrimos quem somos? Qual é o nosso papel enquanto caminhos sob
o céu? Sabe, é algo demasiado íntimo e intransmissível. É vivido demasiado
subcutaneamente para ser comunicado. Atenção, conversámos, como já lhe disse,
sobre a sua escrita, projectos futuros, dei-lhe conselhos, lembro-me até, em
certa ocasião, de lhe dizer que o litoral estava omnipresente na sua obra,
fruto, claro, da sua biografia. Contestou ligeiramente, porém, não deixou de
levar em conta, e, como lhe era natural, tratou de mudar a agulha, tanto que o
terceiro romance é quase integralmente passado em cenário rural, pois é, afinal
de contas, o rapaz já nos havia surpreendido… Às vezes, parecia que esperava por
desafios, que o instigassem, como se só assim voltasse a caminhar. Também
eu achei que chegara a hora de mudar o rumo da conversa, E sobre aquela questão, se é que me faço entender, alguma vez a
trataram abertamente? Percebeu-me as entrelinhas, enquanto eu lhe lia
espanto por trazer à liça tal temática, Bom,
se é o que eu estou a pensar, nunca tal foi abordado. Nem houve necessidade.
Pelo menos, de forma directa. Para questões burocráticas, onde pudesse retirar
dividendos, sim, sem qualquer problema, pelo menos da minha parte, da sua,
sempre reagiu naturalmente. Embora uma sombra se lhe passeasse pelo rosto.
Insisti, Mas percebia-lhe algum
desconforto com esse assunto, alguma revolta impronunciada? Respondeu-me
laconicamente Nada! Parecia que não
conhecera o inferno… Sabe, eu compreendo que enverede por aí, creio, com toda a
sinceridade, que se esse dia não tivesse amanhecido, hoje não estaria aqui,
diante mim, a tirar apontamentos sobre a sua vida e obra. Sabe, há dias em que
o demónio resolve caminhar pelo mundo dos homens. Aquele foi inquestionavelmente
um desses casos! Caiu, entre nós, aquele incómodo silêncio que parece ter
expulsado o verbo para bem longe, a passagem do tempo era proporcional ao
desconforto sentido, valho-me da sua
última frase para cessar o mal-estar crescente Acredito! Sem quaisquer dúvidas. Mas, se não estou enganado, ele nunca
verteu essa experiência em papel? Endireitou os óculos e suspirou, Nos romances, de facto, não. Havia nele
muito pudor em relação a isso. Nunca abordou directamente a questão, não era eu
que o ia fazer… De certa forma, parece que eliminou de si esse acontecimento,
espere, deixe-me encontrar palavras mais ajustadas, eliminar não é o termo
correcto. Como hei-de dizer…? Para ultrapassar aquilo, no âmago de si, nunca
aceitou o facto, contudo, e devido a essa recusa, exteriormente sempre procurou
as melhores formas de o sublimar. Faço-me entender? Foi como se fechasse uma
divisão da sua casa, nunca mais lá entrasse, mas simultaneamente tivesse
consciência disso, por conseguinte, tratasse das restantes o melhor possível,
inclusive envernizasse a porta e ombreira da que fechou e até lavasse a janela
mas, claro, sempre pelo lado exterior. A questão saiu-me em espanto E nunca mais lá entrou? A resposta foi
pronta Creio que não! O instinto de
sobrevivência impunha-se. Foi este o mecanismo psicológico que lhe permitiu
continuar por aqui… Aquele culto todo da… Sim, já vi que você sabe, sempre
achei aquilo um perfeito disparate, mas que fazer? Ele tinha gáudio nisso!
Então, depois daquilo, havia uma vaidade muda por ter ultrapassado, sobressaltei-me,
já tinha ouvido aquela frase! Onde? Pois, já sei, como é possível? Duas almas
tão distintas, mas que utilizam a mesma expressão quando se reportam ao mesmo
contexto, espantei-me, resolvo prosseguir Acha
que esse acontecimento o mudou? Desta vez, foi lesto Claro que sim! Mudaria qualquer um! O que lhe parece? A brutalidade da
violência que se grava na carne e simultaneamente no espírito… Quem é que não
mudava? Se bem que, não sei se sabe, mas só bateu à minha porta anos depois
dessa fatalidade. É compreensível, já procurava um rumo… Por conseguinte, vendo
bem as coisas, eu não sou a pessoa mais avalizada para responder a essa
questão. Começava a admirar a sua lógica de raciocínio, sempre em espiral,
ou seja, aprofundava a sua análise num contínuo, prosseguiu, Da última vez, disse-lhe que me penitenciava
por, quase, o obrigar a consagrar-se ao romance… Recorda-se? Anuí, Ele, em sussurros, a confessar-me que não
tinha matéria, num receio bem mais profundo, o de se ter esgotado, sabe, há
temores, para quem escreve, que são omnipresentes: quando não escrevemos:
sentimos uma infelicidade indizível, um mal-estar essencial no nosso ser, por
não cumprirmos com os desígnios a que fomos convocados; quando se escreve: o
temor de perder a voz, de não conseguirmos terminar a obra, de não vertermos em
palavras o sentir e as ideias; por fim, terminado o livro, o desconforto do
vazio, a falta de vozes, de matéria para um outro… O profundo receio de nos
repetirmos! Uma das maiores angústias para quem escreve! Repito: para quem
escreve, não para quem escrevinha! Vivemos a era dos escrevinhadores, não dos
escritores! Escrever é tão difícil! Já viu a vida de quem escreve… Onde desagua?
Como lhe disse, aquando da última vez, ele andava apático, indiferente face a
tudo, nada o motivava, infelizmente, só percebemos os sinais sempre depois… Há
uns anos, ele tinha ido passar umas férias de Verão numa pequena localidade,
sempre no litoral, claro está, e, passados uns dias, dali partiu, na altura,
lembro-me bem, elencou vários motivos para se justificar, a água fria, a
incessante brisa, a antipatia das gentes, enfim, eu percebi, claramente, que
fugia de si, do seu, então, oculto desígnio, quando tal sucede, confrontamo-nos
com o absurdo de ser, creio que, nas suas funduras, teve consciência desse
facto. Pagou os dias que esteve alojado, a sua companheira aquém de absurdos e
funduras, uma bem-aventurada, verdade se diga, como todos que passam por este
existir sem que a inquietude se aloje no seu ser, dali partiram ainda mais para
Sul, ele foi com um semi-sorriso, aquele vislumbre de “absurdo” inquietou-o,
esforçou-se por enterrar essa ideia, talvez, por uns tempos, tivesse algum êxito,
mas iniciara a fuga de si, ou talvez a prosseguisse, porém, mais tarde, teria
uma compreensão deste episódio bem distinta. O suceder copioso dos dias, como
se de uma fatalidade se tratasse, nem um vislumbre de saída, a ideia de que
somos figurantes em guião oculto, estas e outras questões levantarem-se-lhe,
tudo isto associado à pequenez da povoação, a uma luz inclemente que obscurece
mais que ilumina, um calor que fractura a terra e atomiza os homens, viu-se
diante da vertigem de si, da impossibilidade de uma harmonia, com ela, com a
localidade, o desfrutar de um descanso em período estival, abrira a porta à
intranquilidade, desde então, jamais o abandonaria, até há umas semanas… Quer
mais razões? Demorei a regressar, procurava incessantemente páginas suas
que correspondessem ao que acabara de ouvir, Bom, mas o que relatou aconteceu, pelo que percebi, há décadas… Logo,
não percebo o que… Interrompeu-me abruptamente, Quer que repita? Pois bem, eu repito: “abrira a porta à
intranquilidade”. Assim que se instala em nós, torna-se um inquilino, além de indesejado,
vitalício. A dada altura, escreveu um conto, ou crónica como ele sempre
designou, com o título: “O homem do sorriso triste”. Onde acha que bebeu este título?
Pois, pois é, na imagem do espelho. Se procura, para o seu trabalho, passagens
autobiográficas, esta é talvez a mais significativa de todas. Sim, escusa de
perguntar, ele tinha um sorriso triste. Por vezes, a gargalhada podia ser
sonora, mas ostentava, quase sempre, um pálido sorriso, que assumia, de certa
forma, contornos de último baluarte do seu “eu”, pensei em quanta dor por
ali sentida, creio que me leu o pensar, Certo
dia, acho até que foi numa discussão, ele disse a alguém (não quero desvelar
mais a sua privacidade): “Escrevo porque sou infeliz!” Regresso àquele estado
de consciência absoluta, ao mergulhar em demasia na realidade, ao contrário da
maioria, que se dispersa com facilidade na superfície das coisas, desde a mais
singela futilidade, às saídas, bares, noitadas e afins, viagens ocas para fotos
de exibição, festas ocasionais onde se celebra apenas uma fuga momentânea ao
tédio de existir, encontros fugazes sem tempo para se olhar, ele compreendeu,
num determinado momento, talvez cedo demais, que, por muito que corresse, levar-se-ia
sempre consigo… E ele não se dava nada bem consigo mesmo! E foi isso que
plasmou em folhas e folhas! Está a compreender? Esta noção fundamental de que
não há fuga de nós próprios! Como vê, algo tão simples, tão palpável,
essencial, mas que quase todos procuram escamotear, como se fosse uma chaga que
imperativamente devesse ser encoberta. Sinceramente, talvez não tenha
conseguido sobreviver a si mesmo, a escrita, por uns tempos, ainda atenuou este
confronto, mas era uma alma demasiado desarrumada. Silenciou-se, talvez à
espera que eu erguesse uma questão, contudo, nesse instante, eu olhava as
folhas amarrotadas onde rabiscava os apontamentos da sua prelecção, receava,
confesso, que nem para mim fossem inteligíveis, pelo seu silêncio, achei que
exigia minha atenção, levantei o olhar, emiti uma onomatopeia através da
garganta, não fica mal e dá sempre ênfase ao que se vai dizer, Pois… De facto… Nem sei como lhe agradecer!
Superou muito as minhas melhores expectativas! Tem, de facto, um conhecimento,
sobre a sua pessoa e obra, ímpar! Resolvo levantar-me, acho que, mais um
minuto, naquela tortuosa posição, e só sairia dali de ambulância, em verdade,
quando me ergui creio ter ouvido uma vértebra a estalar, a hora de deixar este
homem dos livros regressar ao seu universo de páginas infinitas tinha chegado, da
minha parte, tinha dezenas de folhas preenchidas com notas e esquemas,
avizinhava-se muito trabalho pela frente para ordenar tudo aquilo, de forma
mais lenta, a farta cabeleira prateada ergueu-se, mesmo de pé, não perdia
aquela aura de majestade resignada, por momentos atravessou-me o pensar a ideia
de que sabia bem demais onde terminam as fugas do “eu”, de novo ostentava o seu
sorriso límpido, Você é leitor! Durante
uns tempos, ele também insistiu em sê-lo, até que a vida o levou para o outro
lado, o de escritor. Assim se cumpria a sua essência: no acto criativo. É
difícil habitar as duas margens: leitor e escritor: recriar e criar. Foi-lhe
penoso, desde que descobriu a sua voz, ou vozes, não mais retirar prazer do
acto de leitura. Pareceu-lhe, contou-me um dia, que lhe tinham obstruído um
caminho. E como gostava, noite adentro, de se embrenhar num livro. Só que,
depois de naufragar na outra margem, deu por si, durante uma leitura, a
corrigir, a escrutinar, a criticar, até a reescrever, sim, deixou de retirar
prazer da leitura, pareceu-lhe, de certa forma, que era uma casa onde somente
ficava à entrada, como se o resto lhe fosse vedado. Desde então, a inquietude
instalou-se, o tempo afigurou-se-lhe algo distinto: tudo era contabilizado em
torno da escrita. Não quero, com isto, dizer que não cumprisse com todas as
suas obrigações, das familiares às profissionais, contudo, desde que encetámos
a nossa conversa, sentei-o logo na sala do ”eu” dele, para, daí, compreender a
desarmonia instalada, e, se for até à sua varanda, olhe a paisagem por ele
contemplada, como vê, tenho razão, só amanhecia quando pegava na caneta. Estendi-lhe
a mão, Está na minha hora. Se tiver
paciência, gostava de regressar ainda uma vez. Nem que seja para lhe entregar
uma cópia do meu trabalho. Respondeu-me, como seria de esperar, polidamente,
mas não refreou o entusiasmo quanto a ter o seu exemplar da tese, isso
alegrou-me, foi revigorante, resolvi devolver a cortesia, Da outra vez, por acaso, escapou-me. Tinha muito gosto em ler um dos
seus livros. Embora poesia não seja o meu forte… Agora foi o seu rosto a
transparecer um entusiasmo contido, acrescentei Denota-se-lhe, não por acaso, um orgulho muito particular na sua
poesia, deixei-o embaraçado, mas sabia que a resposta não tardaria, Pois… De facto… E eu que quis escrever um
romance… Deus legou-me a poesia, e a ele a prosa. Creio que foi justo! Uma
vez mais, o longo corredor, em sombras, diante de mim, não sei porquê, soava-me
a despedida, percorrê-lo sempre me pareceu um rito iniciático, como se um teste
de sombras a um aspirante da luz, talvez por isso o entusiasmo com que o
percorria, muito subcutaneamente ali sentia-me bem, quantos lugares, neste
mundo, reúnem lombadas e lombadas do chão ao tecto, alguém com um sorriso
límpido, um olhar que transparece uma compreensão sapiente e, ao mesmo tempo,
uma curiosidade, quase infantil, em conhecer o outro, um ar de majestade resignada,
e, não menos importante, uma entoação que parece iluminar cada sílaba? Sorri,
uma vez mais, à porta de grades que protegia o elevador, enquanto descia, a sua
última frase ainda ressoava por mim Nós
somos enquanto formos, à primeira vista, pareceu-me uma redundância, quase
um lugar-comum indigno de tão nobre figura, contudo, repetiu a frase e com
especial ênfase Nunca se esqueça: Nós
somos enquanto formos! O eco apanhou-me já o elevador quase no rés-do-chão,
e acompanhou-me durante dias, confesso que demorei o meu tempo, sempre o
necessário de cada um, a compreender-lhe a essência. Marcámos o encontro, de
tarde, numa esplanada à beira-mar, a escolha de um espaço neutro não terá sido
por acaso, o Verão já arrumara a mala e abria a porta, a sua partida era
iminente, estava sol, mas uma incómoda brisa arrefecia-nos, ao mesmo tempo,
pensar e sentir, como não nos conhecíamos optámos pelo habitual, cor da
camisola ou por nos telefonarmos na altura, reconhecimento, àquela hora,
felizmente, a esplanada não estava cheia, antes, porém, deixei-me estar, por
uns instantes, a olhar o mar, começava a adquirir aquele tom prateado dos meses
invernosos, avizinhava-se igualmente mais tumultuoso, antes do frio, sempre me
pareceu que descia sobre as coisas uma saudação de adeus, em mim nascia melancolia, nestes momentos, até o mais ínfimo
movimento me custava, apetecia abandonar-me ao instante para compreender onde
me perdera… Confesso, agora, que nada me havia preparado para o que iria ouvir
no resto dessa tarde, ainda hoje, quando olho para trás, não sei se o que me
chocou mais foi o relato em si ou o tom pesaroso emprestado à narrativa. À minha
espera estava uma mulher, não foi nada fácil marcar este encontro, revelou-se
esquiva, reticente, desconfortável, em regressar ao passado, mais à frente,
far-se-á luz sobre os porquês, não sigo, confesso, nestes meus escritos, a
cronologia das entrevistas, porém, desde já, faço uma ressalva, a última foi,
de facto, a primeira, e a que me possibilitou angariar a maioria destes
contactos, àqueles que me acusarem de imprecisão, por não obedecer ao
imperativo cronológico, eu respondo que cumpro imperativos de outra ordem, de
oferecer, ao leitor, um quadro abrangente e simultaneamente profundo de quem
foi esta complexa figura que me espelhou nos seus escritos. E foi igualmente
propositado transparecer apenas um singelo esboço dos entrevistados, guiei os
meus passos por salvaguardar escrupulosamente a sua privacidade, já lhes basta
estarem retratados em múltiplas das suas páginas, identifiquei-a pela camisola
vermelha, por sinal, única de momento, além de que estava só a uma mesa, com
uma chávena de café, talvez arrefecida, à sua frente, observei-a por uns
momentos, era mais velha que eu, claro, teria perto da idade dele se ainda por
aqui caminhasse, pelos gestos abúlicos indiciava ser viajante da praga do hoje,
depressões e afins, ainda conservava algum encanto do ontem, embora cada vez
mais ténue, não sei porquê, mas pareceu-me alguém, mesmo de onde estava, que
poderia ter ido sempre mais além, em qualquer domínio da vida, do profissional
ao afectivo, como se, de alguma forma, toda a vida estivesse com o pensar e
sentir oprimidos, foi uma ideia que se me atravessou, aproximei-me,
cumprimentei-a, ela retribuiu educadamente, convidou-me logo a sentar, porém,
nos seus gestos e voz denotava-se-lhe, agora mais palpável, abulia, a voz até
saía ligeiramente arrastada, parecia estar num lugar distante, só seu, comecei
por agradecer ter aceitado dar o seu contributo para o meu trabalho, achei curioso
que, ao contrário de alguns, nunca questionou quem dera o seu contacto, de
seguida, procurei despertá-la um pouco da sua letargia, Sabe que entra, como personagem, em variadíssimos dos seus escritos? Por
momentos, foi percorrida por um assomo de energia, pareceu-me até vê-la a
ruborescer, acho que gostou desse facto, afinal, nem todos têm esse privilégio,
A sério? Não fazia ideia! Sabia que ele
se tinha tornado escritor, eu a corrigi-la mentalmente, como se alguém se
tornasse escritor, pois, as tais coisas, ou se nasce ou não, mesmo assim,
resolvo corrigi-la com delicadeza, Sim, é
verdade, ele descobriu-se escritor. Foi algum conhecido comum que lhe contou? A
abulia regressava-lhe, a voz arrastada, Sabe
como é, ouve-se uma coisa aqui, outra ali, vamos confirmar… Afinal, a net serve
para alguma coisa, não é? Perdia-se, agora, com o mar, deixei-me estar a
olhá-la, a luz da hora atenuava o tempo no seu rosto, nisto, um vulto do meu
lado direito a perguntar-me se queria alguma coisa, tratava-se de um jovem,
desengonçado, com a roupa dois números acima, a camisola nodoada e com gritos
de reforma em vários pontos, num total aquém de modos para o contexto, é
possível que o próprio nunca venha a ter consciência do contexto, optei
igualmente por um café, talvez por perceber que ser-lhe-ia uma tarefa exequível,
ela regressa-se e preenche o silêncio, Ele
gostava do mar. Volta e meia, entediado, dizia-me “Anda! Vamos!”, subia-lhe
para a mota e só parávamos aqui, diante do mar… Acho que o acalmava, gostava
de a ouvir, parecia, no fundo, estar a descrever a vivência da sua analepse
interior, de facto, neste momento, ela viajava por si, achei curioso não ter
questionado as minhas pretensões, foi como se as intuísse, Ele era diferente! Havia nele, simultaneamente, uma alegria contagiante
e uma tristeza melancólica, tão estranho… Por vezes, dava-lhe, subitamente,
para revisitar lugares do passado, como se vivesse em vários tempos, não sei se
me faço entender… Talvez fosse o contrário, e quisesse apenas trazer o ontem ao
hoje. Às vezes, à noite, circulávamos sem destino, e, quando dava por mim,
caminhávamos por lugares da sua infância, fascinava-me a sua memória, logo eu,
que nunca fui parente da saudade! De repente, o meu horizonte preenchido
por duas ou três nódoas que me deixam um café bem à minha frente, ela
permanecia com o azul ou a olhar-se num ontem de há muito, nem ousei
interrompê-la, creio que, se tivesse mandado alguém no meu lugar, ela teria a
mesma atitude, parecia carente em falar de si, talvez para compreender o ponto
exacto em que errou no caminho do seu viver, Encontrávamo-nos mais à noite. Acredito que conheça o contexto, certo?
Durou apenas quatro ou cinco meses, resolvi intervir, Para ele, pelos vistos, durou mais, ela parece ter gostado da minha
observação, prosseguiu Eu sei porquê!
