Hoje, quando acordei, todos tinham
saído. Já não me lembro da última vez em que uma palavra pela manhã. Vou à
janela, abro as cortinas, há muito que o estore partido, o meu pai Não mexas aí, que sou eu