Acredite que, para mim, também. Nessa altura, embora jovem, estava muito desorganizada
interiormente. Aconteceu-me, não sei se sabe, aquele grande disparate, ele,
como deve saber, já que está a fazer este estudo, foi um dos que me socorreu, neste
ponto, perdi-a, não sabia, de todo, do que falava, contudo, optei por não a
interromper, não lhe queria cortar o desfiar de memórias, Acho que ficou muito impressionado com tudo aquilo. Depois disso, creio
que até me evitava. Sei que houve, como é normal nestes casos, várias correntes
sobre o sucedido… Ele preferiu, como sempre, refugiar-se na ironia e na piada
fácil. De certa forma, era o seu manto protector face à realidade, talvez a
conhecesse bem demais e procurasse proteger-se. Até que, certa tarde, não sei
porquê, confesso que não me recordo do contexto, olhámo-nos e percebemo-nos
almas solitárias, disso lembro-me bem, fomos ao cinema, bem à noite, devia ser
a última sessão, sabe, agora que falo nisto, é curioso, as memórias
levantam-se, o que eu gostava de andar de mota com ele! Uma vez disse-lho, sei
que era sensível ao elogio, falávamos e falávamos noite adentro, mas ele nunca
abordou aquele episódio que tanto o impressionou. Talvez o quisesse exorcizar
de si, eu também nunca abordei o facto de saber que o seu coração já tinha a
forma de um rosto, não se pode dizer que fossem tabus, mas havia um pacto
sublimado que ambos respeitámos. E tínhamos tanto para dizer um ao outro. Sabe,
hoje, sim, compreendo a relevância dele na minha vida, quando o conheci, não
era só o meu coração que possuía a forma de um rosto, acho que a minha alma também
o teria, ele, é curioso, nunca falou do assunto, foi totalmente impassível face
à minha fixação, sim, não se tratava de amor, e, como ele não desceu da sua
torre de orgulho, fui eu que a tive de subir, lá do alto, percebi quão ridículo
era o objecto dos meus devaneios, aí passámos à risada, o riso esvazia, quando
dei por mim, estava curada! Neste particular, houve várias tentativas para me
libertarem da minha fixação, só que nenhuma me obrigou a subir uma torre, nem
teve a subtileza de me fazer rir lá do alto, Não refreei o meu pensar Então, por que se afastaram? Continuava
absorta com o azul ondulante entardecido, a luz da hora conferia-lhe ao rosto
serenidade, como se por ali jamais houvesse grandes desorganizações interiores,
Ao certo, não sei… Mas, ao olhar para
trás, recordo um momento que tudo podia mudar. De facto, a nossa vida acaba por
ser a soma de todas as singularidades, porém, umas são mais esdrúxulas… Houve
uma altura em que andámos mais agitados, ele devido ao rosto que lhe modelava o
sentir, eu, claro, pelo vazio súbito no meu horizonte, afinal, o riso esvazia,
é certo, mas, antes, sempre tinha um palhaço triste a ocupar-me o pensar, certa
noite, levantou-se a hipótese de rumarmos a Norte, de moto, claro, apenas o
puro desejo de partir, optámos pelo Norte por ele ter lá família, já viu,
quantas vezes, numa vida, cumprimos, no instante seguinte, um desejo nascido do
acaso? Deviam ser umas vinte e duas horas quando decidimos, num repente, a
nossa insatisfação face à nossa circunstância, e que, talvez, se fôssemos para longe,
encontrássemos a ansiada harmonia… Começámos, desde logo, a tomar as devidas
providências, afinal, o que interessava era partir, dinheiro necessário, roupa,
mochilas, dormíamos sob estrelas se necessário, estava tudo acertado, cada um
recolheu à sua casa a informar os pais, eu exigia-me partir, precisava de
contemplar outro cenário para continuar a respirar, contudo, após a anuência
paterna, quando nos reunimos de novo, ele surgiu-me reticente, “Já viste a
distância? As horas de condução? O desconforto…”, percebi tudo! Eu estava
disposta a dormir com ele sob estrelas, porém, o argumento de horas em viagem e
desconforto foi por ele apresentado… Pois, a vida é isto, no último instante,
ele não deu o passo que faltava, desconheço se não quis dar, se não o soube dar
ou simplesmente receou fazê-lo, o certo é que, depois dessa noite, algo se
diluiu entre nós, pareceu-me vê-lo a afastar-se, a afastar-se, cada vez mais
distante, mas não ia só, a seu lado, sempre o rosto que lhe norteava o sentir, e
eu para ali fiquei, num abandono desamparado, refém de uma fatalidade de
segunda opção que não mais podia suportar. A sua escolha há muito se cumprira,
se é que chegou a haver alguma, parece-me, às vezes, que, nesta vida, somos
apenas figurantes de um guião que nos sempre é ocultado, ou chegamos tarde às
coisas, ou já não as queremos, ou simplesmente perdemo-las por inépcia… Creio,
com toda a sinceridade, que se tivéssemos viajado nessa noite, fosse para
Norte, Sul, Este ou Oeste, hoje seríamos outros, não sei o que dói mais, se ter
consciência do momento preciso em que tudo poderia ser uma outra coisa, se o
contrário, ou, em última instância, pensar que tudo estava determinado…
Sinceramente, não sei. Ele era comodista, sobretudo com a higiene e o dormir,
sabia que nunca acampou? Não pude refrear espanto, Mas o seu segundo romance descreve precisamente uma viagem, de quatro
jovens, durante três dias, por uma serra, no fundo, claro, trata-se de uma
viagem iniciática, mas a forma de descrever as tendas, sacos-cama, e todo o
contexto envolvente, diria ser de alguém deveras familiarizado com o meio… Ela
riu-se com vivacidade, tinha um riso contagiante, ao fim de todo este tempo de
conversa, foi o primeiro aspecto que verdadeiramente lhe achei sedutor, Nada disso! Era obcecado com a higiene! E
dormir sem ser numa cama... Acho que nunca lhe passou pela cabeça! Sem ser
naquela noite, rumo a Norte, em que concordámos ter as estrelas como tecto. Daí
pertinência daquele momento! Está a compreender? Se nos metêssemos à estrada,
naquela madrugada, hoje seríamos outros, ela tinha razão, há momentos que
duram uma vida, se um pouco mais de atenção, acuidade às coisas, ao acontecer,
talvez um hoje diferente, esta mulher, diante de mim, com o sol já em
despedidas da sua face, dissertava sobre algo tão fundamental como o instante,
a ínfima parte de um todo chamado vida, mas tudo é presente: a saudade respira
no aqui, as escolhas habitam no momento, o sonho viaja no sono de agora…
Respondi-lhe É possível. Disse-me, há
pouco, que, a partir daí, as coisas esfriaram um pouco entre vocês, olhou à
volta, talvez pela camisola nodoada e com gritos de reforma em vários pontos, questionei
Quer pedir mais alguma coisa? Se quiser,
vou lá dentro chamá-lo, levantou a mão para me sossegar num gesto, Deixe estar, não tarda nada, ele já
regressa, inspirou e expirou o necessário, o olhar sempre nas águas
ondulantes agora pintadas de adeus, Houve
intromissões, parece que a nossa cumplicidade começou a incomodar, houve até
alguém, a certa altura, que disse “Caramba! Onde está um, está o outro”, depois
veio a malícia, sabe, nem me queria alongar muito nestas recordações, mas só
para ficar com uma ligeira ideia do desenrolar das coisas, e, aqui sim, fui
muito culpada, confesso-o. Certa noite, um conhecido comum, é curioso, há
coisas que só o tempo ilumina, mas assim que a sua luz incide, em nós apenas
compreensão, não há outro conceito possível, como dizia, esse asco, apelido-o
assim devido à claridade do tempo, infelizmente, na altura, estava muito aquém
destas inferências, a pedir para falar comigo, eu, como é natural, a anuir, de
seguida, destilou veneno sobre as intenções dele, que nunca passaria de
personagem secundária na sua vida, a relembrar-me o rosto que assumia os
contornos do seu sentir, de novo, diante de mim, a fatalidade de segunda opção,
os ascos deste viver sabem trabalhar os nossos temores, fui uma idiota e
acreditei no infeliz, ele, desde o início, percebeu as intenções do asco,
porém, e num paradoxo gritante com a sua postura usual, manteve-se à margem do
acontecer, não interveio, não falou comigo, claro que o asco continuo a dar-lhe
palmadinhas nas costas, como se, por um minuto sequer, julgasse tê-lo enganado…
Creio que, ainda hoje, ele terá um desprezo visceral por este infeliz, são
figuras tétricas que nos surgem ao caminho e apenas nos tentam subtrair, mas,
de certa forma, muito nas suas funduras, a sua apatia, face ao asco, ter-se-á
devido a uma outra razão, ele terá compreendido que chegara a hora de me dizer
adeus, daí que deixasse aquele Judas cumprir os seus propósitos. Repito:
acredito que, ainda hoje, sinta repulsa pelo infeliz devido às suas intenções,
que assentavam apenas na inveja! As consequências, como lhe disse há pouco,
talvez fossem ao encontro dos seus desígnios. Contudo, nos seus juízos, sempre
privilegiou a intenção. Apesar da idade, as suas convicções tinham raízes de
idoso, no fim, a decisão era sua, e deixava isso bem vincado. Sabe, como ele
era invejado! E apercebi-me, naquelas noites infindas, em que partilhámos
sonhos e sentires, que ele intuía, com tristeza, este facto. Não padecia deste
mal, era demasiado competitivo para se frustrar na maledicência, procurava
sempre ir além, daí o seu inigualável espírito de sacrifício, a singular
disciplina, a consagração, por exemplo, ao desporto, resolvo esclarecer uma
dúvida, Agora que fala nisso, alguma vez
o questionou acerca daquela obsessão com o corpo? Entretanto, consigo
localizar a camisola nodoada, peço-lhe mais um café, ela opta por uma água, de
repente, uma gaivota clama por algo, talvez pela noite chegada, agora, no seu
rosto, reflectem-se as luzes do restaurante, ela, inebriada pela narrativa, nem
se apercebera de que já conversávamos sob estrelas, como tanto ansiou numa
sempre adiada viagem a Norte, há anos e anos, sinto que a brisa nos arrefecera
a um desconforto sentido, pergunto-lhe se não quer ir para dentro, ela
concorda, faço sinal à camisola nodoada de que vamos entrar, lentamente a
esplanada foi-se despindo, neste momento, mais cadeiras que gente, uns
partiram, outros continuaram a conversa, talvez dos contextos mais díspares, no
interior iluminado do restaurante, procurámos uma mesa virada para o mar, peço
desculpa, em verdade esta procura foi inteiramente dela, ficámos, por
instantes, a olhar o horizonte em silêncio, o astro já mergulhara nas águas, de
um lado as estrelas multiplicavam-se como se ecos de sonhos por sonhar, do
outro ainda vestígios de luz, talvez o dia já caminhasse estrada fora, mas
olhasse para trás uma última vez, tudo estava em serenidade, das águas aos
céus, os corações humanos pertencem a uma outra realidade, o meu em harmonia
com as águas, o dela, neste momento, não sei, o seu olhar, no entanto, sempre
naquele resquício de luz lá no horizonte, talvez já não tivesse sonhos por
sonhar, Questionou há pouco sobre a
obsessão dele com o corpo. Não susteve uma discreta risada, Bom, de facto, tem fotos diametralmente
opostas à imagem que idealizamos de um escritor. Mas ele era tudo isso e muito
mais! Repare, só é obcecado com o corpo quem não está em paz com o que tem,
parece uma redundância, mas não é… Sim, ele vivia muito seriamente, talvez em
demasia, até para a idade, o desporto, alimentação, horas de sono, mas não
podemos descurar o contexto, a influência do cinema, os ídolos masculinos de
então, há quem pense, e sei de vários casos, que essa obsessão foi fruto
daquilo, percebe, não é… Mas não! Antes disso, era igual! Eu, pelo contrário,
admiro, e muito, a sua perseverança após aquela fatalidade… Ela entrava em
terrenos que eu ansiava explorar, Agora
que fala nisso, como foi que viveu esse conturbado período? Sei que, um pouco
antes, já se tinham afastado. Mas calculo que o tenha ido visitar ao hospital… Ela
olhou-me de frente, Claro que sim! Era
uma ruína do rapaz que conheci! Se imaginasse um pesadelo para alguém, o que
ele viveu superava em muito! Às inimagináveis dores físicas, só de falar
arrepio-me toda, acresce-lhe o desgosto, neste ponto, não sei como sobreviveu!
Lá está, a vaidade com o físico, e, depois de tudo, conseguiu ficar com a mente
sã… Deixe-me recuar um pouco, àquelas noites em que deambulávamos, noite fora,
de moto, certa vez, descobrimos um bar onde passavam somente a música e nós
assumíamos as vezes do cantor, eu, claro, avancei, ele deixou-se estar a
ouvir-me, ainda o instiguei, mas era escusado, pois é, havia situações em que a
timidez o vencia, eram, sobretudo, músicas da nossa meninice, anos oitenta,
repare, nós, adolescentes na altura, já éramos passageiros da nostalgia… Uma
das primeiras coisas de que gostei nele foi o facto de ouvir a mesma música que
eu, confesso que não o esperava, o desporto que praticava indiciava outras
paragens musicais, mas não, gostávamos das mesmas canções, às vezes, ficávamos
somente deitados, de luzes apagadas, madrugada dentro, a ouvir canções que se
sucediam em acordes melosos e letras sentidas, não há dúvida de que nos
sentíamos bem um com o outro (e como isso é raro!), nessa altura, eu já subira
à sua torre e me ria, lá do alto, do palhaço triste, a única sombra entre nós
provinha do seu lado, o rosto que modelava o seu sentir, e eu que exasperava
com papéis secundários, não podia continuar, tinha de exigir mais para mim, não
podia contentar-me em ser a perpétua sombra de um móvel esconso num Domingo à
tarde… Daí que nos fôssemos afastando, é curioso, sempre que falo em distância,
surge-me a imagem de alguém que fica num cais a olhar o barco que se afasta, afasta,
até que basta um dedo para o encobrir do horizonte, foi um pouco assim, escusa
de me perguntar se não pensei em lutar por ele, era derrota anunciada, jamais a
deixaria, fosse por mim ou qualquer outra, no fim, por muito que vivêssemos,
tenho a certeza de que permaneceria a seu lado. Dali jamais se demoveria. Compreendi
que ela era uma dessas pessoas para quem a felicidade não mora no amanhã, mas
no ontem, embora disso não tivesse consciência, daí o seu desamparo, a sua
inquietude, mas também não a quis esclarecer desse singelo facto, de momento,
não era esse o meu papel, além de que podia perpassar uma errónea imagem de
petulância, Há pouco referiu que, depois
daquilo, ele ficou uma ruína do rapaz que conheceu… Foi visitá-lo, certo? A
voz continuava a sair-lhe ligeiramente arrastada, Sim, claro. Era a minha obrigação. Às horas de visita era muita gente.
Nunca vi! A maioria, como é óbvio, vistas daqui as coisas, era o ver para crer…
Além, claro, do inconfessável prazer de o ver caído, insisto, a vaidade do
físico, e a desmesurada inveja alheia, porque, repare, ele foi atingido no
coração da sua alma, pior é dificílimo de conceber, meses antes, tinha sido eu
hospitalizada, algo de muito ligeiro, apenas uma contusão num pé, e, depois,
soube-me tão bem, ele levava-me ao colo, às cavalitas, uma vez, lembro-me bem,
estavam ambos os elevadores avariados, trouxe-me do rés-do-chão até ao oitavo
andar, sabe, quem estava próxima dele sentia uma segurança, uma harmonia, e ele
que nunca encontrou tais desígnios no seu curto viver, embora tanto os
procurasse, bom, estou, de novo, a divagar… Desculpe! Percebi que quer, agora,
abordar aquele fatídico período. Custa-me falar disso, percebe, não é? Anuí
verticalmente com o rosto, Eu ia
visitá-lo ao final do dia. Permitiam-lhe receber visitas fora do horário
normal, era uma atenção que faziam, devido à tragédia que lhe aconteceu e,
claro, à sua idade… Levava-o, às vezes, de cadeira de rodas, ainda não
conseguia andar, não sei se sabe, quase perdia uma perna, para o exterior, às
vezes até ao portão do hospital, tão estranho, três ou quatro semanas antes,
ele a subir oito andares comigo às cavalitas! Num instante, uma vida muda,
passamos a ser um outro, como se o de antes nunca tivesse existido, daí a
relevância de uma foto, para atestar que não enlouquecemos… Percebi-lhe, aos
primeiros olhares, uma miríade de emoções, entre a alegria de me ver e a dor
infinda de se saber sentado, esmagado de encontro aos seus sonhos moribundos, mas
é curioso, assim que trocávamos as primeiras frases, restabelecíamos a nossa
singular empatia, que nos levava, madrugadas infindas, a confidenciarmos a alma,
enquanto ouvíamos melodias que nos relembravam quantos já fomos nesta vida… O
fechar de olhos não me passou despercebido.
Resolvo intervir para a redireccionar, Há
pouco, disse que encontrou uma ruína do rapaz que conheceu, ela percebeu a
minha impaciência, notei-lhe um traço pesaroso pelo rosto, Talvez o termo ruína seja demasiado forte… Mas, a verdade, é que não
encontro outro. Para ter uma ideia, ele perdeu mais de vinte quilos, em cerca
de duas semanas, além, claro, de uma palidez excessiva pela brutal hemorragia, aquando
do embate, as consequentes anestesias, operações, o próprio internamento, o
estar confinado a uma cadeira de rodas, sim, sem dúvida, repito, era uma ruína
do rapaz que conheci, se, antes, quem estava próxima dele sentia uma segurança,
uma harmonia, agora, apenas uma desmesurada compaixão, e nada lhe passava
despercebido, seguia-nos o olhar quase obsessivamente, compreendeu que, em cada
um que o visitava, o olhar seguia os passos do pensamento, e desaguava sempre num
vazio de ser… Compreendi que, daí em diante, seria o olhar dos outros a
espelhar a permanente ausência nascida do acaso. Como se uma sentença sem
crime! Apenas, um dia que, para ele, não devia ter amanhecido… Por momentos, via-o a contemplar, em
pupilas alheias, uma dor tão sua, é curioso, quando quase nos esquecemos do
nosso fardo, vem alguém de fora relembrar que algures o deixámos caído, como se
de uma iniquidade se tratasse. Só tinha mais uma questão para lhe colocar, Ficou surpreendida com… Deixou o mar
pelo meu olhar, Está a falar do seu… De
novo, o meu rosto em movimentos verticais, É
curioso. Sempre foi um tema que o obcecou. Afirmou, tantas vezes, que não tinha
medo da morte. Uma das coisas que se falava, na altura, lá no hospital, é que
ele não queria ser socorrido, chegou até a insultar quem lhe fez o garrote. Não
é incrível? Caído no asfalto, a perder litros de sangue, após sofrer um embate
daquela amplitude, e ainda encontrou forças para vociferar com quem procurava
segurá-lo a este lado das coisas… Levantei-me, as costas já me doíam há um
bom bocado, uma das pernas ameaçava dormência, estiquei-a de imediato, ela
olhou-me de cima a baixo, entre a surpresa por me ter levantado e um certo
desprezo por tê-la deixado a meio de uma frase, presenteei-a com o sorriso mais
límpido que pude conceber, Peço desculpa,
mas as minhas costas já não podiam mais… E estas cadeiras são tão desconfortáveis!
As nódoas, assim que me levantei, surgiram do nada, disparei prontamente A conta, por favor! Ela, entretanto,
também se levantara, a tirar o porta-moedas da carteira, estendi, de imediato,
uma nota às nodoas, que a retirou da minha mão sem o elementar com licença, nada que me espantasse numa
nódoa, acrescentei É para pagar tudo, neste
ponto, ela ainda procurou construir um protesto, porém, mantive a minha
intransigência, além disso tive de esperar pelo troco, afinal, sempre é mais
fácil somar nódoas numa camisola, saímos, arrefecera, ela Agradeço os cafés. Não havia necessidade, argumentei É o mínimo pelo seu tempo. Veio de carro? Ela
com um semblante de derrota, como se contrariada por ter de regressar ao aqui,
respondeu secamente, Sim, está daquele
lado, perguntei-lhe se me podia deixar na estação, Claro! Gostei da prontidão da sua resposta e do facto de não ter
havido estranhezas por ali ter chegado sem viatura própria, normalmente
começava o inquérito (Não tens carro? Já
sei, chumbaste na condução… Não me digas que foi no código! Os teus velhos não te
pagam a carta? És daqueles antipoluição? Por isso andas a pé?), mas ela
ficou-se apenas por um espontâneo Claro,
caminhámos pelo paredão anoitecido, resolvo povoar silêncios Leu algum dos seus livros? Ela não
demorou na resposta Confesso que não.
Nunca fui muito de ler. Se me perguntar se tive curiosidade, claro que sim…
Quando saiu o primeiro livro, quem o conhecia pensou que fosse sobre aquele
fatídico dia, depois, para quem não domina as letras, veio a desilusão, não
tinha nada a ver, além, claro, da sua escrita não ser nada fácil... Quem foi à
procura de lamechice ou de mexericos deu-se mal. De certa forma, foi bem feito.
Subimos a escada até ao parque, aquela hora já despovoado, ela apontou na
direcção onde tinha estacionado, não sei porquê, mas não a imaginava com outro
carro, não se pode dizer que fosse velho, novo também não, tinha um utilitário,
ligeiramente desleixado, mas ainda apresentável, que colava, na perfeição, com
a imagem que ela deixou, intuí que a maternidade sempre constituiu um sonho,
mais correctamente uma utopia, um amanhã permanente até compreender que se
tornou um irreversível ontem, este é o alimento de muitos sonhos, abstracções
que nos alimentam o viver e, mais tarde, acabam por anoitecer a cor dos nossos
dias, não tanto pelo que não foi e podia ter sido, mas pelo que efectivamente
já não pode ser, o interior da viatura correspondia à imagem exterior,
desleixado, mas ainda assim decente, tinha uma condução agradável, prática e
segura, durante o trajecto não falámos dele, perguntou-me se a tese ia
adiantada, volta e meia, percebia-lhe ausências, pois, a praga do hoje, como se
desligasse do aqui, ou talvez não fosse nada disso e somente mais uma
característica sua, entre outras, afinal, arrastava ligeiramente os pés a
andar, respirava notoriamente pela boca, tinha sempre os ombros ligeiramente
encolhidos, devia proporcionar um desconforto inerente às contracturas, mantive
a primeira impressão, pareceu-me alguém que sempre podia ter dado mais um
passo, mas ficou aquém, por este ou aquele motivo, de tudo nesta coisa do
viver, com sinceridade não acredito que fosse feliz, deu-me pistas, ao longo da
conversa, de que se perdera de si na incessante voragem dos dias, acontece com
muita gente, o problema é que muitos não compreendem esta elementar verdade,
ela, porém, tinha-a bem presente, já avistava a luz da estação, ao fundo da
rua, estaria a uns duzentos metros, quando, de novo, ela regressa ao passado,
quem sabe se para iluminar um pouco mais a noite deste presente, Numa das visitas, lá no hospital, lembro-me
tão bem, cheguei a ficar gelada, ele vira-se para mim, sabe, tinha uma
franqueza desarmante, e eu apreciava isso, hoje então, que saudades de
encontrar alguém que não tivesse esquecido a franqueza, bom, mas como lhe
estava a contar, ele vira-se para mim, num tom quase confidencial, e declara: “Se
não fosse cobarde, matava-me!” O que mais me impressionou não foi o conteúdo da
frase, a entoação, foi simplesmente a evidência de que ele dizia a verdade: “Se
não fosse cobarde, matava-me!” Não, não pense que o tentei dissuadir com ideias
ocas de vãs esperanças e de amanhãs melhores, até porque não sou o melhor exemplo
para tal contexto, permaneci em silêncio e limitei-me a estender-lhe a mão, a
partir daqui, desenhou-se-me um quadro no pensar, ele acolheu a sua mão
enquanto um sentir de sal desenhava-lhe um traço direito face abaixo, como um
sonho caído pelo chão do mundo, ela talvez o tivesse querido abraçar, mas não o
fez, afinal, já se perdera de si.
A Ideia
Regresso-me com a minha imagem
demasiado nítida diante de mim, uma nitidez gritante, viajava à janela, mas no horizonte,
pela noite lá fora, só a minha face que olhava e olhava-se, fechei os olhos e
tentei fazer um ponto de situação do meu trabalho, impressionou-me a franqueza
desta mulher, teria sido fácil, noutras circunstâncias, apaixonar-me por alguém
assim, compreendo-o, alguém que nos recoloca o futuro à frente, por vezes,
basta a possibilidade para nascer um sorriso, antes de fechar a porta do carro,
ela Espero, com toda a sinceridade, que
tenha êxito. Por si e por ele. Baixei-me e olhei-a, nasceu-me espontaneamente
uma questão Tem alguma fotografia com
ele? Ela entreabriu os lábios de espanto, como se lhe relembrassem uma
evidência, Bom, não sei… De facto, é
possível… Lembro-me, claro, de tirarmos fotos juntos… Vou procurar, depois
digo-lhe… Ela também guardou uma questão para mim Custa-lhe regressar a casa, não é verdade? Sabe, com ele, sucedia o
mesmo… Uma vez até me disse que cada regresso a casa, ao final do dia,
constituía, para si, uma derrota, reabro os olhos e dou comigo a olhar-me,
sem concessões, pelo vidro anoitecido, reflicto nestas palavras, e compreendo
que ela, que nunca lhe leu uma linha sequer, tinha um conhecimento de quem ele
foi muito superior a qualquer exegeta da sua obra, só me restou Pois… Quem sabe? É capaz de ter toda a
razão, e, bem cá por dentro, naqueles lugares que estão sempre num
além-verbo, afinal, a alma não é o lugar das palavras, assistia, do vidro, a
mais uma derrota por me saber a caminho de um lar que nunca foi o meu, um lugar
de silêncios, de silêncios não, de sentires omitidos, de palavras sufocadas, de
gestos frios, não me recordo há quantos anos meus pais encetaram a sua guerra
particular, creio que foi por aqui, depois de África, sempre ouvi dizer, em
certas vozes, que lá residia o paraíso, como se fosse possível haver disso num
lugar pisado por homens, meu pai pertencia a este diapasão, há coisas que, para
continuarmos a respirar, preferimos colocar num lugar, por enquanto,
inominável, algures entre a revolta do sucedido e a saudade pelo que foi, o seu
sentir pelos anos de África caminhava por aqui, minha mãe, pelo contrário, era
uma sobrevivente, e uma das principais características inerentes a quem for
digno deste epíteto é a capacidade de adaptação, nesse aspecto, ela não ficava
aquém em nada, não lhe era facilmente identificável qualquer vestígio da sua
passagem por Angola, talvez a mania das
grandezas, algo transversal à maioria dos retornados, os lugares-comuns em
que inevitavelmente caíam nas conversas (Sabe,
lá tinha uma quinta, quase precisava de um dia para a percorrer de carro! E
criadagem? Tinha quase uma dezena só dentro de casa! Conhecia gente muito
importante! Você nem imagina! Tinha muitos amigos! Ainda tenho…), não se
pense, todavia, que procurava ocultar essa fase da vida, apenas adaptou-se a
toda uma nova realidade e não olhou para trás, ele, coitado, pelo contrário,
alguém uma vez lhe disse: Parece que te
subtraíram a alma, homem! E sempre que possível, fazia ecoar África onde
estivesse, fosse numa manhã de Novembro, Hoje
está um cacimbo! A caminho do trabalho, Tenho
de me despachar ou perco o machimbombo, aos domingos, impreterivelmente ao
almoço, a inevitável muamba de galinha, quantas
vezes a discussão pela falta de um ingrediente, creio que, com quatro anos, de
tanto ouvir que faltava o óleo de palma ou os quiabos, já sabia a receita de
cor, e sempre que, uma visita dessas paragens lá por casa, ecoava no
gira-discos o som bem tropical do Duo
Ouro Negro enquanto os rostos transpareciam, na perfeição, a parcela que
fora subtraída da alma, minha mãe acompanhava-o por estes ecos, mas o seu rosto
mantinha-se impassível, creio que, se emergisse um som distinto do gira-discos,
a sua expressão facial seria idêntica, por acaso, ou talvez por pudor, nunca a
questionaram, pelo menos diante de mim, se gostou dos seus anos de África, eu,
em verdade, nunca o soube, quando, volta e meia, folheava os meus álbuns de
criança, e olhava-me, sem me reconhecer, naquelas terras pejadas de palmeiras
(não havia foto na rua onde não aparecesse, pelo menos, uma palmeira), ao colo
de alguém, a dar os primeiros passos, no baptismo, não a sentia esfuziante,
cumpria o seu papel social como o faria hoje duas ruas abaixo da nossa, com o
tempo, e como era longo nesses primeiros anos, ao contrário de agora, que vivo
num outro tempo, para mim, ininteligível, às vezes, parece-me que os relógios
do ontem paravam para respirar, enquanto os de hoje viraram costas ao homem, como
dizia, eles, mais do que eu, afinal, cheguei com apenas dois aniversários
cumpridos, foram estigmatizados com o rótulo de retornados, e quão profunda era a sua dor, por várias razões: só retorna
quem foi derrotado, o vitorioso, pelo contrário, regressa; retornaram a uma
agora terra desconhecida, nem uma palmeira no horizonte; tiveram de se confinar
a viver numa exígua prateleira, da janela apenas a desumanização dos tijolos do
prédio em frente, o alcatrão da rua, volta e meia, povoado por sacos de
plástico, repletos de lixo, caídos do único caixote da praceta; o próprio
clima, distinto do tropical, a espartilhar hábitos e ousadias; e a vida que
ficou para trás, como sonho abandonado na distância de uma doce madrugada, uma
casa, trabalho, amigos, em alguns casos, amores, tudo por um nada… Houve quem
não aceitasse que lhe interrompessem o viver, e, no que lhe restava de
autonomia, optasse por um fim. É de respeitar! Meu pai deixou-se ir, em
verdade, nunca gostou que o arrancassem dos sonhos, daí que coleccionasse
despedimentos e possíveis empregos por se recusar a trabalhar de manhã, à
noite, coloria copos para logo lhes devolver a transparência, dizia que ajudava
a esquecer a vida que lhe roubaram, por sinal, a única que se dispôs a viver,
foi minha mãe, contaram-me mais tarde, que correu para as inenarráveis bichas
do IARN, e lá passou, literalmente, dias, em pé, sem contabilizar uma só
refeição, nas primeiras semanas ele nem sequer saiu do quarto, permaneceu
deitado, alimentou-se de garrafas que ajudavam a confundir a memória, foi assim
que conseguiu sobreviver a esse período, disseram-me que nem o estore se
levantou, permaneceu corrido a ocultar que tudo mudara à sua volta, creio que
ele não o levantou, nesses primeiros dias, por outro motivo, um temor profundo:
o de não encontrar, no espaço do olhar, uma só palmeira para lhe relembrar que
já existira… Já minha irmã, seis anos mais nova, dava os primeiros passos,
quando, após mais uma muamba, por isso, devia ser Domingo, o telefone, meus
pais cumpriam com o imperativo do café após o almoço, eu teria perto de oito
anos, atendo, do outro lado uma voz ríspida, escudada no anonimato, terreiro
dos cobardes, a vomitar Porcaria de
retornados! Nunca deviam ter voltado! Pensam o quê? Que ainda estão em África? Apesar
de não me recordar se teria sete ou oito anos, sei que, nessa ocasião, mantive
a educação recebida de meus pais, daí não ter descido ao terreiro dos cobardes,
e ter-me limitado a desligar o telefone. Relatei o sucedido, assim que chegaram
do café, não lhes foi difícil descortinar o autor da vil chamada, neste caso,
foi uma autora, era a vizinha do rés-do-chão, uma criatura com sonhos à altura
do andar que ocupava, antagónicos com a fanfarronice inata dos retornados, duas
realidades opostas que necessariamente acabariam por colidir, mas não houve um
confronto directo, um bater à porta, um pedido de satisfações, nada, tudo muito
velado, diria mesmo que recalcado, assim eram dados os passos no meu lar, ainda
hoje, desconheço se aquela vil criatura, que talvez já nem esteja entre nós, o
que não a torna, em nada, menos vil, apesar desta mania lusitana de, quase de
imediato, beatificar todo e qualquer defunto (Até era boa pessoa… Lá tinha o seu feitio, mas quem não o tem? Coitado!
Chegou a sua vez… De certeza que já se arrependeu do mal que fez… Certamente
nem teve intenção, e afinal de contas, quem somos nós para julgar?), soube que
fora, no mesmo dia, desvelada, provinha do profundo interior alentejano,
analfabeta chegou, analfabeta partiu, embora soubesse utilizar, e bem,
telefones, uma vida como dona de casa, pouco mais, só o marido trabalhava,
nunca soube em quê, ia e vinha a pé, por ali nunca houve viaturas próprias, é
curioso, nunca lhe ouvi a voz, apesar de tanto o ver, assim que chegava do
trabalho, postava-se à janela, e dali só saía para jantar e dormir, o resto do
tempo dedicava à vida dos outros, quem entrava, saía, com quem, a que horas,
como, onde, apesar da minha precoce idade, e de não me importar que espiassem
as minhas habilidades com a bola, questionava-me se era aquilo que me esperava
quando chegasse a adulto, o facto, em si mesmo, de me tornar adulto já me
aterrorizava, bastava olhar os meus pais, duas, agora distintas, realidades
que, por fatalidade, ocupavam o mesmo espaço, ele a olhar para trás, a sonhar
com o cacimbo da manhã angolana, com uma Cuca na geleira, com as cores dos céus
de África, enquanto ela só presente, nem vestígios de saudade, sim, esteve ali,
trabalhou, casou, teve o primeiro filho, e depois? Foi obrigada a abandonar
tudo e a recomeçar, do nada, demasiado longe, num outro ponto do mundo, uma
vez, num desses Domingos de muamba, uma amiga mais incisiva colocou-lhe a
questão das saudades de Angola, de tal forma, que minha mãe se viu encurralada,
porém, não tardou a responder e com um laconismo que deixou todos, saudosistas
ou não, definitivamente calados: Sabe,
recomeçar do nada dá muito trabalho. Quase não tenho tempo para mim, quanto
mais para saudades. Minha mãe, nessa tarde, quase enterrara, por completo,
os anos de África lá por casa. Embora a muamba continuasse a ser cozinhada ao
Domingo. Meu pai acabou por se reajustar, numa altura em que as regras ainda
não se tinham inteiramente esboroado, com dois filhos por criar, só lhes restou
sublimar diferenças e partilhar, talvez não sonhos, mas, pelo menos, o mesmo
tecto, assim emergiu aquela estranha incomunicabilidade, que nos tornou
desconhecidos, apesar de partilhamos os mesmos tão escassos metros quadrados.
Com os anos, o nosso mecanismo de sobrevivência readapta-se, defendendo-nos,
mostrando-nos outros caminhos, interesses, de forma a não permitir que o
conceito de morte possa transpor os portais das ideias, porém, minha irmã
sempre foi diferente, talvez essa ideia já se tivesse hospedado antes mesmo de
respirar, um fim-de-semana era penoso, não é fácil o convívio de quatro
estrangeiros em pouco mais de setenta metros quadrados, e o Domingo, depois da
muamba, as sombras num estatismo desesperante, como se ali estivéssemos
condenados a um estar petrificado, meus pais, o paradigmático espelho de uma
impronunciada derrota, não percebia se de sentires, se de sonhos, mas
olhava-os, sentenciados àquele sofá, a devorar qualquer boçalidade que surgisse
no écran, às vezes, afiguravam-se-me dois náufragos condenados a um tortuoso
entendimento pela sobrevivência, minha irmã no seu mundo, que se revelou, no
fim, tão pouco colorido, eu, antes dos livros, procurei outras formas de fugir
àquele desesperante estatismo das sombras, depois da muamba, aos Domingos, de
tarde, ainda hoje, numa qualquer divisão de mim, o desconforto aos Domingos,
logo, diante de mim, a imagem daquele sofá, como uma condenação que os
esperasse, que os fizesse atravessar continentes, para ali os agrilhoar, as
boçalidades que o écran debitava eram as únicas vozes audíveis dentro daquelas
paredes, a certa altura, também eu me deixei ir na corrente, tudo o resto
estava condenado ao malogro, éramos estranhos que somente partilhávamos tecto e
mesa, e assim permaneceríamos. Logo à entrada de casa, do lado esquerdo, minha
mãe colocara uma camilha, redonda, a coroá-la estava um vaso, com um rebento de
palmeira, há horizontes que teimamos em não largar, tinha uma reverência
especial por este canto da casa, o sol ainda ali conseguia chegar, apesar da
marquise, parecia que os seus longos dedos agraciavam as folhas da jovem
planta, como se a incentivasse a ser, é a sombra cilíndrica da camilha, com a
sua coroa vegetal, que mais tenho presente, parecia adormecida na carpete, com
uma expressão de desdém para a nossa impronunciada dor, talvez não tivesse sido
um acaso que levou minha irmã a pintar, de escarlate, aquele canto aquando da
sua primeira estigmatização… Foi ao terceiro telefonema, e após elencar
exaustivamente as minhas razões, que ouvi um sumido sim. Combinei visitá-la na sua residência, para o efeito, tive de
me deslocar ao Norte do país, porém, à última hora, e talvez para me facilitar
as coisas, ela tenha optado por uma conhecida pastelaria, na avenida contígua à
estação. Há muito que não saía de Lisboa, por momentos, comecei a reflectir nas
coisas que ia adiando, creio que a minha expressão se turvou, ainda pelos vinte
e poucos, e já somava tanta coisa inconclusa, certa vez ele escreveu
“Seduzimo-nos por brindar ao que foi, e esquecemo-nos de brindar ao que poderia
ter sido”, como o compreendo, a alma pesava-lhe tanto, até que não a susteve
mais… Viajei de comboio, cerca de duas horas, mas, como expectável, cheguei com
um atraso de trinta minutos, há quarenta e três anos que nada é viável neste
pseudo-país, é normal quando se vive num permanente faz de conta, e a única realidade é o incontornável açambarcar dos
salteadores engravatados que tomaram o poder num tal de Abril, saí numa
encantatória estação que contrastava a alvura das paredes com os tons azulados
dos múltiplos azulejos que ilustravam cenas típicas da região, da arte xávega,
onde o trabalho braçal se gravava no rosto dos homens, que procuravam arrancar
o pão de cada dia às inclementes águas do oceano, aos campos agrícolas, que,
indiferentes às estações, aguardam a mão humana para reiniciar o secular ciclo
de povoar a mesa de cada lar, resolvo ir a pé, poupo os bolsos, já de si tão
magros, e simultaneamente aproveito para conhecer a cidade, à medida que desço
a avenida da estação, relembro uma das suas crónicas, a personagem central era
daqui, um viúvo que diariamente tomava as suas refeições sempre no mesmo
restaurante, se o conseguir localizar dou lá um salto, as coisas só adquirem
valor quando lhes atribuímos um significado, e uma mesa e cadeira deixam de ser
apenas uma mesa e cadeira quando alguém resolve contar a história de quem lá se
sentou, neste caso, para se esquecer de si, um vento frio devolve-me à minha
circunstância de passeio, avenida fora, até que, trinta ou quarenta metros à
minha frente, do lado esquerdo, identifiquei a pastelaria, apesar da meia hora
de atraso do comboio, estou vinte minutos adiantado, dei o intervalo de uma
hora, já a contar com os imponderáveis, entro, sou, de imediato, invadido por
uma atmosfera doce que me faz salivar, à minha volta, um entra e sai constante
de gente, o barulho também é considerável, vozes, chávenas, máquinas de café,
começo a questionar-me se será o local apropriado para esta entrevista, procuro,
no meio do burburinho geral, uma mesa mais reservada, visualizo uma, junto à
janela, que se me afigura ligeiramente apartada do barulho vigente, espero que
propicie um diálogo que venha ao encontro das minhas expectativas e que, por
fim, ilumine um dos períodos mais obnubilados do seu existir… Sentei-me,
coloquei o bloco de notas em cima da mesa, um dos elementos que me
identificava, o outro, neste caso, prendia-se com a cor do meu casaco, não
demorou muito até que um empregado, de gestos largos e modos apressados, me
perguntasse o que iria ser, pedi-lhe, para já, um café, saiu precipitadamente,
como se, da sua corrida, dependesse um oculto e nobre desígnio, assim se
movimentava, em constates aceleramentos olímpicos, revia as notas da última
entrevista, quando Boa tarde! Calculo que
seja o senhor da tese sobre… Levantei o olhar, à minha frente estava uma
senhora, já caminhava pelo anoitecer da vida, embora preservasse, algures em
si, uma jovialidade latente, que, com a posterior conversa, pude corroborar, anuí
enquanto me erguia para a cumprimentar, Sim…
Desculpe, estava a rever umas notas… Puxei logo de uma cadeira, agradeceu e
sentou-se, reparei que não era uma prisioneira de modas, estava para além disso,
o que só lhe conferia dignidade, agradeci a sua presença, reforcei que o seu
contributo será inestimável para o meu trabalho, afigurou-se-me sensível ao
elogio, percebi que gostava de holofotes, aclarou a garganta, um inevitável
tique que se iria repetir demasiado, Bom,
prontifiquei-me a atendê-lo por respeito à memória do meu… Gostaria que não
revelasse o nosso parentesco! Acedi prontamente, continuou Acho, sinceramente, que o meu contributo
teria a sua total aprovação. Sabe porquê? Respondi, como sempre sucede nos
casos de ignorar as razões, com o repetido movimento horizontal da cabeça, Por causa dos livros! Ele, para si, nada
queria, agora, para os livros, queria tudo! Sempre assim foi… Perguntei-lhe
se tomava alguma coisa, se vinha muito ali, procurei aligeirar-lhe a tensão, desde
que chegou, embora não a conhecesse, percebi-lhe um certo desconforto, demorou
pouco até que, pela mão do empregado, de gestos largos e modos apressados, a
água das pedras pousou, num aceleramento olímpico, na mesa, à sua frente, bebeu
um pouco, aclarou a garganta, pois, o inevitável tique, os óculos, suspensos
numa corrente, oscilavam à medida que gesticulava, questionei-me se seriam peça
decorativa ou uma elementar necessidade, no seu caso, como não era refém de
modas, a questão logo se esfumou, sempre foi motivo de alegria conhecer alguém
que vivesse apartado de modas ou tendências, tinha logo a minha admiração,
afinal, tratava-se de um espírito livre, estava para além do espartilho da
imagem, e, nestes últimos tempos, cada vez mais curvamo-nos ao deus da imagem,
como se de um imperativo se tratasse, para compreender por onde caminha o homem,
basta olhar à oferta comercial, e no hoje quase tudo se cinge à estrita esfera
da imagem, da aparente eterna juventude, no rosto ou a colorir os sempre
inconvenientes brancos, que mais relembram velórios e defuntos, aos açaimes
para corrigir aquele canino rebelde que logo estraga o mais esforçado e
artificial sorriso, àquele miraculoso comprimido que, a três semanas da praia,
promete exterminar o inconveniente pneu que, sem se saber como, desde há um
ano, parece ter duplicado, pois, cada um foge de si, e é uma corrida, sem
destino, para ver quem se distancia mais da sua verdade… Primeiro, apoiou as mãos nos joelhos, depois, inclinou-se
para a frente, e sem hesitações, nem vislumbre do inevitável aclarar de
garganta, disse-me Bom, calculo que o meu
contributo, para o seu estimado trabalho, não tenha tanto que ver com a
produção literária, mas sim com aspectos biográficos, e, se não estou em erro,
com um período muito específico da sua vida… Esta sua introdução
surpreendeu-me, percebi que é daquelas pessoas que nunca perde de vista o leme,
por muito que indicie o contrário, opto por uma franqueza desarmada, Sim, tem toda a razão. Já lhe expus, ao
telefone, a temática do meu trabalho, no que puder contribuir, só lhe posso
agradecer, encheu o copo de água, por momentos, pareceu olhar um qualquer
ponto indefinível, talvez a água borbulhante, talvez o trânsito no exterior,
talvez instigasse o ontem a acordar no hoje, embora trouxesse, na bagagem,
demasiada dor… Foi numa tarde de Junho,
não me leve a mal, mas, como lhe disse anteriormente, por uma questão de pudor,
vou escusar-me a ser precisa com datas e afins, o telefone, não sei porquê, mas
pareceu-me um toque funesto, era a minha… Bom, percebe, não é? A informar-me o
que tinha sucedido, primeiro, o espanto, seguiu-se-lhe a incredulidade, depois,
bem, caímos em nós, metemo-nos no carro, e viemos tão depressa quanto possível,
sabe, se me perguntasse um pormenor dessa viagem, ainda são cerca de duas horas
e meia, não consigo relembrar de nada, como se não tivesse ocorrido… É tão
estranho! Há coisas que vivemos, mas parece que nem lá estivemos, como se
tivéssemos partido para um qualquer canto de nós, e aqui deixássemos a carne a
assistir ao suceder das coisas… Olhando para esses momentos, é o que eu sinto,
não recordo uma só frase trocada com o meu marido, durante essas duas horas e
meia, o nosso pensar estava, sobretudo, com o meu cunhado (já me descaí,
agradeço que, na versão final do seu trabalho, subtraia as minhas indiscrições),
não sei porquê, mas sempre me pareceu o elemento mais frágil, como se chamasse
a si as dores de todos, repare, era ele que corria risco de vida, nem sabíamos
se estaria vivo quando chegássemos, mas temíamos pelo meu cunhado, e acredite
numa coisa, foi um homem que eu vi envelhecer décadas num espaço de semanas,
ela, apesar da teatralidade de choros e gritos, sempre foi mais forte, bem
mais, afinal, quem representa não sente assim tanto, é tudo uma questão de
espaço… As consequências tragicamente gravaram-se-lhe na carne, e também na alma,
neste ponto, não sei se por defesa, se para delimitar uma certa distância
face à narrativa, de forma a ser-lhe exequível prosseguir, assumiu um tom
revestido de total frieza, quase como se lesse a notícia de um qualquer pasquim
matutino, Foi, como já deve saber, um
embate frontal, parece que estava em despique com um tipo num carro, que, numa
curva infinda, o encostou para que chocasse com o automóvel que vinha, em
sentido contrário, na outra faixa, neste ponto, não me passou despercebido,
parou para inspirar e seguiu-se uma longa expiração, nem vestígios, por ora, do
inevitável e insistente aclarar de garganta, Apanhou-lhe todo o lado esquerdo… Tive de interromper, Pelo que apurei, não ia sozinho na moto, olhou-me
com espanto, Pois não! Vejo que se documentou
muito bem! Já lá vamos… Como dizia, apanhou-lhe todo o lado esquerdo, o braço
foi logo ali dilacerado, segundo os bombeiros, foi parar a umas largas dezenas
de metros, a perna quase seguiu o mesmo destino, como deve calcular, quase
morreu da hemorragia, mas alguém, com a presença de espírito necessária,
fez-lhe, logo ali, um garrote… Soube que, muito depois, já ele caminhava de
novo, chegou a ter a morada desse criminoso (sim, porque, de facto, tratou-se
de uma tentativa de homicídio), a ideia de justiça própria ainda lhe pairou por
uns dias, mas optou por ter futuro, percebe, não é? Acho que foi uma prova de
enorme sensatez, porém, essa não foi uma escolha ligeira, devido a isso, houve
qualquer coisa mais a desaguar-lhe naquele rio de sangue, nessa tarde de Junho,
no asfalto… Talvez ele nunca tenha ultrapassado o facto de, por qualquer meio,
não se ter feito justiça! Nova pausa, o rosto turvava-se-lhe um pouco, a
postura assumia um ar doloroso, O que lhe
acabo de relatar, como é óbvio, foi-me contado no hospital, e mais tarde pelo
próprio, o meu cunhado, coitado, incapaz de articular uma sílaba, sempre
que procurava enfatizar um aspecto, erguia a mão direita com os dedos bem
esticados, a minha irmã (por favor,
peço-lhe, não se esqueça de apagar as minhas indiscrições) caída numa cadeira,
mas já havia por lá muita gente, familiares do meu cunhado, gente conhecida
dele, sim, os tais pseudo-amigos, sempre que cheira a morte, os corvos são os
primeiros a aparecer, foram esses que nos relataram, sabe, houve até quem
fizesse gáudio nos aspectos mais gráficos da narrativa, escudando-se, claro, no
facto de ter sobrevivido, ou seja, o indecoro do tom dissimulado pelo moralismo
do valor da vida, sabe, nesses momentos, somos assolados por uma torrente tal
que o pensar parte para longe, somos apenas ouvir, só depois, muito depois, o
pensar regressa, tacteante, com receio do que possa encontrar… Encheu o
copo, bebeu lentamente, como se, a cada gole, arrumasse ideias e emoções, Como seria expectável, esteve em coma. Ficou
internado, três dias, nos cuidados intensivos, depois mudou duas vezes de
hospital, pareceu, de facto, a velha história, de Pilatos para Herodes, e
vice-versa, até que o fixaram num perto de casa, diante daquele naufrágio
geral, onde cada um se obstinou em irmanar-se com a sua dor, num mutismo apenas
interrompido, volta e meia, por lágrimas e soluços, virei-me para o meu marido
e disse-lhe que iria ficar durante o necessário… Não os podia abandonar! Vali-me
da minha situação profissional para conseguir estar à sua cabeceira durante a
convalescença e posterior recobro. Olhando para trás, compreendo que não o
conhecia de todo, conhecer no sentido real da coisa (só conhecemos alguém
quando lhe compreendemos os desejos, não há outra forma, por muito que se tente
argumentar em contrário), uma vez que praticamente o vi nascer e acompanhei o
seu crescimento, porém, foi durante aquela longa agonia que efectivamente fiquei
a saber quem ele era. Imagine um jovem que ama desporto, consagra-se a uma
modalidade que, nem por acaso, visa modelar a plástica corporal, da alimentação
ao estilo de vida saudável, pois, um narcisismo bem enraizado, para lhe compor
o quadro, acresce que parte considerável das companhias provêm deste contexto,
para sintetizar, vivia a idade do mito, claro que o cinema teve uma fortíssima
influência, quando, num repente, após dobrar uma das infindáveis esquinas da
vida, se vê num catre hospitalar, com uma irreversível ausência de um dos
lados, e um cérebro que teimava em iludir o coração e a alma… À nossa volta
começaram a servir refeições com pretensões a jantar, uma sopa requentada e uma
sandes num pão sequíssimo, que ameaçava desfazer-se em migalhas a cada
instante, ela seguiu o meu olhar, percebeu, uma vez mais, que o tempo desconhece
a saudade, olhou-me um pouco atrapalhada Meu
Deus! Já é de noite! E ficou tanto por dizer! Eu a concordar, não podia
estar mais certa! Na realidade, nunca se diz tudo. Afinal, vivemos dentro de
nós, como é possível dizer ao outro tudo o que se passa por aqui? Ela continuou
Veio de Lisboa, propositadamente, para
falar comigo, e, no fim de contas, pouco lhe adiantei… No chão, ao lado da
cadeira, tinha a minha mochila, calculara que uma tarde seria insuficiente para
o que esta senhora teria para me contar, descansei-a e mostrei-lhe a mochila, Não se preocupe! Vim prevenido. Se, amanhã,
tiver a amabilidade de me conceder parte da sua tarde, a resposta,
afirmativa, foi pronta, acrescentei que ficaria numa pensão, desse modo, daria
uma volta para conhecer a cidade, claro que insistiu para que pernoitasse em
sua casa, assim, apresentar-me-ia o marido, que também poderia dar o seu
contributo para o meu trabalho, agradeci, como é natural, porém, esquivei-me
nas horas, no transtorno, e, finalmente, na urgência de me recolher para
organizar as informações tortuosamente vertidas em papel, este era sempre um
argumento irrefutável, ela concordou, combinámos, para a tarde seguinte, à
mesma hora, nesta mesa. Acompanhei-a à saída, embora antes disputássemos quem
pagava a conta, neste ponto, foi peremptória Primeiro, está na minha terra, segundo, tenho idade para ser sua avó,
por conseguinte, sou eu que pago! Lá fora, dentro do carro, de jornal
aberto, mas a dormitar, estava o marido, fez questão de o apresentar, procurou
disfarçar, o melhor que pôde, o súbito despertar, ambos reforçaram a sua
hospitalidade, todavia, era imperativo que regressasse à minha solidão, que
caminhasse pelas ruas anoitecidas da cidade, que encontrasse um quarto, em
conta, mas minimamente acolhedor, numa pensão, que organizasse a informação
hoje recolhida, entretanto, cada vez se adensava mais a dúvida em mim: se estes
fragmentos reunidos farão um todo coerente? Ofereceram-se para me levar,
declinei com o argumento de que precisava de caminhar, afinal, foram horas de
comboio e depois o café que se prolongou, por fim, cederam, fiquei a ver o
carro a afastar-se, em sucessivas hesitações, pois, a idade ensina a prudência,
logo uma buzina a povoar em demasia o ar, e um jovem irado pelo soluçar diante
de si, duas fases da vida, tão distintas, que se encontram na mesma rua, no
mesmo sentido, porém, apesar das hesitações, a meta avizinha-se bem mais
próxima para os ocupantes dessa viatura, de mochila ao ombro, mãos nos bolsos
pelo ar arrefecido, desço a rua em direcção ao centro, sem meta à vista, de
facto, precisava de caminhar, agiliza-me o pensar, a voz sem voz que me habita,
que jamais se cala, a voz do meu pensar, olho os transeuntes, percebo que estou
longe de casa, como se houvesse um não
sei bem o quê que evidenciasse no rosto, jeitos e costumes a nossa
proveniência, embora houvesse, como é natural, aspectos transversais, e no hoje
preside aquela imagem de que tudo está
bem, de que não caímos, e eu a pensar como somos tão miseráveis, como
naqueles momentos que antecedem o sono, em que estamos sozinhos, diante da
nossa alma, e tudo emerge, compreendemos, então, o malogro do tempo, afinal,
não há passado, nem presente e futuro, tudo vive em nós, à espera de um sono,
para nos aportar num qualquer caprichoso destino. Acabei por abordar um
taxista, perguntei-lhe se conhecia uma pensão agradável e barata, lá me indicou
uma, ficava a uns trezentos metros de onde me encontrava, dirigi-me logo para
lá, precisava de repousar, nada de luxos, mas higiénica e funcional, era do que
precisava, deixei-me cair na cama, assim fiquei durante o necessário, a imagem
dele num catre hospitalar, acompanhada de uma frase que não me largava, há dias em que o demónio resolve caminhar
pelo mundo dos homens, e naquela entoação que iluminava sílabas, com a
perfeita noção de que estarei para sempre na soleira de tal sofrimento, como os
outros jazem no tapete do meu, só o candeeiro, por cima do lugar da
mesa-de-cabeceira, aceso, a decoração correspondia àquilo que se espera de um
lugar de passagem, de facto, não se espera de um apeadeiro grandes comodidades,
apenas o necessário para que a viagem prossiga, pela janela aberta recebia o
respirar da cidade, que ia, a pouco e pouco, serenando, serenando, até se
tornar um eco longínquo. O comboio balançava naquela cadência ritmada metálica,
viajava de costas, da inevitável dor de cabeça à consequente náusea era uma
questão de minutos, há muito que devia saber da lotaria dos lugares nas viagens
de comboio, impunha-se-me a prudência, mas parece que, nesta vida, há lugares
onde sempre caímos, nem ousei pegar nos apontamentos, ler ainda menos,
aproveitei para recuar umas horas, àquela mesa, junto à janela, de novo, a
atmosfera doce que me fez salivar, voltei a ser primeiro, menos de dez minutos
depois, ela chegou, o mesmo estilo desprendido da véspera, os óculos no mesmo
lugar, suspensos pela corrente, após frases de cortesia, se gostei da cidade,
se fiquei bem acomodado, a sua indignação por me ter esquivado a almoçar com
eles, até que, após a ter recolocado no ponto interrompido da narrativa (A sua última frase, pelos meus apontamentos,
foi: um cérebro que teimava em iludir o coração e a alma… O que quis dizer ao
certo?), a garganta, de novo, audível, pois, o tique, Sabe que havia fila para o ver? Havia quem esperasse horas! Pois, eu
bem sei, é muito fácil compadecer-nos com o mal dos outros, mas é extremamente
difícil alegrarmo-nos com o seu bem, nessa altura, ele estava tão aquém desta
verdade, e de muitas outras, a sua única verdade, naquele fatídico momento,
assentava numa crescente vã esperança de que estivesse mergulhado no maior
pesadelo da sua vida. Mas para quem está confinado a um leito hospitalar, a
olhar, pela primeira vez, a frieza branca da cal daquelas paredes, que à noite
parecem amplificar as inaudíveis dores da alma (e como a sua lhe doía!), talvez
um rosto familiar mitigasse o naufrágio de se ser, ou talvez relembrasse o
quanto se afastou de uma outra vida… Foi durante os primeiros cinco dias, após
sair do coma, ao acordar sempre a ilusão de que tudo estava bem, o cérebro
insistia numa harmonia (como se nenhum demónio tivesse caminhado pela terra
dos homens, pensava eu...), depois a
visão corrobora a irreversível ausência, repare, cinco dias seguidos, num
momento de profunda dor confessou-me: “Se isto não me enlouqueceu, creio que
nada o fará”. E as dores! Sabe, eu estive à sua cabeceira, e posso
assegurar-lhe que ele padeceu horrores inimagináveis! Acredite: não sei como
pôde voltar a sorrir… Com as semanas, as visitas foram-se diluindo (sempre “o
ver para crer”, mas hospital rima com carência, e todos acabam por ser
bem-vindos, quem tem a alma dilacerada está aquém de juízos de intenções),
diluindo, até se reduzirem apenas ao núcleo mais próximo, longe, muito longe,
de filas infindáveis, horas de espera, e uma máscara condizente com a ocasião
(geralmente, um ar deveras pesaroso, de onde saíam frases entrecortadas, como
se por ali houvesse resquícios de uma genuína emoção) – é o expectável: afinal,
o espectáculo terminara, havia que partir para outra… Disse-lhe que, para
seu grande pesar, acabou por ser espectadora privilegiada desses momentos, pôde
percepcionar como se deu a sua gradação interior face ao crescente Inverno
exterior, neste ponto, ela recua na cronologia, Eu regressava para a sua cabeceira após aquele constante entra e sai de
gente, porém, após as duas primeiras semanas, não vi necessidade de o deixar,
afinal, éramos já tão poucos, certa vez, acordava de um descanso forçado, a
medicação, como deve calcular, era monstruosa, um arco-íris de lamelas e
lamelas, sem contar com o ininterrupto soro, como dizia, ele acordava e, de
novo, confrontava-se com a indiscritível crua dureza da sua situação, a
inominável ausência, mais tarde denominá-la-ia de “omnipresente ausência”, a
impossibilidade de se levantar, pois, a perna, quase a perdia, nesses momentos,
disfarçava o sentir, vinha ao encontro da minha ideia, um pudor de
sentimentos que só uma folha branca podia desvelar, felizmente a minha
interlocutora era de verbo fácil, olhava
a janela, sempre que recuperava a consciência, começava por perguntar “Ainda é
de dia? É de manhã ou de tarde?”, por fim, “Que horas são?”, uma sequência que
eu já conhecia, numa dessas vezes, repare, nunca antes o tinha feito, falou-me
dos instantes logo após o embate, com uma clareza que logo percebi não se
tratar de qualquer devaneio, “Lembro-me do azul, de uma paz nunca antes
sentida, de um estar para além disto… Senti-me tão bem: nem com calor, nem com
frio, nada! Apenas uma harmonia, se isso é morrer, creio que estava mais do que
pronto! As nossas iniquidades, ódios, raivas, rancores, mágoas, tudo tão longe…
Tão relativizado: como se perdessem substância. Mas o outro lado de se ser
também: as paixões, os amores, os afectos, tudo igualmente com a distância:
como se ali houvesse apenas lugar para a harmonia. Tão estranho! Nunca senti
nada assim! E dali não queria regressar.” E acrescentou: “Eu devia ter ali
ficado, naquela estrada, onde tanto do meu sangue se derramou. Ninguém me
consegue destruir esta ideia!” Embora estes acontecimentos estejam diluídos
ao longo da sua obra, e, verdade se diga, requer minudência e algum
conhecimento da sua biografia para os identificar, fiquei siderado com tal
frontalidade, é certo que o fez com uma familiar próxima, ainda assim, perante
tantas máscaras que colocou ao longo da sua obra, e, pelos vistos, também na
vida real, pelo que já pude inferir nas minhas pesquisas, personagens que
entravam e saíam de cena como veículos que já não servissem os seus propósitos,
pela imagem que dele construí, custa-me a crer que tenha desvelado a sua alma,
perante alguém, desta forma, “mas
hospital rima com carência, e todos acabam por ser bem-vindos”, felizmente
não conheço o contexto, até àquele fatídico dia, ele também não, é natural que
carecesse de um porto onde ancorar tanta e tanta dor desordenada. Uma vez mais,
os óculos balouçavam, Tanto que ele me
repetiu: “Destruí a minha vida! Destruí a minha vida! Já não tenho qualquer
futuro…” Veja bem: ainda teve, como visita, um conhecido, pois, os tais
pseudo-amigos, que, na sua infinita ignorância, lhe disse: “Se isso me
acontecesse, suicidava-me!” Não imagina as barbaridades que eu e ele ouvimos! E
bem sei que ele as gravou todas! Não sei se, para um dia, as devolver, uma por
uma, em alguns casos já o fez, este, por acaso, foi um deles, se para se
certificar, pela enésima vez, da ignorância do homem. O comboio persistia
no seu balouçar, naquela cadência ritmada metálica, fechei os olhos, mitigava a
dor de cabeça, e ajudava-me a recordar os pontos essenciais da entrevista,
devido ao teor senti-me, em certos pontos, constrangido em tirar notas, confiei
na memória, já me atraiçoou, é certo, mas continua com um saldo muito positivo,
com o decorrer da conversa, houve uma dúvida que se materializou em palavras, Em algum momento, ele compreendeu essa
fatalidade como destino? Lancei a questão, em verdade, de múltipla leitura,
contudo, tive o privilégio de estar perante quem compreendeu os meus passos, Lamento, mas, nesse ponto, não sou a pessoa
indicada para lhe responder. Seria necessário um conhecimento mais aprofundado
da sua pessoa, e anterior àquela data. Como lhe disse, antes daquele funesto
dia, tínhamos somente uma superficial relação de familiares que se encontram
para as festas anuais. Mas a minha… Não sei se ela estaria disposta a recebê-lo.
Se quiser, posso falar-lhe. Estaria interessado? Acha que seria positivo, para
o seu trabalho, entrevistá-la? Procurei maquilhar o entusiasmo, não sei
porquê, mas, desde que me penso, sempre tive este hábito, como se, de alguma
forma, perante a minha inacção, o outro me soubesse à sua mercê, olhei um
qualquer ponto indistinto da sala, usava, nestas ocasiões, sempre o mesmo
extenuado guião, arrastei a voz com um semblante que transparecia indiferença e
algum desinteresse, e respondi-lhe Sim, é
possível que esteja. Talvez consiga trazer uma nova luz ao muito que já foi
dito. Contudo, havia algo que sempre me acabava por trair, uma questão, um
entusiasmo irreprimível, uma entoação mais cantada, Acha que ela estaria disposta? Encolheu os ombros, Depende do momento. Nunca conheci, debaixo
deste céu, ninguém com humor tão inconstante… Mas com estranhos procura
disfarçar, o fel sempre o guardou para os mais próximos. Combinámos que me
contactava assim que houvesse novidades. Mas a sua expressão deu-me esperança,
acrescentou algo que já antes ouvira Ele
aprovaria o seu trabalho! Tenho quase a certeza… Quando reflecti no autor a
trabalhar na tese, um dos aspectos que mais pesou na escolha foi a minha
identificação com o mesmo. Ser-me-ia penoso trabalhar alguém que não me
oferecesse espelho. Optei por um nacional devido a uma maior facilidade de
fontes, sendo contemporâneo esta questão claramente exponencia-se. O primeiro
contacto, em verdade, que tive com a sua obra, não foi na montra de uma
livraria em Braga, por pudor, cito este, que, na realidade, foi o terceiro ou
quarto, após o doloroso fim de uma relação (como anteriormente referi, já lá
iremos, quando voltar à temática de rostos
e entardeceres), pesquisava fórmulas para ultrapassar tal sofrimento, confesso
que, em momentos assim, apesar de tantos livros lidos e milhares de páginas
estudadas, acabamos por cair em lugares-comuns, na incessante busca por uma
fórmula rápida e eficaz que alivie uma dor demasiada, entre as muitas citações
que se me depararam, houve uma que me prendeu olhar e pensar em simultâneo,
alguém, para se declarar a quem perdera, numa derradeira tentativa de
reconciliação, dizia Hoje, ao regressar a
casa, abriguei-me, da chuva, debaixo de um toldo, por acaso era uma livraria,
para passar o tempo, olhei a montra, foi aí que reparei no título de um livro, traduzia,
na perfeição, o meu desejo da hora: “Queria rever o teu rosto ao entardecer”. Não
sei obviamente se este sujeito foi bem-sucedido na sua tentativa de
reconciliação, mas aquela frase entranhou-se-me:
Queria rever o teu rosto ao entardecer, porque
também eu queria rever um rosto ao
entardecer, já lá iremos, rever um rosto, creio que todos já desejámos,
porém, o entardecer é o momento que só deve iluminar, a nosso lado, rostos que
espelhem o significado essencial do vocábulo Amor. Não fosse o entardecer uma promessa, como ele escreveu certa
vez Descem estrelas, levantam-se sonhos. Idealizei,
para a minha tese, duas possíveis formas: tratar obra a obra e relevar os
aspectos biográficos em cada uma; ou analisar a biografia e recorrer, mediante
o contexto, à obra em questão: como é natural, e pelo que anteriormente expôs,
optei pela última hipótese. O meu orientador ofereceu alguma resistência, desde
o início, até na escolha do autor, não o tinha lido, logo, teria trabalho
redobrado, regra geral, gostam de calcorrear caminhos bem conhecidos:
oferece-lhes segurança, alimenta-lhes o ego, e, por último, não os obriga a
confrontarem-se com a sua infinita ignorância. Mas eu tinha, há muito, a
escolha realizada. Só depois procurei um orientador, que, pelo menos, não me
desorientasse muito. Por norma, quando se fala em biografia, relaciona-se com
os factos da vida de alguém, onde, quando, como: nasceu, viveu, casou, morreu;
neste aspecto, sempre tive outro entendimento: creio que é impossível escrever
a biografia de alguém! Afinal, quantas vidas temos? Quantas vezes um sim pronunciado é um não que se cala, e vice-versa?
Recordo-me, agora, de uma frase sua: Somos
cemitérios de afectos, e de sonhos, acrescento eu. A nossa passagem por
aqui ocorre essencialmente na nossa mente: vontade, desejo, crença, sentir,
amor, ódio, asco, desejo, desilusão, medo, esperança, toda a paleta de emoções,
que nos torna nesta estranha e fascinante coisa chamada de humana, jamais
poder-se-á verter integralmente por palavras, ainda menos pela voz de um outro.
Nunca tive pretensões a tal, nem tenho, o meu caminho é outro, fazer a ponte
entre as palavras que o escritor nos legou e a sua Biografia Interior de então. É costume ouvir-se que os dedos de uma mão sobejam para contar os
nossos verdadeiros amigos, a minha questão vai numa outra direcção, Será que os dedos de uma mão sobejam para
contar as pessoas efectivamente importantes na nossa vida? Na biografia em
apreço, ou em qualquer outra, a questão subsiste: Quem foram os vultos que, de facto, o influenciaram no percurso? Neste
particular, partimos sempre em busca de influências positivas, contudo, muitas
vezes, ou quase todas, as negativas pesam sempre mais. O mal pesa sempre mais.
Tem um carácter indelével. Assim que alguém, mesmo por um motivo ínfimo, nos
desilude, logo a nossa memória arquiva esse momento como algo a perdurar. Há
ainda aqueles que afirmam prontamente, para quem os queira ouvir, Eu esqueço logo tudo isso. Tendo a
relativizar as coisas, pois, não há dúvida de que são de verbo fácil, contudo,
ao mínimo escolho no caminho, são os primeiros a atravessar a estrada… Somos
tão estranhos! Tratando-se de um escritor, como é natural, procura-se sempre
figuras que deixaram a sua marca no percurso intelectual, nas temáticas romanescas,
ou até que delinearam o estilo da prosa. Mas eu procurei inverter esta
extenuada lógica, também não tenho laivos de inovador, de demiurgo, muito menos
de trazer qualquer nova luz às coisas, apenas tenciono, e disso jamais
abdicarei, ser fiel às minhas convicções. A nossa existência tem início com a
nossa memória, que, por sua vez, é iluminada pela palavra, a partir daí, somos,
em grande parte, o resultado das nossas escolhas, e é na liberdade da escolha
que se ilumina muito da Biografia
Interior. Este é o lastro sobre o qual pretendo edificar as minhas ideias.
Como é natural, não tive grande liberdade na escolha dos entrevistados,
primeiro, porque alguns dos potenciais já partiram, segundo, dependi sempre da
sua boa vontade. Mas nunca excluí ninguém à partida, basta atentar na primeira
entrevistada, tão pouco me centrei somente em teóricos ou colegas de ofício, dos
quais, ainda por cima, tão má impressão ele tinha, procurei, sim, abarcar,
tanto quanto possível, os seus passos em vida, de forma a lançar pontes para a
multiplicidade de temáticas que plasmou em papel, é curioso, creio que, se
fosse vivo, ter-se-ia recusado a colaborar no meu trabalho, não sei porquê, mas
é uma mera impressão. Aceitou receber-me por volta das quatorze e trinta, disse-me
que, uma hora depois, já tinha agenda cheia, pelo telefone percebi-lhe alguma
surpresa, talvez mesmo incredulidade, como se não percebesse em que ponto me
podia ajudar num trabalho deste teor. Sempre considerei a pontualidade um ponto
de honra, a campainha do seu gabinete soou exactamente às quatorze e trinta
minutos, ficava num desses bairros revitalizados da cidade, onde o antigo e
tradicional cedem lugar, talvez com demasiada rapidez, aos ditames estéticos do
hoje, no lugar das antigas tascas surgem sucursais de actuais cadeias de café,
que se reproduzem numa lógica de espiral, que, de tão repetida no seu
resultado, só suscita náusea e indiferença, por vezes, vejo, em mim, a
expressão alheada e indiferente de minha irmã, também a gente que vem habitar
estes bairros se assemelha, como se sentissem gáudio no facto de serem clones,
de aspecto, no traje, nos gestos e modos, cegos
a conduzir cegos, creio que nunca, em toda a história, o homem amou tanto
os seus grilhões como neste preciso momento!
Foi o próprio que me abriu a porta, assim que o vi, percebi que estava
diante dele, quase dispensava apresentações, há vozes que só podiam provir de determinados
rostos, como se uma harmonia das coisas, já que há tantas dissonâncias, de
imediato, convidou-me a entrar, quando pesquisei o seu nome, soube que se tinha
dedicado integralmente às modernas artes fisioterapêuticas (embora todas
reclamem o seu carácter ancestral), entrei para o que devia ser a sala de
espera, dois sofás, ao centro, uma mesinha de vidro, com três ou quatro
revistas, deveras anacrónicas por sinal, sentou-se, indicou-me o sofá à sua
frente, era um desses indivíduos com quem simpatizamos à primeira, talvez por
não se esconder muito, algo tão raro no hoje, desconhecia formalismos, dos
gestos ao verbo, denotei-lhe logo o tique de repetidamente ajustar os óculos,
talvez o escape para um nervosismo excessivo, afinal, todos padecemos sempre de
algo, por muito que se maquilhe o inverso, começou por me dizer Ouça, não sei se vem ao engano…
Sinceramente, não sei se o posso ajudar, nem de que forma, com o trabalho como
o seu… Há sempre um véu de respeitabilidade quando falamos de teses
académicas, termos que nos remetem sempre para compêndios desmesurados,
repletos de vocábulos e conceitos intrincados, acessíveis apenas a espíritos
iluminados, depositados em bibliotecas labirínticas, onde o sol nem à porta
passa, repeti-lhe, pausadamente, as minhas pretensões, reforcei que buscava
somente genuinidade, nada mais, todavia, houve uma dúvida que se lhe levantou,
e, para prosseguirmos, teve de ser debelada, Pelo que posso perceber, para me vir procurar, é porque tive alguma
importância na vida dele, certo? De imediato, acenei, ele prosseguiu, É que não vejo como! Sinceramente, apesar da
amizade que nos ligou, fortalecida, claro, depois daquilo… Sugeri-lhe que
recuasse ao período anterior àquele fatídico dia, Num trabalho como o que tinha, bom, na verdade, nessa altura, tinha
dois trabalhos, distintos, por sinal, mal saía de um ia para o outro, conheci
muita gente, mas há sempre uns que nos tocam mais, como é evidente, talvez por
nos revermos em quem fomos, e eu, de certa forma, revi-me naquele puto, cheio
de sonhos, vivia para o desporto, queria ser um novo Schwarzenegger, e tinha
potencial, isso torna tudo mais pesado em relação à tal data… É curioso, aquilo
aconteceu três anos depois de ele frequentar o ginásio, mas, de facto, foi a
coisa mais marcante… Como se o antes se tivesse varrido da memória, agora que
penso nisso, foi uma coisa tão pesada, mexeu muito connosco, com ele, então,
nem posso imaginar, ou talvez possa, sabe, acredito que nada provém do acaso,
se aquilo não tivesse acontecido, hoje você não estaria aqui, sentado diante de
mim, a realizar esse trabalho, neste ponto, reflecti onde já teria ouvido
isto, como se uma urgência, de sangue pelo chão, para se alterar o rumo de uma
vida, Ali desaguavam muitos jovens, e não
só, claro, provenientes de diferentes extractos, conhecia bem o pai dele,
excelente pessoa, com um temperamento distinto do filho, mais calmo, menos
temperamental, volta e meia, pedia-me que o relembrasse dos estudos, mas ele só
queria treinar, ambicionava ir para os Estados Unidos, seguir as pisadas do seu
ídolo desportivo e cinematográfico, lá cumpria com a minha parte, mas o puto
tinha resposta pronta e com piada, certa vez, cheguei a oferecer-lhe dois
livros, há uns tempos falámos disso, ele relembrou-me que foram do Hemingway, tinha
cá uma memória, é curioso, na altura, apesar de puto, percebi-lhe respeito, até
alguma familiaridade com livros e escritores, pois, como comecei por lhe dizer,
ali desaguava todo o tipo de gente, porém, alguns tornaram-se praticamente
família. Até que chegou aquele dia, só tive conhecimento na manhã seguinte, como
deve saber, aquilo aconteceu num feriado, lembro-me de ter ficado com uma dor
de cabeça monumental, não se falava de outra coisa, claro que a consequência
daquilo empolava todo o dramatismo, ouvia-se as mais variadas teorias do
acidente, os porquês, havia até quem afirmasse peremptoriamente que ele se
queria suicidar! Pouca gente treinou por aqueles dias, como se constituísse uma
heresia, resolvi visitá-lo, mal pudesse receber visitas, quando guiava a
caminho do hospital, só me queria certificar de uma coisa mal o visse, se
viesse ao encontro das minhas expectativas, a minha decisão estava tomada.
Quando cheguei, lembro-me do ambiente pesadíssimo, os pais, nem lhe digo nada,
mas não me queria descentrar da minha resolução, assim que entrei no quarto, e
ele me viu, percebi logo, aproximei-me, confesso que tive de teatralizar o ar
decidido e a passada resoluta, não queria ceder à emoção, baixei-me e
segredei-lhe uma promessa ao ouvido. Não retive a curiosidade e
perguntei-lhe se a podia partilhar, Confesso
que não queria, afinal, há coisas que não têm de cair no domínio público, posso
apenas adiantar-lhe que só buscava uma coisa para saber se podia avançar com a
minha promessa: perceber se, no seu olhar, se tinha apagado aquela centelha de
irreverência, isso só acontece quando a vida nos derrota por inteiro, não
acreditei, apesar da brutal violência, que a vida o vencesse, muito menos com
aquela idade… Mesmo agora, foi ele que quis virar costas à vida, como se,
primeiro, se risse na cara, para, depois, a ignorar de vez, falava
inclinado para a frente, sempre a ajeitar os óculos, tinha uma voz gutural,
era, de facto, alguém a quem se podia confidenciar algo com toda a segurança,
um desses raros indivíduos que, quase de certeza, não nos deixaria desamparados
numa frente de batalha, regressei à sua entrada no quarto do hospital, àquele
momento tão particular em que reprimiu as emoções, procurei que pormenorizasse
um pouco mais, lancei-lhe a premissa Imagino
o que lhe deve ter custado! Ver um jovem saudável, forte, musculado, com a vida
pela frente, reduzido a um enfermo, a um destroço, num leito hospitalar… A
sua fronte enrugou-se, o olhar focou-se ao mesmo tempo que se iluminava, como
se acompanhasse o acender das interiores divisões da memória, Engana-se! Não, não consegue imaginar! Por
muitas e bonitas páginas que escreva sobre ele, ou melhor, sobre os seus
livros, jamais conseguirá imaginar o que aquilo constituiu para mim, quanto
mais para ele! Dois dias antes, ele tinha segurado uma barra com cento e
sessenta quilos! Algo que, numa fracção de segundos, lhe foi completamente
retirado do horizonte! Repito: não, você não consegue imaginar… Jamais
conseguirá! Desculpe, não queria ser tão brusco… Tranquilizei-o, enalteci a
sua sinceridade, pedi-lhe para continuar, antes de prosseguir, claro, os óculos
e olhou de relance o pulso, pois, ali estava o tirano do homem, as horas, ainda
dispúnhamos de uns trinta minutos, Deve
ser das coisas mais dolorosas, adormecermos sentindo-nos o Super-Homem e
despertarmos uma ruína… Consegue imaginar isto? Só se dedica a um desporto que
visa a plástica corporal, neste caso hipertrofia muscular, quem, de facto, tem
uma relação complexa com o corpo. Não me refiro, como é óbvio, àqueles casos de
complexos de alguma ordem, aqui é precisamente o oposto: a complexa relação com
o corpo resulta de uma incessante procura em o aperfeiçoar. Então, estamos
perante alguém que está nos antípodas de Narciso, já que padece de uma
permanente insatisfação, o seu olhar jamais repousará na própria imagem, por
estar permanentemente toldado pelo véu da autocrítica, desse modo, viajo pelo
meu pensar, e acredito que a sua insatisfação fosse bem mais profunda, até
mesmo circunstancial, o corpo foi um veículo de expressão, talvez uma forma de
se demarcar, uma mensagem, para si e para o exterior, de alguém que procura um
ideal, que não se satisfaz com o monótono aquém, só depois, muito depois, veio
a escrita. Ele continuou, na companhia do incessante ajeitar dos óculos, Mas repare, por norma, há quem diga que é um
desporto de brutamontes, esta coisa de levantar pesos, claro que nos ríamos das
flores que debitavam tais enormidades. O desporto, seja que modalidade for,
ajuda a formar um carácter: dá disciplina e espírito de sacrifício! Não há
escola melhor! E, neste particular, ele foi um aluno de excelência. Daí que, após
certificar-me de que aquela centelha ainda tremeluzia no seu olhar, lhe tenha
verbalizado uma promessa, sucumbi, uma vez mais, à curiosidade, por muito
deselegante que pudesse parecer, Já
percebi que não me vai contar…, riu-se, compreendi que, desde o início, estava
resoluto em levar a sua narrativa até ao fim, Não se aflija, vou contar-lhe, afinal, após este tempo todo, foi o
único que me veio falar dele, bom, em verdade, veio pelos seus livros, mas
também não vejo motivo melhor para alguém ser lembrado… Como lhe dizia,
baixei-me e segredei-lhe uma promessa ao ouvido, “Não te preocupes! Vais voltar
a ser o que eras! Tens a minha palavra!”, somente lhe disse isto, olhou-me com
uma fé imensa, quase como se esta frase fosse o alimento para uma alma faminta,
limitou-se a anuir com o olhar, pouco mais podia mobilizar nesta altura, saí,
descansei os pais como pude, e foi-me embora. É curioso, não vi, nos pais, nem
vislumbres de fé alguma, quando me limitei a repetir as mesmas palavras que lhe
dissera, como se duvidassem de tudo, das potencialidades dele, minhas, de toda
a gente, como se tudo se tivesse acabado… Também já não eram novos, mas, mesmo
assim, ele carecia de um porto, mais do que nunca, e não me pareceu… Olhou,
de novo, o pulso, levantou o rosto, pelo trejeito percebi que o tempo findara, levantei-me
prontamente, ele pareceu-me espantado com o meu repentismo, Calma! Ainda dispomos de uns minutos. Reforcei
que não o queria incomodar, insistiu para que me sentasse novamente, e que, se
necessário fosse, viria ao meu encontro para terminar a sua parte, agradeci e
sentei-me, E, sim, foi lá no ginásio que
se recuperou! Saiu do hospital, um mês depois de ali entrar com um prognóstico
bem reservado, a andar, sem o auxílio de muleta! Como sempre acontece nestes
casos, encaminharam-no para a fisioterapia em Alcoitão. Apanhou uma
incompetente que se pôs a forçar-lhe a perna, felizmente, ele tinha, por experiência
própria, conhecimento suficiente de músculos e tendões para perceber os
malefícios que aquela infeliz lhe estava a causar, agora repare: entrou lá pelo
próprio pé, mas saiu de muleta! De facto, há famas que assentam mais nos silêncios
do que nas palavras… Sabe, houve até um grandessíssimo suíno a dizer-lhe que
não voltaria a andar normalmente! Veja bem os talhantes que trabalham nesses
sítios! Pois é, tanta coisa que nos foge à compreensão, imagine se fosse outra
pessoa, jovem ou velha, a ouvir isto, em vez daquele jovem que ainda detinha
uma centelha a tremeluzir no olhar? Três meses depois, já treinava perna como
dantes! Contou-me que chegou a passar por este hospital para falar com o
talhante, mas o suíno teve a felicidade de ele possuir uma péssima memória
visual. Concordei, tentei visualizar aquele jovem, habituado a arenas de
desporto, a entrar, agora, num cenário de dor, resignação, desesperança, onde a
preocupação primeira, sem se perceber muito bem o porquê, é quebrar o que resta
do espírito de quem ali chega. Paralisias, amputações, dor, muita dor, gritada,
calada, sentida, reprimida, até as sombras daquele lugar são repositórios de
dor, no fundo, ali desaguava um longo e profundo caudal de sofrimento, chegou a
escrever uma crónica, pelo que pude perceber baseada na sua passagem por este
exemplar de inferno, de um africano que caiu do coqueiro, cuja sentença, não,
nestes cenários não se trata de diagnósticos, mas sim de efectivas sentenças a
cumprir, no presente caso foi o que lhe resta da vida sentado numa cadeira.
Apesar disso, enfrentava as manhãs de exercícios, sob os ditames dos infelizes
algozes, sempre com um sorriso, uma tranquilidade desconcertante, como se ali
estivesse apenas de passagem, num desses lugares onde, momentaneamente e por
necessidade, se abrigou de uma chuva repentina, logo o sol voltava, e, de novo,
regressaria à estrada, sei que ele admirou esta postura, trocavam, sempre que os
algozes permitiam, algumas frases, fez-lhe bem encontrar, por ali, alguém que
sorria para tudo aquilo, como se estivesse para além de sentenças, como se
olhasse tudo de cima, talvez de um coqueiro bem alto, numa praia de cenário
postal, a sentir a brisa salgada no rosto, e ainda por aí permanecesse, longe,
bem longe, de algozes e suas sentenças. Havia uma questão que, não sei bem
porquê, ainda não tinha colocado, talvez por não ter um destinatário
específico, talvez por pudor da minha parte, acho que entrava em terreno
lodoso, mas se havia alguém que compreendesse, na plenitude, esta questão,
estava agora diante de mim, E, por acaso,
sabe como ele reagiu diante do espelho? A pergunta saiu-me de chofre, sem
vestígios de entoação, receei que, a meio, me arrependesse, como esperava, ele
não se mostrou surpreendido, encarou-a com naturalidade, isso descansou-me, de
forma alguma quis passar por intrometido, como vasculhador de memórias, já que
isso, ainda para mais, seria diametralmente oposto aos meus objectivos, Bom, nesse ponto, não lhe posso dar uma
resposta esclarecedora. Ele sempre foi muito cioso da sua privacidade. Como lhe
disse anteriormente, cumpri com a minha palavra, ele recuperou a vaidade, o
amor-próprio, como lhe queira chamar, regressou ao espelho como anteriormente,
quanto às consequências daquele dia, velou-as para sempre em público, creio,
não me pergunte porquê, que em privado também, como se as tivesse subtraído da
sua alma, foi a forma que encontrou de prosseguir o seu caminho, agora,
pergunto eu: quem o pode censurar? Quem faria melhor? Pois, a resposta já nasce
com a pergunta! Desta vez, foi ele que se levantou, secundei-o, de forma
alguma queria atrasar o seu trabalho, reiterou a sua disponibilidade para, caso
precisasse, novamente me receber, antes de sair, quase em confidência, acrescentou
Em verdade, ele começou a despedir-se da
vida nesse fatídico dia. Por muitas centelhas que ostentasse no olhar, muitas
mais ter-se-ão apagado… Não sei se me faço entender… É impossível que muito
dele não tenha morrido, por ali, naquela tarde. E acredite numa coisa: ninguém,
minimamente lúcido, se espantou com o seu fim. Apertou-me a mão com o mesmo
vigor da entrada, talvez com mais, agradeceu-me a possibilidade de regressar
àqueles dias do passado, apesar de uma altura tão dolorosa, de o recordar,
percebia-se nitidamente a amizade que lhe nutria, por mais que uma vez, o olhar
coloriu-se de sentir ao falar daquele obscuro período, mais de que o
entrevistar, gostei deveras de o conhecer, saí para o mundo, quis caminhar, a
imagem de minha irmã, vinda de um qualquer adormecido canto de mim, povoou-me o
pensar, o meu trabalho, neste momento, versava a dor, talvez por isso o seu
rosto, nunca fomos muito próximos, não obstante habitarmos mais de duas décadas
a mesma casa, mas tão pouco nos falávamos, não por hostilidade ou antipatia,
ainda hoje desconheço o porquê de minha irmã constituir uma estranha, calamos
tanto o sentir, como ele o sabia, talvez daí o meu fascínio pela sua obra, essa
percepção de insularidade de que somos feitos, como se a palavra constituísse uma insuficiência para nos conhecermos, minha
irmã e suas crises, confesso que me cansei daquelas chamadas de atenção, que
afinal eram bem mais que isso, uma mão que se estendia para se tornar visível
aos olhos de um outro, uma tentativa de se saber, não esperou que o mundo lhe
apresentasse a dor, já trazia tanta dentro de si, talvez demasiada, limitou-se
a deixá-la caminhar livremente pelo seu corpo, como se gravasse uma geografia
muito particular, não compreendi, na altura, o porquê, afastei-me ainda mais,
por vergonha, culpa, no fundo, tudo aquilo era-me incompreensível, várias
vezes, os pseudo-entendidos nesta coisa da mente com o seu veredicto de histeria feminina, sempre me pareceu
insuficiente, contudo, calei-me e foi aí que me tornei cúmplice do seu mal. Ao
contrário de minha irmã, que trazia o mal dentro de si, como uma semente que
incessantemente germinava (não me lembro de a ver sorrir, há uns tempos,
dediquei uma tarde, longe dos olhares inquisidores de meus pais, a folhear
álbuns antigos, em todas as fotos ela surge com uma expressão alheada,
indiferente, creio que, se o cenário mudasse, a sua face manter-se-ia
inalterável, parecia habitar num outro lugar e ali ter esquecido o corpo, tão
estranho, houve outro pormenor, não sei se um acaso, que me saltou à vista,
existia sempre um espaço entre ela e nós, como se uma distância de segurança,
uma confissão calada e simbólica de que não nos sentia como sua família), o mal
foi-lhe apresentado, num repente desta coisa de nome vida, por inteiro, sem
aviso, nada, embateu nele e deixou-o quase para sempre caído, nem tempo para a
necessária compreensão do acontecer (apenas o frio confronto com a
inevitabilidade, com a morte de quem foi e o outro do hoje, apenas um estranho
que o olhava do espelho, magro, pálido, enfermo, receoso do instante seguinte,
e ele insistia em encontrar-se, tudo em vão, diante de si somente um destroço
do que havia sido, e o vislumbre que dessa ruína ter-se-ia de reerguer, física
e emocionalmente), tanto que demorou, cerca de uma semana, a perceber que era
real, a ausência que teimava em ocultar-se pelo sentir, quando penso nisto, nas
descrições realizadas, umas mais contidas, outras que cavalgaram o tropel do
sangue, por muito que se argumente em contrário, o fascínio imemorial por esta
seiva da vida e simultaneamente caminho do morrer, tantas enormidades que eu
ouvi, o problema é que ele as viveu, dilacerado que estava no catre hospitalar,
as boçalidades devem ter-lhe chovido inclementemente, acredito que, em alguns
casos, terá nutrido compaixão, ter-se-á remetido a um sorriso (sempre a dúvida:
seria sincero? Seria desdenhoso?), na esperança de que o silêncio fosse lesto
no seu regresso, carecia tanto de se reencontrar, de perceber e perceber-se,
começou a percepcionar a similitude destas duas questões, a primeira certeza
que lhe adveio ao espírito foi a de que, no contexto de então, estava diante de
todos os seus demónios, como se o tivessem, sem ele saber como, aprisionado ali
diante deles, personificados nos seus mais enraizados temores, medos, receios,
pavores, pânicos, incertezas, como é natural, de início, evitou olhá-los,
embora os sentisse a passearem-se bem perto, os risinhos jocosos, até mesmo as
sucessivas provocações, nunca é fácil olhar de frente aquilo que a alma
obscurece, afinal, terá as suas razões, porém, no actual contexto, estava refém
de tudo, não tinha possibilidade de fuga, eles ali permaneciam, bem à sua
frente, dia e noite, sem lugar a tréguas, após analisar a situação, optou por
confrontos individuais, assim, cada um teria a sua vez, claro que foi o mais
acertado e produtivo, dada a sua circunstância, além de que tempo não lhe
faltava, a desconstrução de qualquer temor começa com a sua compreensão, que,
por sua vez, nos reporta à génese, foi este o percurso/confronto que o ocupou,
dia e noite, nos longos silêncios daquela divisória branca, como se despida de
qualquer vestígio de sentir, quando ali havia tanto sentimento desregrado,
apesar de identificados e, de certa forma, espartilhados, os demónios
continuaram a acompanhá-lo (basta atentarmos no seu fim, talvez, nestes últimos
tempos, finalmente o tenham derrotado), porém, durante esses dias, regressaram,
neutralizados, a um qualquer lugar obscurecido da sua alma, volta e meia,
escapavam, interpunham-se no caminho, gritavam-lhe os seus mais profundos
receios, ele estacava, enquanto a alma lhe doía, recompunha-se, seguia caminho
enquanto o demónio regressava a uma sombra desocupada, os inclementes sussurros
acompanhá-lo-iam no que restava dos seus dias, neste lado de cá das coisas,
porém, ao contrário de muitos, talvez demasiados, conhecia os seus demónios,
havia uns, pela idade, que já tinham lugar cativo, apesar disso, sempre que se
insinuavam no seu caminho, sob uma outra roupagem, atacava-os com toda a
brutalidade, como se lhes decretasse que jamais deviam ter existido, era tudo
que lhes podia fazer, daí a violência visceral que utilizava, já que o passado é
a memória do caminho, ao menos o presente é mutável, mas tem um carácter tão
fugidio, pela constância de se tornar um irreversível pretérito. Aproveitei
para me sentar no banco daquele jardim, estava desocupado, apesar do lago em
frente, tão raro, sempre que desejo, encontrar um banco de jardim à minha
espera, talvez por não estar à sombra, mesmo assim, aproveito e sento-me, a
tarde vai a meio, por ali reformados e donas de casa, vigilantes, com as suas
crianças, de passagem alguns casais de namorados, percebia-se claramente, pela
velocidade do caminhar, em que fase iam da relação, olhava, sem olhar, à minha
volta, e procurava, como ultimamente me tem acontecido, sempre que termino uma
entrevista para a minha tese, reflectir no que ouvira, parece-me que, num fugaz
instante, ele foi forçado a deixar de ser quem era para se tornar um outro, por
inerência, foi arrancado ao seu mundo e largado num lugar estranho, hostil,
onde só havia espaço para a dor, nada mais, é inconcebível a dimensão de tal
sofrimento, como pode alguém não mudar depois de experimentar algo assim? Uma
experiência tão radicalmente dolorosa, que mexe, de forma tão brutal, com todo
o nosso ser, mas pode uma vida cingir-se a um instante? Não terá sido essa mudança
de rumo que o terá levado à escrita? Ou o escritor sempre lá esteve? Talvez
sim, só que adormecido… Nunca gostei de possibilidades, somente de factos, daí
não ser um criador, apenas um vivente, dir-me-ão que ler é criar, sim, concordo
em parte, mas construímos sob premissas de outrem, e isto é igualmente
incontornável, de repente, um velho exalta-se por causa de um cabeçalho,
gesticula com ferocidade, o que está a seu lado permanece impassível, o do banco
em frente tenta acalmá-lo com gestos conciliadores, tudo infrutífero, o velho
brada impropérios, atira com o jornal ao chão, pelo que percebi, acabara de ler
a notícia de mais um qualquer corte nas reformas, ou talvez fosse a subida do
preço de qualquer bem essencial, a sua ira estaria balizada entre estas duas
possibilidades, uma mulher, que empurrava um carrinho de bebé, resolveu desviar
a sua rota, assim que se apercebeu dos gritos do velho que, entretanto, se
levantara, o do banco em frente acorreu para o acalmar e simultaneamente
silenciar, o outro permaneceu como até aí: impassível, como se nada se passasse
ou como se tudo fosse infrutífero, ou, de certa forma, os gritos do outro
personificavam a sua silenciada ira interior, é possível… Por fim, o velho
regressou ao banco, de mãos no rosto, não por vergonha dos seus actos, mas
talvez por desespero dos que não possa fazer, o do banco em frente permaneceu,
em pé, à sua frente, para o sossegar, o do lado, finalmente, rompeu a sua
impassibilidade, colocou-lhe a mão no ombro, e confortou-o como pôde e sabe, a
brisa vespertina ameaçava levar as folhas caídas do jornal, primeiro uma, logo
de seguida duas ou três, o jornal resumia-se já a um amontoado de folhas
desdobradas, resolvo intervir, levanto-me, junto-as, e devolvo o desordenado
conjunto ao trio de velhotes, o da ira permaneceu prostrado, com as mãos no
rosto, certamente nem se terá apercebido da minha presença, não o podia
censurar, só nos resta respeitar a forma que cada um encontra de enfrentar os
seus demónios, e, infelizmente, há demónios que são comuns a muitos, o problema
é que são poucos a reconhecerem este singelo facto, os outros dois agradeceram
as amarrotadas folhas e, quase num sussurro, pediram desculpa pelo espectáculo
de há pouco, retorqui que não houve qualquer problema, sorri-lhes e regressei
ao meu lugar, ao se aperceber de que a confusão cessara, a mulher do carrinho
de bebé regressa placidamente, o velho já se reerguera, respirava fundo, o
outro já reocupara o banco em frente, pensei nos motivos que levam alguém,
daquela idade, a ter um acesso colérico, de tal ordem, em público, de certeza
que teria motivos bem sólidos, sempre esta mania de nos limitarmos a ver as
coisas conforme o mundo as mostra, o problema é que a nossa visão é sempre
parcelar, daí a relevância do pensar, que nos possibilita ir bastante além do
ver, talvez, nesse preciso momento, a mulher do velho colérico se contraísse em
dores num quarto hospitalar, um rectângulo branco despido de sonhos e ilusões,
que nos grita, até à alma, que dali ninguém sai igual, como se só soubesse
subtrair, as expensas em medicação e internamento avolumam-se incessantemente,
embora fiquem bastante aquém da sua preocupação, ela era o seu tudo, se ainda
por aqui andava era para estar a seu lado, agora, pelas manhãs, apenas um
doloroso vazio a seu lado na cama, num silêncio demasiado arrefecido, até ouve
o inquieto respirar do seu próprio pensamento, quando, até há umas semanas, ela
constantemente a interpelá-lo, ora por causa do artigo de uma revista, ora por
causa da filha que aparenta um ar desalentado, embora insista em dizer que tudo
vai bem, como se almejasse enganar um coração de mãe, o marido, que trabalha
numa imobiliária, a deixar o lugar vago, na mesa, à hora do jantar, primeiro,
era esporadicamente, um cliente que só podia àquela hora, é quando sai do
trabalho, depois, um congresso, ela em espanto (congresso de imobiliárias?!
Deve ser um desfile de interessantíssimos oradores e respectivas temáticas…),
por fim, a questão remuneratória que passou a ser por objectivos, assim, ele a
trabalhar mais horas, afinal, nada cai do céu, para além disso, o problema
asmático do miúdo, a necessidade da natação, pois, mais uma despesa, e o carro
dela, velhinho, que passa mais tempo com o capô levantado na oficina do que na
estrada, a cadeira dele passou a estar desocupada os cinco dias da semana, ela,
que nunca esqueceu o seu orgulho, há quem lhe chame amor-próprio, a nunca
escrutinar a veracidade das suas desculpas, como se lhe fosse indiferente, em
verdade, no início doeu, até porque, nas manhãs dos fins-de-semana, ele
avidamente a procurá-la, ela gostava, ainda nutria por ele fortes
reminiscências daquele sentir dos inícios, que a fez desistir do curso de
letras, tão perto do fim, por causa da inesperada gravidez, os pais revoltados,
não pela gravidez, mas pelo curso abandonado, apesar das reservas em relação ao
sujeito, na altura, vendia carros em segunda mão, não tinha ido além do nono
ano, o pai proclamava bem alto lá por casa Um
tipo com esses horizontes, nunca irá além do tubo de escape, ela defendia-o
com veemência, o pai ria-se, claro, as cores do amor iluminam qualquer noite
deste mundo, a mãe abstinha-se de intervir, já havia demasiada discórdia,
embora estivesse alinhada com a posição do marido, ela jamais devia ter largado o curso, o tempo
deu razão ao veredicto paterno, o sujeito coleccionou empregos, tudo no âmbito
das vendas, detinha aquele peculiar verbo escorreito e estéril de ilusionista,
capaz de vender sonhos ainda por sonhar, o pai Vais-te arrepender amargamente! Esse sujeito não tem coluna vertebral! E,
de facto, nestes últimos tempos, a profecia paterna a cumprir-se, nas manhãs de
fim-de-semana, nem vestígios de
avidez ou de despertares ansiosos, nada, ele permanece num sono imperturbável
do seu lado da cama, nem um gesto de afecto para amostra, ela aparentemente
impassível para o exterior, quando, por dentro, soterrada em pontos de
interrogação, e a voz do pai a ecoar em todos os cantos de si Vais-te arrepender amargamente! Esse sujeito
não tem coluna vertebral! Nunca atravessou a entrada do hospital para ver a
sogra, em verdade, se lhe perguntassem onde ela estava internada, não saberia o
que responder, ou talvez soubesse, uma vez que era pródigo em argumentos de
pacotilha, dominava, como poucos, aquele peculiar verbo escorreito e estéril de
ilusionista, foi num Domingo de manhã, que ele zarpou daquele porto, como
sobrevivente que era, estava habituado a ter a mala ligeira, não houve lugar a
palavras nem a olhares, ela quedou-se pelo quarto, distraiu-se com afazeres,
quando ouviu a chave de casa ser depositada no pratinho de vidro, da mesa de
entrada, e a porta fechar-se, sentiu-se renascer, os pontos de interrogação que
a povoavam diluíram-se de vez, já nada sentia por ele, apenas indiferença,
poder-se-ia dizer que estava exangue de sentimentos, trabalhava numa agência de
viagens, apesar do curso interrompido, sempre se ajeitava em línguas, nos
últimos tempos foi ela que providenciou a natação do filho, a medicação para a
asma, e passou a andar de transportes públicos, ao menos assim, o seu carro
passava mais tempo de capô fechado, e, no frigorífico, cada prateleira, no
mínimo, estaria povoada por um bem de primeira necessidade. É possível que o
velho tivesse tropeçado na notícia de mais um previsível corte nas pensões,
ele, que nunca se ajeitara com números, sabe pormenorizadamente quanto pode
gastar por dia, para não cair no desconforto da fome, embora não lhe fosse
nenhuma estranha, este momento do viver, que devia ser de balanço e repouso,
tornou-se num sinuoso trilho de sobrevivência, nunca procurou diálogos para
além da sua circunstância, fosse o cepticismo que o dominava, o orgulho em se
pensar auto-suficiente, a energia que o habitava a impeli-lo a enfrentar as
arestas do viver, ou, no fundo, saber que alguém dialogava também por ele, a
ideia de que chegara a sua vez, de dialogar por dois, ou quatro, a sua filha e
neto tão desamparados naquele minúsculo apartamentozito, lá para o subúrbio do
subúrbio, a asma do miúdo, a natação, tanto quis oferecer um carro à filha, o
dela sempre na oficina, de capô levantado, não se lembra de o ver circular,
nestes anos todos, talvez consiga, com algum esforço, recordar-se de uma, é
possível que chegue às duas vezes, e saber que o asco em nada contribui, os
proventos dos ocasionais trabalhos dirigidos integralmente à actual amante, que
os destinará às recentíssimas unhas artificiais ou, quem sabe, a colorir, uma
vez mais, madeixas, por tudo isto a sua desesperada ira, desta feita não
conseguiu reprimi-la, esboroou-se a educação, etiqueta, tudo o que nos mecaniza
nesta vida em sociedade, que nos faz antecipar acções muito antes de as
praticarmos, por serem as que os outros esperam de nós, não, desta vez, o velho
rugiu uma velha raiva, talvez a mais profunda que podemos carregar: olhar para trás
e saber onde, de facto, falhámos; por outras palavras: quando estávamos ao leme
do acontecer e rotundamente errámos. Levantei-me, antes de me afastar, olhei à
minha volta, o trio de velhotes regressara às cartas, a mulher do carrinho de
bebé, agora, sentada à beira do lago, tudo estava em harmonia, talvez fosse uma
ilusão, é possível, o problema da nossa sempre parcelar visão, deixei o jardim,
uma frase dele surge-me de um qualquer nada Em
que dia faz anos que estou morto? Lembramo-nos, quase sempre, do dia de
anos de alguém, mas do dia da morte… Por exemplo, Pessoa, decorei com
facilidade o dia do seu nascimento, 13 de Junho de 1888, o ano da morte também,
1935, mas o dia já não, mesmo familiares, amigos, que tenham partido, em termos
de datas, fica a do aniversário, que, no fundo, celebra a vida, mesmo quando se
encetam relações, namoro, casamento, celebra-se o início, poucos se recordarão
da data do términus, quer isto dizer que fomos feitos para a vida, apesar de,
na nossa essência, carregarmos essa obscena ideia da morte, ele, por exemplo,
tinha mais presente o dia em que aquilo sucedeu, do que propriamente o dia do
seu aniversário, que, segundo consta, abominava particularmente, como se já não
devesse cá estar, uma ideia que se lhe formou e acabou por se enraizar, pelo
que pude compreender, ele achava que devia ter morrido naquele dia, ponto
final. E, o que é certo, todos os testemunhos são unânimes em detectar-lhe uma
certa distância face ao acontecer, um contínuo desapaixonar da vida, como se a
tal centelha no olhar, a que alguns fizeram alusão, se fosse extinguindo,
irreversivelmente, até apenas restar o esboço de um sorriso que traduzia a
indiferença que lhe ia no espírito. Conhecia essa expressão. Vislumbrara-a há
muito, num rosto tão próximo, minha irmã, sempre com a distância, de nós, dos
outros, de tudo, nem se podia afirmar, como sucede em muitos casos, que
habitasse um mundo só seu, um desses lugares, somente por nós conhecido, onde
nos refugiamos quando o mundo uma borrasca imensa, cheguei à sua dor pelo acontecer,
tal como meus pais, porém, ainda hoje, desconheço a sua génese. Ao contrário
dele, que se lhe gravou, mais no espírito do que na carne, no tal dia em que o
demónio resolveu caminhar pela terra dos homens, e resolveu atravessar-se-lhe
no caminho, acho que o inconformismo só é possível a quem olha para além da sua
circunstância, e não estou a falar de alienados, mas sim de quem compreende tão
radicalmente o seu contexto que, ao não se conciliar com o mesmo, resolve
transformar-se… Só que, para ele, isso não bastou. Em relação a minha irmã,
creio que simplesmente nunca quis ser. Nessa mesma noite, recebo uma chamada,
pela voz rapidamente cheguei ao rosto, sempre me foi mais fácil conciliar vozes
com rostos do que o inverso, talvez porque um rosto oculte melhor o sentir do
que uma voz, Sim, ela está disposta a
recebê-lo. Terá de vir cá outra vez. Imagino o transtorno que isso lhe deva
causar! Desta vez, fica em nossa casa! E não aceitamos desculpas! Lembre-se: de
início, ela vai parecer-lhe hostil e desinteressada, é tudo teatro, no fundo, está
morta para o receber… Agradeci com a cordialidade possível, aqui chegado,
compreendi que esta seria a última entrevista. E, sem dúvida, a mais difícil,
por fim, ia conhecer a personagem central do seu melhor romance. Cumpre-me
informar, neste momento da narrativa, e após a longa conversa que tivemos, que
não irei transcrever, a seu pedido, qualquer excerto. Espero que os caríssimos
leitores não fiquem desapontados. Vou procurar traduzir, da melhor forma
possível, as impressões que retirei deste encontro. Peço, desde já, desculpa,
se aqui chegaram na vossa leitura, por este contratempo, e relembro que, ao
contrário dele, não sou escritor, apenas um curioso que perseguiu, o melhor que
pôde e sabe, as suas palavras. De novo, vi-me no comboio a caminho, pela
segunda vez, daquela cidade, onde o sol teimava em esconder-se, um lugar tão
diferente de Lisboa, de aparência encantadora e singela, mas um olhar mais
arguto percepcionava, de imediato, a velada hostilidade com que encaravam um
estranho, não gostaria de ali morar, há uns tempos, li algures que, em certos
casos, para nos encontrarmos, precisamos das múltiplas ruas de uma grande urbe,
creio que pertenço a esta tribo, careço daquele rumorejar de fundo, que só uma
metrópole proporciona, para me sentir em casa, enquanto o comboio balouçava,
dava por mim a recriar-lhe os passos, sei que ele também desembarcou, por
diversas vezes, naquela mesma estação, de uma alvura extrema, apenas atenuada
pela azulejaria de tons azuis, ao cimo da avenida, única, por sinal, digna
desse epíteto por aqueles lados, sei que, ali, apenas encontrou as sombras de
um sol oculto, mas isso são outras histórias, de facto, não me posso dispersar,
nem domino assim tão bem o verbo para esse efeito, como dizia, o encontro ficou
marcado para a mesma pastelaria, apesar da insistência, preferi assim, não
queria, de forma alguma, incomodar, cheguei primeiro, sentei-me, não na mesma
mesa da última vez, por estar ocupada, mas ligeiramente ao lado, ela chegou,
pelo braço da familiar, como anteriormente disse, comprometi-me em manter
alguma privacidade, que foi bastante efusiva nas saudações, confesso que gostei
de a rever, porém, queria furtar-me a pernoitar na sua casa, nunca gostei de
abusar da confiança, além de que, como alguém me ensinou, quanto mais se conhece
alguém, mais matamos a ideia, pois, como dizia, ela chegou acompanhada pela
simpática familiar, avaliei-a à medida que se aproximava, perguntei-me se teria
consciência de já ter sido guindada a personagem literária, tinha um semblante singularmente
carregadíssimo, a familiar procedeu às apresentações e deixou-nos, ela
sentou-se, com alguma formalidade, resolvi falar de trivialidades, sempre a
forma mais escorreita de aligeirar o ambiente, à medida que lhe dava
protagonismo, o seu semblante tornava-se primaveril, começava a percebê-la, gostava
de palco, falámos da inevitável temática que preenche o silêncio dos estranhos,
o estado do tempo, até que, com a devida subtileza, o introduzi na conversa,
com a naturalidade possível disse-lhe que ele era muito solar, detestava aquele
clima pardacento, triste, enevoado, ela, de imediato, concordou, não percebi se
alinhou na mudança de direcção do diálogo ou se foi genuína a responder, mas
sopesando bem as coisas, inclino-me para a primeira, contou-me o amor dele pelo
Verão, pela praia, algo bastante evidente na sua obra, como anteriormente já
fora referido, o elemento marítimo, percebia-se-lhe, na expressão, um
antagonismo de sentires, algures entre um genuíno orgulho e um profundo pesar,
interessou-me mais este último, procurei explorá-lo como pude, sempre com a
devida precaução, afinal, era daquelas pessoas que não largava, com facilidade,
as rédeas do acontecer, após o diálogo ziguezaguear por diversas temáticas,
aspectos da infância, alguns já conhecia, a sua profunda ternura pela escola
primária (bem patente na crónica: Foi no
alto de uma colina, que aprendi a olhar o mundo), da juventude, gostos, por
diversas vezes reforçou a particularidade do seu temperamento, comecei, lentamente,
a descortinar a conexão entre o genuíno orgulho e o profundo pesar, no seu
entender, ele tardou a realizar as coisas, chegaram-lhe fora de prazo,
souberam-lhe a anacronismos, tantos familiares e amigos já finados, nem puderam
testemunhar a fonte dos seus orgulhos, se fosse, pelo menos, uma década antes,
agora, da sua parte, tão poucos para presenciarem, alguns até já desprovidos de
lucidez, não, foi tarde, demasiado até, mas, pelo menos, apareceram essas luzes
tardias, daí esta ambivalência no seu rosto, a sua magreza também não me passou
despercebida, era uma magreza orgulhosa, de alguém que refreia apetites ainda
por uma silhueta, não obstante ser habitante do inverno da vida, sinal de
orgulho e amor-próprio, percebia-se-lhe a cada gesto, desde o início,
impressionou-me a assimetria de personalidades entre ela e a sua familiar,
apesar de tão próximas pelo sangue (de facto, e como ele um dia escreveu, Cada um nasce com a sua forma), a
espontaneidade de uma contrasta com o
gesto penosamente reflectido da outra, por um lado, o ser, por outro, o querer,
embora, em ambos os casos, as humildes origens potenciem alguma desmedida de
horizontes, perceptível em frases ou temáticas recorrentemente trazidas à mesa,
tão velho quanto o caminhar do homem, quanto mais nos falta algo, mais falamos
dele, a certa altura, percebi que teria de agitar as águas ou a conversa não
sairia do conforto de zonas iluminadas, disse-lhe Os mortos não sonham, percebeu os meus passos, mas vetou-os,
disse-me que pouco podia acrescentar ao tanto que eu já ouvira, que era apenas
uma velha cansada, desgostosa, em luto com a vida, que tanto a subtraíra, no
fundo, nem percebia porque acedera a encontrar-se comigo, tentava
encurralar-me, teria de recuar e devolver-lhe o protagonismo, respondeu-me Não sei se os mortos sonham, eu é que o
deixei de fazer há muito…, devolvido o palco, ela recuperava o ânimo, por
momentos, até parecia simpática, agradavelmente dialogante, era daquelas
pessoas que disfarçava bem quando lhe faltava o pé em certas temáticas,
remetia-se ao silêncio e limitava-se a anuir, porém, eu queria regressar ainda
nesse final de tarde e o diálogo andava somente em círculos, por vontade dela,
como é evidente, nas entrelinhas deixara bem claro que jamais largaria as
rédeas, a dada altura, ocorreu-me que, de facto, ela pouco podia adiantar-me,
enquanto personagem está tão bem explanada em Do outro lado do rio, há uma margem, o impacto que teve nas vidas à
sua volta, e tão profundo foi na construção de silêncios, para mim, enquanto
estudioso da sua obra, considerei reconfortante conhecê-la, simplesmente para
corroborar as suas palavras e visão das coisas, não se desagua na palavra por
um acaso, já no comboio, entre este lado das coisas e o outro, percebi que só
se chega à palavra pelo silêncio, quando tanto grita em nós, por sentires tão
desordenados, num lugar onde só cabe o passado, que apenas nos resta sentar a
um canto, pegar numa folha, na caneta, e procurar devolver, se possível,
harmonia ao que realmente somos. O ininterrupto balouçar despertou-me, ali era-me
difícil conciliar o sono, lá fora somente a noite do mundo, como se tudo
tivesse partido para um outro lugar, e só nós, viajantes daquele comboio, para
corroborar que nem tudo foi uma ilusão, de novo, o vidro devolvia o que me
julgava ser, para além disso, apenas as trevas que escureciam as evidências
vindouras da sempre ansiada manhã, deixei-me estar, não a ver-me no omnipresente
vidro, mas num estar sem ver, é quando caminhamos pelas paisagens de nós,
àquela hora, pelo menos na minha carruagem, apenas metade dos lugares ocupados,
era um dia a meio da semana, tão estranho, aquele comboio parecia a única certeza
numa desoladora irrealidade, em sobressalto, olhei à minha volta, também para
me saber, uns com o inevitável jornal, outros dormitavam, o omnipresente
rectângulo do hoje entretinha uma boa percentagem, aquietei-me, ou talvez não,
e regressei ao vidro, a mim, às trevas que pintavam de irrealidade o mundo
anoitecido, é curioso, depois de olhar à minha volta, foi a contemplar a
silenciosa harmonia da madrugada que sosseguei. De repente, vinda não sei de onde,
uma viela empedrada diante de mim, mais ou menos a meio, havia uma loja
esconsa, quase sem montra, após a entrada, dois degraus, que se desciam com
reverência, ali, à nossa frente, um universo de papel à altura dos sonhos, um
desses, raros, lugares, interdito a adultos, pelo menos àqueles que esqueceram
a cor da meninice, lembro-me tão bem, íamos quase em excursão, apesar de não
sermos muitos, afinal, ler, fosse o que fosse, sempre custou, ao alfarrabista
de banda desenhada, era um velhote de estatura média, magro, confesso que nunca
lhe conheci a voz, do alto dos meus oito anos, olhava-o com admiração, não sei
porquê, mas sempre me pareceu que ele tratava por tu os meus heróis e
super-heróis preferidos, talvez fosse um familiar distante, quiçá um primo
longínquo, estou mesmo a vê-lo, pelo menos uma vez por mês, a pegar no
telefone, a ligar ao Peter Parker para saber como vão os estudos, a saúde da
tia May, se ela não se tem esquecido da medicação, ou ao Matt Murdock, para ver
como anda o escritório de advocacia, se a clientela tem aumentado, é possível
que também não se esqueça do Michel Vaillant, se já fez as pazes com o irmão, no
fundo, sempre associei o seu silêncio a uma timidez infantil, vasculhávamos a
loja toda, e nunca lhe ouvimos uma censura, ao contrário de todos os adultos, a
começar pelos nossos pais (Está quieto!
Por acaso, alguém te deu ordem para mexer?! Cala-te! Já disseste bom-dia?
Alguém vê com as mãos? Vais entrar, e Deus te livre que toques em alguma coisa!),
é verdade, houve uma altura em que os pais educavam os filhos, por estranho que
pareça, depois, infiltraram-se umas teorias de pacotilha, a mando de interesses
escusos, e a anarquia bateu à porta de cada um de nós, resta-nos, claro, a
liberdade de a deixar ou não entrar, como dizia, aquele era um dos raros
lugares onde, de facto, nos sentíamos adultos, clientes respeitados e
livremente à procura de um artigo que pudesse interessar, sem a mínima
repreensão, enquanto por ali deambulávamos, ele permanecia atrás do balcão, em
arrumações, por vezes, em leituras, fascinava-me observar aquela superfície
calva debruçada para uma revista, aos quadradinhos, que, até então, julgávamos
ser unicamente para a nossa idade, como se, subitamente, alguém restituísse
dignidade a algo só por nós reconhecido, era como se assistíssemos a uma epifania,
creio, com sinceridade, que muitos de nós pensámos o mesmo, porém, nunca o
verbalizámos (Que pena o nosso pai não
ser como o alfarrabista!), os
quadradinhos, durante a minha meninice, preencheram-me os silêncios lá de casa,
por ali partilhava amarguras, anseios, erigia a minha colorida realidade, tão
distinta dos adultos, que, praticamente em cada frase, repetiam os termos pagar e factura, não sabia o que eram, contudo, não sei porquê,
afiguravam-se-me imagens cinzentas e nos antípodas da simpatia, era também
comum a crítica àquele mundo aos quadrados, que consumia com avidez (Quando é que começas a ler livros a sério? E
deixas essas porcarias? Com a tua idade, já tinha lido… Sinceramente, achas
que, com essas coisas cheias de fantasia, vais a algum lado?), confesso que
magoava, sobretudo pela flagrante ignorância do que ali acontecia, afinal, o
Peter Parker desdobrava-se a tirar fotos para pagar as facturas que lhe enchiam
a caixa-do-correio, além dos medicamentos para a Tia May, o Clark Kent estava
destinado a uma dramática orfandade, antes de tecer quaisquer críticas, julgo
que os adultos deveriam, isso sim, conhecer as coisas, e, verdade se diga,
quase todos, nas tais coisas cheias de
fantasia, estavam fatalmente destinados a um frio desamparo afectivo: Bruce
Wayne, Peter Parker, Matt Murdock, Clark Kent, Tarzan, só para citar alguns…
Acredito que se houvesse mais superfícies calvas debruçadas para uma revista
aos quadradinhos talvez, é possível que sim, as coisas fossem um pouco
diferentes neste lado de cá do acontecer. Hoje, naquela viela empedrada, que
pouco mudou com os anos, nem vestígios do alfarrabista, nem daquele colorido
universo de papel, a loja, com os dois degraus, após a entrada, está lá sem
estar, quando ali chego, passo para o outro lado, há lugares assim, que nos
foram subtraídos do sentir, nunca mais soube da superfície calva que se
debruçava para um colorido universo aos quadradinhos, creio que a perdi quando,
também eu, e tão prematuramente, me afastei de histórias de desamparos
afectivos (talvez por que as vivesse há muito) e de facturas por pagar, ouvi
dizer que partiu sorridente durante o sono, e se juntou à sua mulher, que o aguardava
há quase uma década, é reconfortante, apesar de tudo, quando ouvimos algo
assim, como se um sentido para o
aqui, sorri-me ao relembrá-lo, atrás do balcão, de testa franzida debruçado
para o mesmo horizonte que nós, é tão reconfortante quando encontramos alguém
que olha na mesma direcção, como se também um sentido para o aqui, porém, enquanto o pensar caminhava por estes
lados, uma questão levantou-se-me: que imagem guardamos antes de alguém que
parte? Nunca anteriormente esta questão se me atravessara, confesso não me
recordar de nada concreto, apesar das várias despedidas a que fora instado a
comparecer, cada um que parte não subtrai, pelo contrário, adiciona: saudade,
alegria, tristeza, palavras, gestos, no fundo, memórias.
A Escrita
Sabia que estava noutro lugar. Um desses sítios que, até então, não fazem parte da nossa vida. Tentei compreendê-lo com o possível momentâneo de mim: o olhar. Apenas percebi uma brancura excessiva, de facto, estava longe de minha casa. Ou de qualquer outro lar. Fui-me percebendo: sempre a geografia da dor. Estava deitada há algum tempo. Quanto? Não sei. Talvez tivesse dormido um pouco. O que me despertou? As dores? Sim. Não, o barulho. Mas também as dores. Talvez tudo somado. E sempre um vai e vem constante de batas brancas. Outros, deitados como eu, entravam em salas, de portas de saloon, a velocidades de cenários de asfalto. E eu permanecia ali, numa maca, encostada a uma parede, com um gotejar, provindo das alturas, ininterrupto braço adentro. O movimento não cessava. Tento levantar um pouco a cabeça, para compreender melhor o espaço. Logo uma mão sorridente trata de me serenar de encontro à almofada. Ouço um expressivo Acalme-se, está quase, e eu, numa resignação indefesa, de regresso à horizontalidade branca. De repente, uma dor excruciante brota-me dos estigmas. Uma dor de fogo, no fundo, uma dor de raiz. Apercebo-me, agora, da minha imobilidade. Afinal, já ali tinha estado. Aquando da primeira estigmatização. E, por ali, não queriam mais cordeiros sacrificiais. Sim, esta foi mais uma tentativa. Nessa manhã, tivera um teste de Português. Correra-me muito bem. Almoçara, num cafezito próximo da escola, com umas colegas. Conversas de liceu, algures entre rapazes e moda, tudo numa superficialidade excessiva, só possível a quem não olha para além da sua sombra, representei, o melhor que pude, interesse, apesar de sentir que pisava um país longínquo. Findo o almoço, ele acompanhou-me a casa. Sempre diligente. Talvez demasiado atencioso. Hoje estás longe, recordo-me da sua voz, nitidamente apreensiva, a dizer-me isto, estás longe, sim, há muito que estou longe, ele a dar-me a mão, passeio fora, com um orgulho indesmentível, traduzido num sorriso sem recuo, eu de expressão amarelecida, a seu lado, ora a tentar acompanhar-lhe o passo, acelerado pelo entusiasmo, ora em guerra declarada com aquela estúpida madeixa, que testa incessantemente os meus reflexos e a minha paciência. Deixa-me à porta de casa, significa beijo prolongado, ele sorrisos, eu longe, ele entusiasmo, eu numa nostalgia muda, Logo, queres ir ao café?, eu a pensar que logo é tão longe, mas respondo que sim, porque apenas pretendo silêncio, ele parte, felizmente, e com ele leva aquela alegria de risos tolos e falares altos. Entro em casa. Dirijo-me ao meu quarto. Pouso a mochila no sítio de todos os dias. Vou à cozinha e preparo um lanche. Nisto toca o telemóvel. É a minha mãe, Sim, está tudo bem. O teste? Correu bem. Sim, saiu a matéria que esperava. Queres que vá aos correios? Tudo bem. Sim, não me esqueço de pôr o peixe a descongelar para o jantar. Não, não me vou esquecer. Vou já tratar disso. Não te preocupes. Após o peixe, fui até à casa de banho. Retirei a pulseira preta do pulso esquerdo. Baixei o olhar para a brancura do lavatório. E deliciei-me com o quadro escarlate que desenhei naquela tela de uma brancura obscena. Nada senti, a não ser a frieza do metal trazido da cozinha. Isto quanto aos sentires exteriores. Porque, interiormente, sentia-me a submergir no rio da vida, e, sim, chorava, por uma alegria reencontrada, e os passos do meu coração aceleravam passeio fora rumo a um horizonte pintado pela cor do meu ser. Apercebo-me, sem saber como, de que lá fora já a noite. Sempre associara noite a frio. Não sabia porquê. As batas brancas continuavam o seu trânsito de metrópole. Eu cada vez mais baixa. Sentia-me a afundar. De repente, um sorriso, apenas um sorriso sem olhar, dedos que me conheciam o rosto, e um cheiro de infância, eu compreendo, de onde estava a olhá-lo, que ele nunca pronunciou a palavra porquê. Sentou-se, apenas para estar mais próximo. Mas, neste momento, parecia num entretanto algures entre o sonho e o aqui, olhava a dor como uma saudade deixada na margem, deixei-me ir, numa corrente que prometia esquecimento, deixei-me ir, apenas inclinei a cabeça, não sei porquê, mas um grito emudecido ecoou pelos cantos do que sou (Não te mexas!), respeitei o imperativo, talvez o grito proviesse de um ainda desconhecido, cedi ao apelo do calor, que me prometia leveza, deixei-me ir, e adormeci… Esta cena repetiu-se mais três ou quatro vezes. Possivelmente na quarta, um rosto familiar, debruçado sobre mim, ostentava um sorriso em ruínas, meu pai, sua mão pelos meus cabelos, numa lentidão de caminhante entre destroços, tentei uma frase, mas o sentir sobrepôs-se, a barragem da razão e o consequente silêncio, nele, também ameaçava fissuras, havia naquele rosto uma sombra de derrota, o seu olhar a evitar-me os pulsos, apesar de lhe erguer a mão num gesto sem voz, meu pai, meu pai, ali, à cabeceira de minha cama, disfarçado de hospital, um esforço para o reconhecer, a falar-me pela ponta dos dedos que ondulam por meus cabelos, percebo-lhes palavras de um espanto desgostoso, Porquê? Falhámos nalguma coisa? Sempre te demos tudo… Talvez seja esse o problema, demos-te em demasia, compreendo, num cinzento de mim, que, quando sair, tudo igual, Sou pobre, meu pai. Sou uma mendiga. Não se oferece um casaco, a quem morre por dentro, os seus dedos aquietam-se, os lábios pousam na minha testa, um dever é para se cumprir, sobretudo se houver plateia, antes de se retirar, do seu olhar apenas um espanto desgostoso, nada mais, persiste com o casaco, não consegue sair de si, daí aquela genuína surpresa por ter de se apear, um indesejado obstáculo na jornada, a minha mão de regresso ao leito, olho-a como um despojo de intenções, quando me apercebo, meu pai já à porta, agora, a fechá-la, no esmero de quem esconde um objecto defeituoso numa qualquer despensa, reparei que, à medida que se aproximava da porta, os passos mais leves, por fim, pelos vidros, apenas a nuca, sabia que não olharia para trás. Nesse dia, não houve mais visitas. Estava sozinha num quarto de paredes brancas: espelho perfeito do meu pensar. Nem uma ideia por mim nascia. Nada. Muito menos, um sentir, a não ser pousar a mala, numa qualquer berma, de tudo que me fizesse vincar os pés no chão do mundo. Queria ir, apenas e só. Partir para um lugar que desconhecesse definitivamente o que é o amanhã. Uma noite que caminhasse infatigavelmente pelos dias. Algures por aí. Um lugar de silêncios, onde todas as vozes se calassem, e nem a saudade dos seus ecos se levantasse. Algures por aí. Nem frio, nem calor, apenas um estar, onde me soubesse, mas onde simultaneamente me fosse esquecendo, algures por aí… A cama do lado permanecia imaculadamente feita. Como se a ordem das coisas ainda não lhe tivesse encontrado um ocupante. Não devia tardar muito. Afinal, o nosso destino é cair. O apelo do sono só com a noite. Começava a afastar-me do lugar da dor, sob o desígnio de analgésicos. Nem dois minutos após a saída de meu pai, já uma enfermeira transpunha a porta, com uma energia que se me afigurava obscena face à minha condição, após as primeiras frases, adivinhei o rumo da conversa, Já viu em que estado deixou a sua família? Coitados! Já tem idade para ter juizinho, não acha? Diga-me lá a verdade, foi algum desgosto amoroso? Os exames correram mal? Não se preocupe, isto fica entre nós, optei pelo ramo que me traduzia o vento, para lá da janela, a enfermeira persistiu com o monólogo, creio que nem se apercebeu do meu silêncio, findos os afazeres, Não se preocupe. Isso é da idade. Um dia ainda se vai rir de tudo isto. Olhe que há gente muito pior… Eu, incrédula, fitei-a, percebi o mundo que nos separava. A sua incontinência verbal num flagrante contraste com a imobilidade do cérebro. Há quem diga que virei costas à felicidade. Mas é errado. Só se pode virar costas ao conhecido. Creio que tudo começou num dia de férias, há uns anos, no Verão. Ao contrário da maioria, chegado o calor estival, meus pais rumavam a Norte. No fundo, mais por influência do meu pai. Creio que o Sul lhe despertava reminiscências de uma outra vida, que, para seu infortúnio, e talvez nosso, obrigaram-no a largar, nesse momento, questiono eu, Quanto dele terá morrido? Instalávamo-nos sempre na mesma pensão, de dois andares, um edifício verde desbotado, numa rua anterior à marginal, daquela cidade do litoral nortenho. Meu pai argumentava com a qualidade do ar e das águas, a simpatia das gentes, e os preços em conta. Terminava a argumentação sempre da mesma forma Para confusão, já me chega o resto do ano… A mim e ao meu irmão, só nos restava segui-los, de ombros derrotados, a contemplar o vidro traseiro do carro que nos distanciava, cada vez mais, do Sul. Já sabíamos que, no início de cada ano lectivo, iríamos ouvir os relatos, intermináveis, dos nossos colegas que rumaram a Sul, falavam de águas tépidas, meigas, de um calor que abraçava a noite, de vários idiomas irmanados a uma mesma mesa, nós, fascinados, ouvíamos aquelas narrativas enquanto a nossa imaginação construía o possível sonhado de cada palavra. Quando chegava a nossa vez, contornávamos águas frias, bravas, um vento desconfortável que invadia a noite, aquela estranha fusão de português e francês que se multiplicava incessantemente, deveras excêntrica, mas interessante, socorríamo-nos de um assunto em voga, logo as atenções se dispersavam, e, por fim, ficávamos sós, no longe do nosso interior, a contemplar a imagem sonhada que cada palavra semeou… Ainda hoje, para mim, Sul rima com sonho. Mas, sim, de regresso àquele dia, que se me colou à pele da memória, como aquelas marcas indeléveis de nome tempo. A rotina daquelas duas semanas era inflexível. Descíamos para a primeira refeição às oito horas, hoje compreendo-lhe a humildade, leite e café ou sumo (não bem sumo, mais um pó que se diluía em água, para lhe dar cor), pão com doce ou manteiga, na altura sabia-me a mundo, por ser longe de casa, de seguida, praia, em múltiplas ocasiões, socorria-me de uma camisola, meu pai sentava-se numa cadeira que levava debaixo do braço a ler o jornal, minha mãe, na toalha, com uma revista de vidas bem distantes da sua, todavia, antes de tudo, armava-se o guarda-sol, outras vezes, no seu lugar, um cata-vento, meu pai, uns largos minutos, a esvaziar um frasco de protector solar nas costas sardentas de minha mãe, eu com a imagem de um protector eólico, na minha pele, ainda hoje, a dor omnipresente das vergastadas de areia, meu irmão, seis anos mais velho, procurava enturmar-se em jogos de futebol, quando não, permanecia num mutismo obstinado, que gritava o desprazer daqueles dias, eu com a camisola, passos suficientes para sentir água sob os pés, já era o suficiente, tal a intimidação que me inspirava aquele rugido líquido, olhar os outros, perder-me neles, talvez tivessem um lugar para mim… Às onze e trinta, regressávamos para o almoço, também na pensão, excepcionalmente, meu pai optava por um restaurante, as refeições decorriam sob o jugo de uma alegria sintética, nossos pais sorridentes, como se padecessem de uma alienação patológica, colocavam-nos questões sucessivas, num estatismo esquemático, como se cumprissem um guião escrito por mão doutrem, acerca da escola, se estávamos a gostar da estadia, até da comida, sempre que este rito se iniciava, centrava-me no esvaziar da garrafa sobre a mesa, não era assim tão rápido, aquele inusitado interesse por nós, obedecia a outras raízes, quase sempre, como se em sintonia, as nossas respostas balizavam-se entre ombros a tactear os lóbulos e um horizonte de pratos, acho que eles nem se apercebiam do nosso fastio, ou talvez estivessem para além disso, finda a refeição, cumpriam uma sesta, meu irmão saía, por vezes, passeio fora, não sei para onde ia, porém, compreendia tão bem do que se afastava, via-o a deambular, de mãos nos bolsos, pela marginal, meu irmão, creio que, em verdade, nunca retirou as mãos dos bolsos para a vida, nem perdeu aquele passo deambulante, um dia partiu (ou ter-se-á perdido nalgum passeio do mundo?), ou talvez fosse eu a partir, olhávamo-nos, mas tão pouco nos falámos, havia tanto silêncio entre nós, éramos quatro estranhos a partilhar um tecto, desde aí, só o revi uma vez, mas isto sucedeu mais tarde, ou talvez não, afinal, as coisas nascem sempre muito antes de o serem, eu permanecia numa sala, com televisão e revistas, contudo, perdia-me sempre com a janela, algo em nós sussurrava a importância daquelas sestas para os nossos pais, talvez procurassem, no fundo da algibeira do sentir, uma memória esquecida no caminho… Àquela hora, nunca subíamos. Como se afirmássemos uma posição. Pelo menos, a sesta não cumpríamos. Por volta das dezasseis horas, desciam, meu pai, de novo, com a cadeira debaixo do braço, minha mãe, com o seu chapéu de palha, saco a tiracolo, revistas e bronzeadores em luta pela visibilidade, umas vezes desciam ensonados, outras ostentavam aquele entusiasmo alienado do almoço, meu irmão já os aguardava à entrada, ou não tardaria a aparecer, comecei a compreender que, após essas deambulações, se lhe somava uma lentidão galopante ao mutismo obstinado, seguia-se mais praia, até às dezoito horas, reocupavam-se posições, guarda-sol em vez de cata-vento, ou o inverso, esvaziava-se mais uma embalagem de protector solar pelas costas sardentas de minha mãe, no meu pensamento, de novo, a embalagem de um protector eólico, dei comigo, várias vezes, a suplicar que o tempo acelerasse, como se a minha solução estivesse miraculosamente a jusante, quando, sempre o soube, residia numa sombra demasiado oculta de mim, o regresso dava-se sob mais vergastadas de areia, sentidas sobretudo nos tornozelos, afinal, camisolas e toalhas sempre têm utilidade numa praia, após o jantar, regra geral, as efusões do almoço esbatiam-se, é compreensível pela hora e por toda a animação de mais um dia, que não admitia variações, balizado entre pensão e praia, seguia-se um passeio marginal fora, de vez em quando, um gelado, algodão doce, meu irmão ausentava-se com o pretexto de uns novos amigos, da sala de jogos, com aquele clima tão animado de férias só seria possível aos meus pais anuírem, quanto a mim, refém da ausência de pretextos, só me restava segui-los, consciente do opróbrio daquela não assumida derrota colectiva, chegado a um determinado ponto, regressavam, como se a vida fosse caminhar sob o sorriso da nossa sombra, e eu, nesses momentos, a sentir-me órfã de uma janela… A pensão disponibilizava duas casas-de-banho, por andar, para serventia dos hóspedes. Meu pai costumava dizer que a pensão era humilde, mas muito limpa. Em certa medida, estava certo. E, para eles, era um sacrifício, já que tinham de alugar três quartos. Pertencia a um casal idoso. Tinham o cuidado de perguntar, várias vezes ao dia, se tudo estava bem. Não lhes posso negar a simpatia. Eu é que era já uma imensa sombra. Ali se estabeleceram aquando do regresso à metrópole, após mais de duas décadas de África (começava a visualizar o porquê daquela pensão, meu pai rejuvenescia diante do meu incrédulo olhar), onde se conheceram, ele encantou-se com aquela aparente segurança, que mal disfarçava a criança que, até hoje, se recusa a caminhar às escuras pela casa, mais duas solidões originaram um casamento, não há assim tantos anos tudo desaguava em casamento, no que respeita a partilhar vidas, depois começaram as dúvidas, as inevitáveis questões atiradas de fora, a cada instante, como pedras em feridas ainda por cicatrizar, Então, para quando um herdeiro? Não me digam que não está no vosso horizonte? Preferem menino ou menina? Não acham que já está na altura? Estão a deixar para muito tarde… Não vos parece? Assim era, mal saíam de casa, pedras vindas de todo e qualquer lado, algumas bem traiçoeiras, como doíam, ela pensou ser a fonte do problema, não se esquivou, pelo contrário, médico, exames, do seu lado, tudo estava bem, era uma fonte segura, afinal, ele é que… Nunca lhe mostrou qualquer exame, escondeu-os no fundo de uma gaveta muito sua, de roupa interior, até que, certo dia, resolveu mesmo deitá-los no lixo mais próximo, entre eles nunca houve acusações nem censuras por isto, ela, ainda hoje, não sabe se ele tem consciência da sua infertilidade, talvez sim, mas é apenas uma suposição, é curioso, mais de quarenta anos a partilhar tectos e lençóis e fica tanta coisa silenciada entre um homem e uma mulher, no fundo, ambos perceberam que já bastavam as inclementes pedradas exteriores, como doíam, não era preciso, entre eles, elevar os ecos da dor, quando aterraram na metrópole, obrigados por uma súbita incerteza que se instalou em cada canto da sua, e de todos os outros, existência, nada traziam, bolsos famintos, olhares caídos, o amanhã apenas um medo, olhavam os outros regressados nas mesmas circunstâncias, e perceberam que, dos anos de África, ao menos, traziam, pelas mãos, o fruto de algo chamado amor, eles nem esse desígnio atingiram, mesmo assim, lá seguiram em frente, como não podia deixar de ser, mais de quarenta anos a partilhar tectos e lençóis e fica tanta coisa silenciada entre um homem e uma mulher, à noite, antes do sono assumir o leme do pensar, ela incessantemente revisitava o passado, e assim percebia a outra que se negara ser, ou que a vida lhe subtraíra, no fundo, todos podíamos ser outros, eu talvez não, creio que seria a mesma, esta sombra que me enegrece tanto do que sou, mesmo nas fotos, sempre um semi-sorriso, quantas vezes minha mãe (Ri-te, miúda!), e eu a distender os lábios sem clarear o pensamento, daí as coisas numa artificialidade de apenas pose, nada mais, ela insistia, mais alto (Ri-te, miúda!), tudo em vão. Antes de me deitar, nessa noite (ao certo quando foi?), senti-me asfixiar, como se tudo me oprimisse, móveis, cortinas, portas, candeeiros, ruas, pessoas… Saí para a casa de banho, de copo e escova dos dentes na mão, o ar do corredor mitigou aquela sensação, felizmente uma estava livre, entro de chofre, o copo escorrega-me, o pânico gritado de cacos recém-nascidos perpassa o meu sistema nervoso, irreflectidamente, baixo-me para os silenciar, a dado momento, corto-me num deles, só o calor escarlate me desperta essa evidência, foi no indicador direito, comprimo-o entre os lábios, assim me deixo estar, de pé, sobre o lavatório, diante daquele grande e velho espelho, não sei porquê, mas num espelho pressente-se a idade pela quantidade de olhares que já suportou, enquanto me olho, compreendo a minha respiração suavizada, como se aquela seiva me despertasse de uma letargia imemorial, de vez em quando, a única lâmpada da divisão em movimentos de sono, pela minúscula janela, sempre a encontrei aberta, o canto rouco e afirmativo do mar, curioso, quanto mais próximo, mais distante se afigura, talvez por iluminar um som de nós há muito… De repente, passos no corredor, alguém tenta esta porta, o trinco ainda resiste, dirige-se para a outra, apercebo-me de que ainda seguro o caco onde me cortei, olho o indicador, a seiva secou, aproximo uma ponta aguçada, da ruína do meu copo, do indicador sarado (ou enfermo?), passo-a, numa lentidão carinhosa, embora tímida, a pele a abrir-se, eu a olhar e a conhecer-me, afinal, eu sou isto, o meu interior a abrir-se diante de mim, sob um líquido véu escarlate, tudo como se ultimasse, a pincel, um pormenor teimoso, inspiro ao frio contacto do vidro na minha pele, segue-se-lhe aquele calor pulsante, e o sal líquido, de felicidade, precipita-se pelo meu rosto, o que os outros gritavam ser uma dor obscena, para mim, constitui a devolução de um sentido, compreendo, à vista daquele lavatório, de um branco envergonhado que se encolhe a cada gota vermelha que de mim jorra, uma outra geografia, distinta da que me rodeia, daquela casa de banho anacrónica, do segundo andar de uma humilde pensão, numa cidade costeira do Norte do país, repito o movimento, agora com uma outra ponta, mais aguçada, subsiste a lentidão, porém, mergulho um pouco mais no que sou, sinto aquele frio inexorável caminhar por mim, desde a extremidade do indicador, a redesenhar o meu mapa, dar-me a mão, abrir a porta daquela casa de banho anacrónica, do segundo andar daquela humilde pensão, numa cidade costeira do Norte do país, levar-me até à marginal, murmurar-me, numa voz segura e doce, que eu não vou precisar mais de janelas, distendo os lábios, o branco envergonhado quase se dissipou do meu horizonte, ainda aquela voz a ecoar na noite, a dizer-me que, amanhã, pelo menos, não vai haver rotinas inflexíveis, praia com cadeiras debaixo do braço, chapéus de palha, protectores solares derramados em superfícies sardentas, revistas de vidas distantes, mas de vazios similares, jogos de futebol, e mutismos obstinados… Não, doravante, tudo será diferente. É apenas uma questão de geografia e sentido. Não me lembro de quanto tempo ali permaneci, de pé, sobre o lavatório. Risos emudecidos e lágrimas cantadas alternaram-se sob o olhar indulgente daquele espelho, como é verdade, num espelho pressente-se a idade pela quantidade de olhares que já suportou, torna-se inviável explicitar a alguém que é possível tanger a textura dos sonhos, que naufraguei na ilha do meu eu, e o mundo, agora, é um lugar longe… Acho que regressei ao meu quarto apenas quando um canto matinal me despertou. Percebi, pela janela sempre aberta daquela divisão, que a vida, lá fora, recomeçava. Estava deitada no soalho frio, o indicador enrolado em papel higiénico, não me lembro de o fazer, à vista deste, amarrotado à volta do dedo, percepciona-se a batalha nocturna entre o escarlate, que se procurou libertar, e o branco, que o tentou reprimir, levantei-me no possível da fraqueza, tentei devolver o branco à superfície das coisas, apaguei a trémula luz, e saí. Só bem mais tarde, descobri que meu irmão buscava o mesmo, embora seguisse por outros trilhos. Ao pequeno-almoço, de novo, partilhado, à mesma mesa, por quatro estranhos, entre uma chávena de café com leite, uma sandes de manteiga ou doce, surgiu a questão do meu dedo. Julgo que tenha sido meu pai. Desculpei-me com a porta e escondi o rosto com a chávena. Enquanto bebia, senti o olhar do meu irmão, nada lhe era impeditivo, sim, compreendeu que eu embarcara para a ilha do eu, tal como ele já o fizera no ontem de há muito. No decorrer da manhã seguinte, o destino cumpriu-se, alguém caíra, e passei a ter companhia. Era ligeiramente mais velha que eu, o entra e sai do quarto acentuou-se, mesmo fora do horário de visitas, há quem sempre consiga fazer as suas regras. É curioso, todos somos uma história, mas há lugares em que isso assume a pertinência de um rosto. Este é um desses lugares. Afinal, só ali chega quem caiu. E todos querem saber que passo falhou para… Parece que a história dela circulava na imprensa. Discoteca, sexta-feira à noite, no regresso, já de madrugada, tudo num excesso, copos que se tornaram transparentes, barulho, fumo, velocidade, vozes incessantes no carro, curvas, cansaço, foi encontrado no fundo de uma ravina, das cinco ocupantes só ela respirava, os exames ao sangue corroboraram os excessos, sobretudo para quem tinha de realizar tantas curvas, as autoridades, já vigilantes, apenas aguardam que ela se levante, o choque inicial das outras famílias a ceder lugar à revolta, troquei as primeiras frases com ela para povoar aquele silêncio asfixiante que se instalava na divisão após a partida dos familiares, foi dela a iniciativa, a perguntar-me se precisava de alguma coisa, talvez por já se erguer, de momento, isso era-me vedado, pela fraqueza, pela omnipresença do soro, quem sabe por outros receios… Disse-lhe que não, e agradeci, mas cumprira-se o objectivo: as nossas vozes conheceram-se. Ela tinha mais três ou quatro anos que eu, já andava na faculdade, economia, se bem que, neste momento, se ocupasse de outras contas, de quatro vozes que se silenciaram, para sempre, no interior do seu carro, tinha, pelo que percebia, apesar da nossa horizontalidade, mais ou menos, a minha estatura, era para o louro, talvez com a ajuda de colorantes, à primeira vista, não se lhe percebia o porquê de ali estar, apenas, após os primeiros passos, lhe compreendi o coxear, e a face direita ligeiramente esfacelada, li-lhe gestos ansiosos, é natural, atendendo ao contexto, no entanto, não me passou despercebida uma certa teatralização, aquela estranha urgência que muitos têm de transparecer luz e bonança, mesmo que se movam entre despojos, somos estranhos para nós mesmos, como, então, podemos reclamar a compreensão alheia? Só percebemos a noite, quando o mundo uma sombra imensa, por aqui, dores em forma de voz, um lamento, de vez em quando, caminha penosamente pelo corredor, vindo de outros quartos, um respeito, feito da matéria do silêncio, segue-se àquela caminhada, como se um imperativo ético, há normas que só se apreendem na vivência, na experienciação, na verdade singular da dor. Já distinguia o rosto de duas ou três enfermeiras. Sempre a diferença neste auxílio da destrinça. A que agora entra no quarto não é muito alta, apesar da minha situação de horizontalidade percebo-o, não sei bem porquê, já que os outros tão para além da infantilidade deste meu estádio, percebo-lhe as lonjuras das raízes pelo rosto, mas não pelos modos, e ainda menos pela dicção, cumpria com os procedimentos da hora nocturna, temperatura, pressão arterial, após correr a cortina, é curioso, estas práticas não exortam à privacidade, mas ela nem vacilava, cada gesto seu pertencia-nos, o seu profissionalismo transmitia-nos a noção de singularidade, e como isso era reconfortante num lugar de múltiplas vozes, apesar de uma só dor… As questões que me colocava não iam além da minha circunstância, contudo, percebia-lhe uma censura sublimada nos gestos e na voz, sim, o leito de um quarto asséptico é um bom lugar para se aguçar a visão, resolvi erguer o olhar, antes mesmo de o fazer, ela já em sorrisos, como se o desprezo ornamentado em candura, antes de abrir a cortina, virou-se para mim e apenas uma frase O problema é que a menina sabe que vale muito mais do que isso… Na altura, a frase pareceu-me de circunstância, talvez por eu não estar preparada. Há frases que requerem a luz do tempo. Esta foi uma delas. Não sei bem de onde esta ideia me chegou, mas sempre me senti eivada de tragédia. Ainda de tarde, quando meu pai, sobre a cabeceira da cama, a sufocar emoções, eu a seguir-lhe as pisadas, a compreender o esforço daquele equilíbrio, por fim, a desistir, a sentar-me na berma desse caminho, não, meu pai, por aí não o vou seguir, sabe, Sou eivada de tragédia, como é verdade, nunca me ri como os outros, em verdade, nunca compreendi os passos daqueles que me rodeavam, sempre me senti mais velha, como se ouvisse os doces murmúrios das sombras, e, então sim, sentada na discrição de um canto, reiniciava a desconstrução das ilusões vendidas no mundo deles. No fundo, sempre senti um cansaço de tudo, apesar de lhe desconhecer a génese, ainda me lembro, uma manhã de sol, no recreio da escola, teria os meus seis ou sete anos, as minhas colegas sempre com aquele elástico, entrava no jogo apenas para lhes esconder a minha estranheza, os rapazes com a bola, um deles, no entanto, sempre que possível, olhava-me, eu retribuía, até lhe perceber vazio, não, não desejo, para mim, Verões em praias a Norte, sestas alternadas com fugazes instantes de sabor a ontem, desejo-me a vida, sob que forma for, mesmo transfigurada numa frieza aguçada metálica, que se limita a redesenhar a geografia do meu ser. Quem sabe se, certo dia, ele a entrar em casa, com as miúdas, eu a subir uma colina, a distância a aumentar, a aumentar, incessantemente, as suas vozes só um longínquo eco, frases entrecortadas com soluços (Meu Deus! Meu Deus! O que foste fazer?), talvez uma das miúdas à porta do quarto, a assistir ao desaguar do meu ser, espero que não, sei que não me irão perdoar, pelo menos tão cedo, um dia, bem para a frente, aos primeiros grisalhos, é quando as desilusões começam a desequilibrar, para o seu lado, o saldo de uma vida, iniciar-se-á o processo de compreensão, quanto a ti, suprimimos, por uns tempos, as nossas solidões, contudo, a minha regressava, creio que, de facto, nunca partiu, sempre aqui esteve comigo, acompanhou-me em cada passo, tenho de ir, ouço minha avó a chamar-me, está ali, um pouco mais acima, talvez precise de ajuda com a lenha, tenho mesmo de ir, Adeus, perdoa-me, se conseguires… Não aguentava mais saber o dia a seguir… O seu rosto turvou-se-me pelo sentir do olhar, tanto chovia em mim, senti-lhe o calor, quando me abraçou, pareceu-me o abraço de uma vida, mas já era tarde, estava de saída, aqueceu-me ligeiramente, embora eu já tão fria, não tenho a certeza, quero acreditar que sim, acho que consegui pronunciar Adeus… A chave caiu com estrépito, como sempre sucedia, na mesa de entrada, talvez por isso, ela se soubesse em casa. Descalçou-se. Percorreu o corredor, sempre na sombra, manhã ou tarde, e deitou-se, de costas, na cama. Deixou-se estar. Olhos para o pensar não pensante. De repente, sem saber porquê, percebeu que nunca fizera tal coisa, chegar a casa, a meio da tarde, e ir assim deitar-se. Gostou daquele sabor a novo. Deixou-se estar, olhos fechados, a ouvir o possível do mundo àquela hora, vozes aqui e ali, uma televisão, não sabe onde, se no andar de cima, se em baixo, a derramar vazios, lá fora, a cadência incessante do trânsito, como se um rio de outros caudais, um cão na distância, pareceu-lhe, não sabe porquê, estar na margem oposta da existência, apesar disso, com um olhar sem estranheza, ou talvez não, de súbito, o telefone de casa, ela a irritar-se com aquela inesperada intromissão, contudo, nem ousa mover-se, quem a poderia ali saber, àquela hora, felizmente não insiste por muito, sempre as amarras do real, lentamente, uma imagem foi germinando por si, agradou-lhe, pensou em cumpri-la, há tanto que não caminhava por essas paragens, o cão persiste na distância, a imagem a ganhar-lhe terreno ao pensamento, por outras palavras, a ideia ganha cor no pensar, e há tanto que não caminha por essas paragens, como se regressasse a um doce lugar do ontem, no armário da casa-de-banho, na terceira gaveta do lado esquerdo, envolto em plástico, está o objecto, uma vez, ele, sem que ela saiba como, deu com aquilo, ainda a questionou, ela disse que era para os calos, felizmente que ele nunca teve inclinação para inquiridor, logo a atenção se lhe centrou num outro circunstancial, várias vezes, durante a noite, já ele dormia profundamente, ela se sentiu tentada, mas algo, não sabe bem o quê, a reteve, não se pode falar de uma crise de consciência, não, nada disso, talvez a verdade caminhe mais pelo receio de por aí se perder de vez, no entanto, a esta hora da tarde ninguém dorme profundamente seu lado, antes de ele regressar com as miúdas, ela ainda dispõe de cerca de três horas, num repente levanta-se, já de pé, sente uma ligeira tontura, tal a rapidez com que transitou de um estar horizontal para um estar vertical, surpreendeu-se pelo facto de o gesto – o erguer-se – quase anteceder a decisão, deixou os labirintos do pensar assim que se apercebeu de que abria a terceira gaveta do lado esquerdo, do armário da casa-de-banho. Retirou o objecto, envolto em plástico, abriu a gaveta das toalhas e pegou numa, antes de se deitar, despiu a camisa. Deitada de lado, com o pulso sobre uma toalha, deteve-se, por momentos, a olhá-lo, ali estava desenhada toda uma geografia que a conduziu até este instante, sem aquele mapa não teria encontrado o caminho para ali chegar, ter-lhe-ia sido impossível, sabe-o, mas também conhece a impossibilidade de comunicar tal singularidade, seria como dialogar de uma margem demasiado distante, ou comunicar com alguém na ininteligibilidade de um outro idioma e desaguar na exiguidade de gestos sempre singulares que apenas antecedem a derrota, simbolizada num encolher de ombros, antes de mais, dobra a toalha cuidadosamente, esquecera-se de o fazer, não quer pistas no lençol, de novo, deitada de lado, agora sim, percorre com a ponta fria e metálica do objecto um dos percursos ali desenhados, fecha os olhos, aquela súbita frieza na pele fá-la entreabrir os lábios de um quase prazer, memórias acordam em si, talvez despertadas pela familiaridade de há muito daquele frio, talvez daquela extremidade aguçada, chega a um cruzamento, envereda por outro caminho? Inaugura um novo? Deixa-se estar, pensante, o mundo já um lugar longe, primeiro, muito lentamente, força a ponta metálica de encontro à pele, ainda se denota alguma resistência, isto agrada-lhe, nunca gostou de gratuitidade na vida, até que um calor nascido de si, corre para o mundo, pintando-o de escarlate, agora, ela já nem passado, nem futuro, o presente sempre uma ilusão, não se pode dizer que viaje, está algures numa distância sentida das coisas, onde tudo, afinal, se compreende, como em pequenina, quando, pela mão da avó, via a aldeia do monte sobranceiro, dali tudo tinha um sentido, uma harmonia descia sobre o mundo, espantava-se por a velha se centrar apenas em apanhar lenha, curvada para a terra, talvez se tivesse cansado de tanto olhar a sua aldeia, quem sabe, ou talvez nunca se tenha colocado estas questões, não quis acreditar nisto, uma tarde, desciam o monte carregadas de lenha, e a velha povoou o silêncio, como se relembrasse algo para si mesma, Até aos dez, custa a passar. Os vinte chegam mais depressa do que esperas, mas ainda lhes sentes o sabor… Depois, parece que o tempo desacelera, como se precisasse de um embalo para atingir os trinta. Aqui chegados, é muito curioso, porque te deitas a festejar os trinta e acordas a saber que tens quarenta. Sim, o tempo é um viajante infatigável, a partir daqui, minha querida, é um constante galope, e o que fazemos para não nos perdermos? Pois é, agarramo-nos ao que pudermos, por isso, é que a maioria escolhe o que mais perdurou: a meninice. Sempre que lá estivermos em cima, demora-te quanto quiseres a olhar a aldeia, é bom que guardes essa imagem… Talvez um dia, precises de regressar. Roda o objecto, agora é o gume que lhe rasga a pele, nada de novo, era este o seu sistema, perfurava a carne com a ponta, depois, rodava o objecto, e redesenhava um novo mapa em si, sentia-se bem, ao ponto de sempre lhe caírem lágrimas simultâneas à nascente escarlate do pulso, umas provinham da alma, outras do ser… Todas de uma dor. Deixou-se adormecer. Foi uma dor quente, como se uma queimadura, a despertá-la. Estava revigorada. Feliz, não, mas sabia, pelo menos, durante uns tempos, que não precisaria de enveredar por certos trilhos. Ainda deitada, certificou-se da ligadura que fizera um pouco antes de adormecer, apesar de aqui e ali umas ameaças de escarlate, cumprira o seu propósito de estancar o sangue. Deixou-a estar. Levantou-se, ele e as miúdas não tardariam muito. Pôs a toalha para lavar. E, de seguida, assegurou-se de limpar quaisquer resquícios da sua circunstância de há pouco… Por fim, deteve-se diante de um espelho. Não se penteou, não se compôs, nada, limitou-se a olhar para o que aquele rectângulo deitado devolvia de si, quando nos olhamos a um espelho, vemo-nos sempre com a cor do nosso pensamento de então, e, nesse momento, ela não pensava em nada, via-se, e ver não é pensar, tal como pegar num objecto não é dar-lhe uso, lentamente começou a analisar-se, contudo, em verdade, nunca gostou de se olhar, talvez por sempre encontrar algo que a desagradasse, desde uma madeixa fora do sítio, a uma incómoda borbulha que não lhe libertava a atenção, uma palidez excessiva, o desagrado do penteado, achar-se anafada, outras ocasiões, notou-se macilenta, por ali, a harmonia nunca encontrou a porta de entrada, hoje, não sabe porquê, via-se com todas as idades, como se não se estranhasse, mas se compreendesse, num estar muito para além do espanto de se descobrir, não se sorriu, de certa forma, nutriu, pela imagem, compaixão, por há pouco, pelo ontem, pela toalha escondida à pressa, pela mentira, por todo um mapa tortuoso gravado em cada pulso, pelo rosto, reflectido no espelho, que se começa a cobrir de entardecer, pelas filhas que chegam dali a pouco, por ele, que nunca questionou a obsessão por pulseiras, ou talvez ainda não tenha encontrado as palavras, uma formulação adequada àquelas geografias de sentires demasiados, deixou-se ainda por ali estar, apesar da luz oblíqua da tarde finda a entrar pela janela, a lâmpada da casa-de-banho acesa, antes de virar costas, um último olhar àquela estranha que a olhava, apagou a luz, saiu, só uma palavra ecoou por si, enquanto uma dor lhe subia do pulso esquerdo, como se uma queimadura de há minutos, a palavra desolação… Ele chegou com as miúdas perto da hora de jantar, ela, sentada num banco, na marquise da cozinha, de volta da roupa para lavar, as miúdas cumprimentaram-na da entrada, ela retribuiu, tal como a ele, não se demorou muito com os cumprimentos, logo recentrou a sua atenção na roupa, se lhe perguntassem em que momento as coisas assim se encaminharam, no fundo, talvez tivesse uma ideia. Há questões que, assim que se levantam no nosso caminho, parece que se tornam em inseparáveis companheiros de viagem, assim foi, numa certa manhã de Sábado, quando após o cumprimento da intimidade de uma vida a dois, para ela, e talvez para ele, se tratasse, naquela altura das suas vidas, de uma mera necessidade, como se de um aprazível relaxamento, levantava ele os estores, e ela, ainda deitada, observava-o numa distância de primeira vez, já não se sentia atraída, nem resquícios daquele carinho, de um certo companheirismo, de que tanto ouvira falar, nada, após levantar o estore, dirigiu-se para a casa-de-banho, ela continuou a segui-lo com o olhar, não se pode dizer que fosse gordo, havia, nele, uma flagrante flacidez que traduzia, na perfeição, a vida do hoje, uma constante troca de cadeiras, do pequeno-almoço na cozinha para o carro, após um absurdo de tempo em filas e buzinadelas, segue-se a manhã no escritório, sentado à secretária, a pausa para almoço, se assim se pode chamar àquela sandes de ovo com uma verdura quase bolorenta, engolida a custo, sentado ao balcão da cafetaria mais próxima, regresso ao escritório para o período da tarde, de novo, sentado à secretária, o carro, outro tempo absurdo em filas e buzinadelas, casa, jantar, o sofá, quase adormece, desperta um pouco, a boçalidade na televisão engolida como se por ali um qualquer sentido da existência, por fim, a cama, de cadeira em cadeira até ao deitar, assim se vive o hoje, achou que tinha mais sinais, sobretudo nas costas, a sua palidez inata ajudava a este tipo de deduções, nunca foi atlético, nem impetuoso, longe disso, mas percebia-se-lhe que os ombros descaíam, cada vez mais, para a frente, as pernas descarnadas, num estranho efeito global de galináceo, de facto, só a cintura se desenvolvera com os anos, após o autoclismo, percebeu o chuveiro, deitou-se de costas e fechou os olhos, gostava de assim estar, acalmava-a, no quarto ao lado, as miúdas ainda dormiam, regra geral, nessas manhãs de fim-de-semana, acordavam-se, ele abraçava-a, procurava-lhe os lábios, e o resto vinha com o respirar da natureza, ela reflectia nisto e compreendia há quanto o coração se afastara deste palco… De facto, tudo se resumia ao cumprimento de uma necessidade. Apenas e só. De repente, a campainha. Ela, logo, irritada, afinal, se ele tinha a chave porquê tocar, ou talvez fosse uma das miúdas, na pressa de se anunciar, na precipitação da idade, apesar de ela já tanto as alertar, encaminha-se para a porta enquanto a vontade lhe foge para as costas, abre-a, assim que a vêem, o cumprimento, um beijo tímido na face da mãe, primeiro, a mais nova, andaria pelos seis, de seguida, a mais velha, tinha feito oito há uns meses, por fim, ele, carregado de sacos, apenas um Olá, nada mais, nem esboça um gesto de ajuda com os sacos, em verdade, a dor também a impedia, o jantar, quase sempre uma refeição leve, dominado por questões escolares das miúdas, ele muito interventivo, as miúdas correspondiam com entusiasmo ao seu interesse pela temática, ela observava, nas faldas de tais questões, como se numa incompreensão inata por tais contextos, por outras palavras, nem se lhe deparava um problema de linguagem, era mais de direcção do olhar, no fundo, ela debruçava-se sobre outras paisagens, é curioso, estranhava-os, porém, do lado deles, não havia qualquer sentimento dessa ordem, pelo contrário, havia uma aceitação imbuída de esperança, sempre aquela mão, pousada na fronte, a permitir que o olhar deambule por paisagens tão suas, talvez numa aldeia contemplada de um promontório, no entanto, ela já nem passado, nem futuro, e sabe, há muito, que o presente sempre uma ilusão, daí o seu permanente desencontro… Nem por uma vez, durante toda a refeição, questionou o que quer que fosse sobre o dia de escola das filhas, ouvia e observava-os, ele, tinha de concordar, representava bem o papel que se atribuíra, o paradigma de pai, atencioso, até em excesso, todo ouvidos para as observações mais comezinhas das criancinhas, por diversas vezes, a faca pousada, para a mão suportar o queixo e as consequentes anuências do rosto que acompanhavam os relatos infantis, como se, desse modo, as encorajasse ao verbo, ela a pensar em que momento é que um filho conhece o pai (Será em adulto? Ou ao primeiro não? Talvez quando envelheça? Ou na saudade de uma mão já não guiar a sua?), ela sabe onde ele passou o final de tarde, no mesmo lugar desde há uns seis meses, nunca lhe disse, é melhor assim, nem ciúme sente, em verdade, o único sentimento que lhe suscita é um certo alívio, pela distância, pelo tempo concedido, acima de tudo, pelo silêncio, soube-o desde o primeiro telefonema fora de horas, o resto da história foi simples, afinal, há sempre alguém à procura de um bom ouvinte. Ou talvez tudo seja uma efabulação sua, que é o mais provável, para se justificar na senda desta infelicidade, afinal, uma mente desorganizada tende a obscurecer o pensar. Ele, neste momento, trabalha no ramo imobiliário, ainda teve direito a uma ligeira indemnização quando subtraíram o seu posto de trabalho nos correios, de facto, o seu carácter prático fê-lo olhar, desde muito cedo, o trabalho de frente, e, ressalve-se, é daqueles que tem um orgulho genuíno no seu trabalho, como se cada gesto, palavra, olhar, trocado com um cliente, obedecesse a um minucioso estudo prévio, de facto, dizia muitas vezes, Na vida, a representação é tudo, como ela o percebia, como ela o percebia, neste ponto, e em muitos outros, a distância era tanta, sempre achou curioso o facto de, não obstante ele vender ou alugar casas, eles viverem num exíguo apartamento de três assoalhadas, com mais de três décadas, que alugaram pouco antes do sempre adiado casamento, a única casa-de-banho com um permanente odor a humidade, do bidé nem água quente, a tampa da sanita lascada num dos lados, na cozinha haver móveis com portas que teimam em ficar abertas, por muita força que se lhes aplique, o corredor, dia ou noite, numa sombra constante, a sala, um pequeno quadrado preenchido com uma mesa, quatro cadeiras, um sofá e a inevitável televisão, e já tinham de se acautelar para não tropeçarem, daí que a varanda, por insistência dele, logo convertida em marquise, ela ainda se opôs, mas, nestes casos, o argumento da necessidade de espaço é fulminante, e cinco metros quadrados, neste contexto, bem que podem constituir um oásis revitalizante, a vista, de qualquer uma das divisões, como é expectável em qualquer subúrbio, é para o prédio em frente, onde outras vidas se desenrolam diante dos seus olhos, sem nunca haver tempo para se olharem e se perguntarem, ao menos, pelo nome, após o jantar, ela, como era seu hábito, na escuridão da cozinha, cigarro aceso, olhava as vidas em frente, percebia-lhes os passos pelas divisões iluminadas, assim ficava durante o necessário, acalmava-a projectar-se naquelas vidas, porque tristemente nunca saímos de nós, ela já o sabia, aprendera-o muito cedo, olhar o mundo da janela do eu (quantas vezes dali tentou sair?), lançar-se pelos caminhos da terra, correr, correr, desenfreadamente, chegar a um lugar novo, aprazível, primeiro, tempo de recuperar o fôlego, de mãos nos joelhos, a respiração descompassada, esperar, esperar mais um pouco, até que se harmonize, por fim, erguer-se, a paisagem alterara-se, até a luz diferente, isso agrada-lhe, a respiração agora a serenar, decide ir ao encontro das coisas, lentamente, algo se interpõe, numa lenta materialização, de novo, diante de si, a velha janela do seu eu… Quantas vezes isto se repetiu? As necessárias, até ela compreender que é simultaneamente sua prisioneira e sua carcereira, ponto de partida e ponto de chegada, actriz do seu drama e espectadora, ideia e forma, pensante e pensada, porém, a questão e nunca a resposta… Após o jantar, como é seu hábito, a cozinha já em sombras, ombro encostado ao frio de um azulejo, cigarro oscilante entre a boca e a anca, olha vidas, aquelas que se desenrolam no prédio em frente, de tanto as ver, começa a familiarizar-se com alguns rostos, o casal idoso do segundo andar, denotava-se, de onde estava, o império de silêncio que reinava naquele lar, percebia-se a televisão, contudo, nem por uma vez viu aquele ecrã ligado, talvez por só assistir ao tempo da refeição, ora ele levantava-se e a servia, ora ela em gestos de uma ternura contida a atendê-lo, assim se revezavam, quem vive o Inverno da vida compreende, de uma outra forma, a importância de cada gesto de calor, achava curioso que tão pouco falassem, talvez tudo já estivesse dito, ou talvez falassem numa outra linguagem, achava mais plausível esta possibilidade, sem dúvida, noutro andar, o terceiro, percebia um casal com um filho, no entanto, havia um quarto que nunca se iluminava, pela decoração, perceptível pela luz do dia, deduzia-se que de um outro filho, por vezes, sem nunca o iluminar, durante a noite, a mulher ali desaguava, curiosamente, também se encostava à soleira da porta, o corpo recortado pela luz proveniente do corredor atrás de si, a olhar os objectos, na secretária, nas prateleiras, mas, acima de tudo, continha aquele olhar soluçado perante a devolução do vazio, ela, de onde estava, da cozinha igualmente em sombras, ombro encostado ao frio de um azulejo, cigarro oscilante entre a boca e a anca, nunca percebeu a causa daquela divisão por iluminar, nem que idade teria o filho desde que a luz se deixou de acender, porém, é diário o desaguar daquela mulher ao vazio silenciado agora por iluminar, nunca por ali viu o homem (marido?), nem o outro miúdo, assim que a mulher virava costas, talvez num cansaço de conter olhares soluçados, fechava, num gesto contrariado, e com uma lentidão denunciada, a porta atrás de si. Era indesmentível a curiosidade nela suscitada pelo desaparecido habitante daquele quarto, colocava-se questões atrás de questões seguidas de possíveis respostas. Se tivesse outro feitio, talvez abordasse uma vizinha acerca daquela divisão por iluminar, não havia de faltar teorias e quem evidentemente detivesse a verdade dos factos, no entanto, ela não tem esse outro feitio… Preferia silenciar-se e observar, enquanto pensava no tanto de incomunicável que há em cada um, apesar da linguagem, dos afectos, do olhar, do gesto, há tanto em nós que permanece algures entre o silêncio do pensar e do sentir, e o tempo, esse rio incessante, apenas contribui para o avolumar dessa incomunicabilidade. Para a compreendermos, esta afigura-se uma teoria possível, a da insularidade, talvez ela se visse como uma ilha, com a sua própria geografia, fauna, flora, clima, daí a estranheza sempre que se deparava com um outro, ou talvez não fosse bem assim… Se nos detivéssemos, por fugazes instantes, a percorrer-lhe o rosto, enquanto ela olhava, do outro lado da rua, no terceiro andar, o desaguar daquela mulher ao vazio silenciado sempre por iluminar, perceber-lhe-íamos o desamparo, tal o tropel de emoções que a dominavam, por outras palavras, o incomunicável sempre procura a luz de um Sentido, e, naquele rosto, a dor olhada era também a sua dor, daí o recato da sombra, a carência de um apoio, na forma do frio de um azulejo ou de um cigarro oscilante entre a boca e a anca, por fim, o terror da consciência de um vazio… Quando o cigarro já um resto de cinza fria, sabia que tinha de regressar às divisões iluminadas de sua casa, no prédio em frente, a esta hora, ou estores corridos ou divisões sempre na escuridão, apesar da característica diária deste momento, para ela, era sempre lancinante ter de enfrentar o rosto dos seus, como se tivéssemos algo só nosso neste mundo, nem nós nos pertencemos, pensava ela, se assim fosse, o pensar seria um servo obediente, contudo, muito pelo contrário, o pensar caminha sempre à nossa frente, depara-se, na sala, com o quadro habitual de um dia de semana, ou de outro qualquer, há muito que, naquela casa, semana e descanso não se distinguem, ele sentado diante da televisão, quase adormecido, uma imagem tão cansada para si, por vezes, pensava nunca ter partido, como se fosse uma laje de um qualquer porto deste mundo, onde chovem dor e saudades de igual forma, as filhas, com um jogo, deitadas no chão, absorvidas como se nem amanhã, naquele estado só possível na meninice, nem se apercebem da sua entrada, no fundo, ela não se importa, dirige-se para o seu lugar, as coisas são assim, é da sua natureza, todos acabamos por ter um lugar, senta-se, ele nem entreabre um olho, mantém-se impassível, a televisão continua a debitar uma qualquer boçalidade, nada de novo, vivemos a era da estupidez, que estranhos desígnios nos conduziram a um tempo em que se valora o mais grosseiro, o mais estupidificante, será o prenúncio da morte da razão? Ela, agora, sentada, por escassos momentos, com a televisão, de facto, há ali qualquer coisa de hipnotizante, os olhos como viajantes sedentos daquela fonte iluminada, contudo, rapidamente se reorganiza, há muito que se distanciara da realidade que os outos tanto insistem em nos oferecer, como se de uma fatalidade se tratasse, é curioso, tantos caminhos no mundo e tudo a desaguar numa só perspectiva, não, ela virou costas a tudo isso numa noite esquecida de há tanto, as filhas ainda com um qualquer jogo, deitadas no chão, absorvidas como se nem amanhã, naquele estado só possível na meninice, cruza os braços, inclina-se para elas, com o rosto sorridente, por fugazes momentos, vê-se a estender a mão para lhes acariciar os cabelos, a imagem capitula simultânea à ideia, levanta-se, as filhas com o jogo, nem a olham, ele continua sentado diante da televisão, quase adormecido, como é óbvio, também não a olha… Regressa ao quarto. Antes de abandonar a sala, ainda pensou em dizer às filhas que já eram horas de se deitarem, o pensar é sempre plural em relação ao gesto, nada fez, limitou-se a sair, deixou tudo atrás de si incólume, como se nunca ali tivesse estado, no fundo, como se não existisse. Acontecia-lhe, muitas vezes, olhar o presente de uma varanda do passado, e pensar que o serão do hoje não diverge tanto assim dos serões idos em casa dos pais, o apartamento nos subúrbios, a vista para as marquises em frente, a rua semeada de carros, os barulhos vizinhos numa proximidade demasiado familiar, a saudade de horizonte que, como um veneno, enfraquece o sonho, ela no quarto na companhia de música, ou com um bloco de notas e uma caneta a desenhar ruínas de sonhos, sem saber um porquê, mas algo lhe ditava os passos da mão, se ao menos o bloco ainda por perto, mas nem isso, uma noite olhou-o e, num gesto que apenas é um grito calado por amor, aproximou-o de um isqueiro, abriu a janela, e deixou-o cair, numa lentidão encantatória, para o passeio, de onde estava, ficou a ver o papel, agora iluminado em tons de laranja, amarelo, azuis, a contorcer-se numa dor muito sua, até nada restar do que foi, a não ser a própria ruína. Na sala, a omnipresente televisão, os pais, o sofá, volta e meia, a vizinha da frente, quando o marido, polícia, de plantão, ela, coitada, não gostava de estar sozinha, muito menos de ver a telenovela sem ninguém para lhe responder aos comentários, o irmão somente uma ausência em crescendo, dizia aos pais, após o jantar, Vou só até ali ao café. Até já! A mãe logo, se dia de semana, Não te demores que amanhã é dia de escola, como resposta apenas o baque da porta e o eco apressado de degraus descidos à pressa, o pai nem isso, recostado numa ponta do sofá, embalado por aquele sotaque de outras paragens, que a televisão debitava incessantemente durante quase todo o serão. O irmão a tornar-se, com o tempo, um espaço por ocupar, à mesa, no quarto escurecido por um estore de costas voltadas para o dia, no carro, por fim, nas suas vidas, mal se lhe via o rosto, sempre velado por um livro, trocara a família pela tribo dos livros, talvez nessas paragens encontrasse compreensão, como se, num conjunto rectangular de folhas, estivesse a possibilidade de alguém nos ouvir… Há quem diga que sim. E ela, tal como agora, consigo mesma, lá fora, o mundo já uma noite imensa, um silêncio sobre as coisas que somente desperta gritos adormecidos. Fingia dormir, desde há tanto, talvez demasiado, sempre que ele entrava no quarto, ela, de costas voltadas, para o lugar vazio e frio que ele vinha ocupar, viajava ao sabor do seu pensar, o único possível, quando lhe percebia os passos, mantinha-se impassível, fechava os olhos, ou mantinha-os abertos, ele, regra geral, nunca acendia a luz, e revelava passos respeitosos, ela, por seu lado, nunca soube se o seu fingido sono fora percebido, cada um no espaço que o existir lhe destina, e aí edifica as suas muralhas face ao restante, mesmo que partilhe o lugar de onde se levantam os sonhos. Nessa noite, em particular, e não sabe bem o porquê, ela gostou que ele não se tivesse demorado muito. Chegou cerca de quarenta minutos depois. Talvez a visão, daquele quarto sempre por iluminar, no prédio em frente, a tenha abalado. É possível. Hoje, ela grata por aquele calor sentido nas costas. Basta-lhe sabê-lo ali. Não se pense que ele se lhe tornou indiferente. Nada disso! Tudo é sempre uma outra coisa. Conheceram-se através de amigos comuns há pouco mais de uma década. Ela andava em Belas-Artes, como podia andar noutra coisa qualquer, perdera-se muito cedo da vida, ou talvez nunca tenha chegado a entrar na carruagem do aqui, ele trabalhava nos correios, fora obrigado a apanhar com rapidez o comboio da vida, de facto, a fome acelera a compreensão das coisas, talvez o melhor estímulo para a ansiada maturidade, se eu olhava a vida, ele era um caminhante, olhar, caminhar, páginas opostas talvez de uma mesma folha, a última memória do pai data do seu oitavo aniversário, não tanto a imagem do pai, só reteve, como sempre acontece, a impressão, que mais não é que um todo resultante de inúmeras partes, no seu caso, uma voz, alegre, que se sobrepunha às restantes, aquele jeito sôfrego de lhe pegar ao colo, como se quisesse que ele crescesse rápido, a insistente mão pelos cabelos, que o chateava, por constantemente o despentear, por fim, a pistola, de fulminantes, prateada, que tanto o alegrou, o presente favorito do seu oitavo aniversário, talvez da sua meninice, muito brincou com aquela pistola, também foi o derradeiro presente do pai, e a memória da última vez que o viu, disseram, depois, que havia emigrado para a Venezuela, lá por casa não se falava nisso, certa vez, ouviu a mãe dizer a uma vizinha, Não me leve a mal, mas não comento ausentes, teria ele uns dez anos, contudo, percebeu perfeitamente de quem falava a mãe, é curioso, há várias velocidades para crescermos, mas é sempre a vida a escolher… Não se lembra por quanto, porém, antes de adormecer, ouvia, proveniente do quarto da mãe, uma dor chorada, nada o podia ferir mais, parecia-lhe ser uma dor incurável, o irmão, dois anos mais novo, aquém destas evidências, já dormia há muito, simultaneamente, ele aprendia o mundo enquanto dor. Certa tarde, a mãe regressou mais cedo do trabalho, era recepcionista num consultório dentário, ele e o irmão brincavam na rua com os miúdos vizinhos, entrou e saiu várias vezes do prédio. Nessa noite, perceberam que a fotografia do pai fora subtraída lá de casa, da mesa-de-cabeceira da mãe, passando pela camilha do corredor, até ao armário de vidro da sala de jantar. Nem vestígios. Como se a sua existência, pelo menos daquele mundo, tivesse sido apagada. Nem uma palavra foi dita sobre o sucedido. Sempre que o seu olhar o traía, derramando-se sobre um espaço onde, outrora, pontificava uma fotografia do pai, corrigia, de imediato, a direcção do olhar, e aguardava que o pensamento lhe seguisse os passos. Com o tempo, perceberia esta impossibilidade. Aos fins-de-semana, a mãe à volta do fogão, ouviram-na, diversas vezes, proclamar bem alto Aos meus filhos, não há-de faltar o essencial, e foi verdade, nunca lhes faltou comida na mesa, um tecto sobre as cabeças, roupa para o frio, e sapatos nos pés, daí que aproveitasse, todo o tempo livre, a fazer bolos para fora, começou com queques de manteiga, ao princípio apenas para a vizinhança, depois derivou para queijadas de leite, que foram igualmente bem acolhidas, ele, no que podia, ajudava-a, passava longas horas, por vezes noite adentro, sobretudo de Sábado para Domingo, com ela na cozinha, cumprindo ordens, Deita-me, ali, um litro de leite; Passa-me a colher de pau; Chega-me a manteiga; Despeja-me, naquela travessa, meio quilo de açúcar; o estado frenético em que a mãe se encontrava não lhe passou despercebido, como se toda aquela agitação servisse para não relembrar algo, no fundo, talvez lhe desviasse a direcção do sentir da única forma que foi possível, e, numa prece muito sua, suplicava que o pensar lhe seguisse os passos. Assim se conseguiu harmonizar o aconchego do estômago e cumprir com as impreteríveis exigências mensais que aportam sob a forma de envelopes. Com o tempo, o seu carácter prático começou a distanciá-lo da escola, sempre a velha questão, há várias velocidades para crescermos, mas é sempre a vida a escolher, a mãe percebeu-lhe a distância dos livros, assim sendo, ficou encarregado dos bolos, pelo menos, de Sábado para Domingo, a confecção já não se escondia das suas mãos, trazer o irmão da escola também era uma competência sua, por vezes, as compras, algumas vizinhas, no ócio da tarde, entre o fecha e não fecha a porta, mais uma palavra, outra que se recata, comentava-se que Aquele miúdo nem tempo tem para brincar… Não acha, vizinha? O que me diz disto? Em certas ocasiões, para se alimentar uma conversa, evitar que a porta se feche já, e olhemos o espelho do nosso vazio, verbalizamos as suposições mais recônditas que nos habitam, mesmo que se chamem, apenas, desconfianças, Sabe, nem sei como lhe pegar… É tão aborrecido que… Bom, aqui vai, mas, por favor, pela sua saúde, não comente com ninguém. Ouvi dizer que ela tem um, bom, chamemos-lhe ”namorado”. Dizem que já lhe fazia a corte ainda o marido por cá. É uma coisa antiga. Sim, um dos dentistas lá do consultório onde ela trabalha. Está a ver a coisa, não é? Agora que o marido desapareceu neste mundo de Deus, é bom de ver… Nada a impede… Parece que, depois do trabalho, se encontram numa pensão. Pois, exacto, ele é casado. No meio de tudo isto, só tenho pena dos miúdos. Sobretudo do mais velho, ainda tão pequenino, e já com o peso do governo de uma casa sobre aqueles ombrinhos tão tísicos… Já viu se não fosse ele? O que seria daquela casa? É ele que tem a responsabilidade de ir buscar o mais novo à escola. Onde é que já se viu isto? Sinceramente! Não, vizinha, por favor, isto não tem defesa possível. Coitada daquela criança! Falo do mais velho. O outro ainda é pequenino. Se tenho a certeza? Só falo do que sei! Assim se modela um esboço, o resto é sempre tarefa do tempo, de uma conversa ociosa de soleira de porta ao recreio da escola, nem dois dias, quando, na disputa sempre acalorada da bola, um colega sai magoado, ainda no chão, atira-lhe à cara, Vê-se mesmo que tens falta de pai! O que vale é que a tua mãe anda a trabalhar, e muito, para te arranjar um… Não acabou a frase, é natural, só quem perde é que pode compreender, na plenitude, aquilo que permanece, porém, não foram as palavras que o feriram, nem o facto de se reportar à sua mãe, foi o tom, desdenhoso e simultaneamente panfletário, como se aguardasse o primeiro revés para o golpear, de facto, não terminou a frase, um vigoroso e certeiro murro na cara interrompeu-lhe o verbo, apesar de ainda não se ter levantado, o resto decorreu como normalmente sucede nestes contextos, mais murros e pontapés trocados, uma assistência sedenta, projectos de os apartar, até que um adulto providencial põe fim ao acontecimento do dia, pelo menos, naquele recreio, foi de certeza. Decidiu, antes de sair da escola, nada contar em casa. De facto, somos seres muito curiosos, havia uma indesmentível centelha de orgulho em si, pela cena da tarde, afinal, defendera a honra de sua mãe, nada mais louvável, e só esperava, como é óbvio, algum reconhecimento por tal acto, contudo, ao chegar a casa, apenas o aguardavam recriminações, tudo se lhe desenrolou nos antípodas do expectável, a escola telefonara para o emprego da mãe a dar conta do sucedido, Achas bem, andares à pancada? Por acaso, és algum arruaceiro? É para isto que faço tantos sacrifícios? (Neste ponto, ele pensou em dar início à sua apologia, se, de facto, a mãe afirmava fazer tantos sacrifícios por eles, o colega insinuara precisamente o contrário, e num tom, lá está, aquele desdenhar panfletário que o inundou de cólera, onde nas entrelinhas sublimava, numa nitidez ofuscante, a distância entre os passos da mãe e os de uma qualquer via dolorosa, contudo, silenciou-se… A dúvida instalava-se!) Achas correcto? Sinceramente, diz-me: achas correcto? E, se faz favor, quando falo contigo, olha-me nos olhos! Escusas de fazer essa cara de enjoado! É uma vergonha! Repito: agora, deste em arruaceiro? Foi essa a educação que te demos? (A forma plural ecoou repetidamente pelas suas funduras, a educação que te demos, a educação que te demos, a educação que te demos, como se possuído por uma espiral obsessiva, olhou atentamente a mãe, para se certificar de alguma sombra de arrependimento por esta última questão, ou, em última análise, de consciência do que acabara de dizer, porém, nada encontrou, a não ser, diante si, uma máscara forçada de indignação e de cólera contida.) Foi essa a educação que te demos? Meu Deus, nesta altura, teria ele já uns doze anos, desde o oitavo aniversário que nada daquela insistente mão pelos cabelos, que o chateava, por constantemente o despentear, a pistola, de fulminantes, prateada, uma relíquia guardada com esmero, como se uma derradeira memória de alguém demasiado querido que partira, contudo, nada não é o termo correcto, porque fica sempre algo, afinal, todos temos um último porto de nome memória, e é para aí que tudo converge quando se dilui do mar visível. E houve tantos gumes da vida a relembrar aquela ausência: desde a compaixão carregada dos gestos e olhares dos vizinhos, aos longos telefonemas nocturnos da avó, era uma questão de minutos até se ouvirem os soluços descompassados da mãe, aquela cadeira obstinadamente vazia à hora das refeições, sempre que um olhar incauto por ali passeava, logo toda e qualquer conversa cessava, até que, numa tarde, a mãe tratou de afastar a cadeira para bem longe dos seus olhares e consequentes pensamentos, uma tentativa, coitada, talvez fosse sua intenção, de lhes higienizar a alma, o dia do pai, tão celebrado nas escolas, que, para eles, apenas constituía uma tortura anunciada, começava, logo pela manhã, com a indecorosa e repetida exposição da palavra pai sob quase todas as formas sensoriais, houve anos em que chegaram a pensar afundar-se numa qualquer forma de paternidade, tal a cadência obstinada com que ouviam o vocábulo, e a pergunta fatal, a que logo se seguiam outras, quando, ao lado dos colegas uma figura que, para eles, apenas uma impressão cada vez mais esfumada, sempre sós perante quem celebrava uma incompreensão, E o teu pai? Não veio porquê? Por fim, o limiar de uma funesta conclusão, Afinal, tens ou não pai… Na ânsia de perceber o ponto de partida, seja do que for, regra geral tendemos a recuar, recuar, recuar, e acabamos por passá-lo despercebidamente, tal a voragem no recuo, o carácter prático, que muitos salientam ser uma qualidade sua, mais não é do que uma consequência da forma como ele teve de pegar na vida. Cansado de assistir a incompreensões celebradas, quase como se o agrilhoassem para assistir a um filme, falado num idioma obscuro, sem legendagem, fê-lo desgostar destes contextos, as repetidas chegadas tardias da mãe, tudo por fazer em casa, o auxílio ao irmão, ir buscá-lo à escola, desenrascar refeições, acentuou essa sua visão do mundo enquanto um lugar desordenado, e, em adulto, quando procurou alguém para caminhar a seu lado, foi no olhar de minha irmã que se demorou, ela apreciou essa pausa, a primeira troca de frases, os primeiros passos a dois, lembro-me quando o levou lá a casa para o apresentar, percebi o agrado de meus pais, não obstante a sua simplicidade de horizontes, tanto a vida lhe subtraíra, porém, ele aprendera uma singular arte: a de ouvinte. No seu contexto laboral, compreendera que todos têm sempre algo por dizer, calamos tanta coisa, até que, um dia, o potencial receptor já uma memória, e a frase permanece suspensa em nós, numa crescente amargura por não ter sido ouvida no destino. Davam longos passeios, não creio que povoassem muito os silêncios, minha irmã nunca deixou o leme do acontecer, pelo contrário, conduziu as coisas sob os ditames dos seus caprichos, encontrara a personagem ideal para o seu guião, percebia-se-lhe, por vezes, uma expressão enfadada pelo excesso de atenção que ele lhe dispensava, no fundo, nada demovia aquela expressão do seu rosto, parecia-lhe inata, seguiu-se o namoro, o casamento esteve quase para acontecer no civil, por vontade dela, mas foi adiado, já não me recordo porquê, depois a primeira filha, a segunda, pelo meio ainda perdeu um, ia para o quarto mês de gestação, foi muito estranho, nada o faria prever, meus pais pouco me adiantaram, também não me interessou particularmente, nunca lhe compreendi as estigmatizações, há outras formas de sublimarmos dias em que o demónio resolve caminhar pelo mundo dos homens.
Foi num dia de semana, talvez uma quarta-feira, ele a entrar em casa, com as miúdas, eu a subir uma colina, a distância a aumentar, a aumentar, incessantemente, as suas vozes só um longínquo eco, frases entrecortadas com soluços (Meu Deus! Meu Deus! O que foste fazer?), talvez uma das miúdas à porta do quarto, a assistir ao desaguar do meu ser, espero que não, sei que não me irão perdoar, pelo menos tão cedo, um dia, bem para a frente, aos primeiros grisalhos, é quando as desilusões começam a desequilibrar, para o seu lado, o saldo de uma vida, iniciar-se-á o processo de compreensão, quanto a ti, suprimimos, por uns tempos, as nossas solidões, contudo, a minha regressava, creio que, de facto, nunca partiu, sempre aqui esteve comigo, acompanhou-me em cada passo, tenho de ir, ouço minha Avó a chamar-me, está ali, um pouco mais acima, talvez precise de ajuda com a lenha.
Pedro de Sá
(08/10/17)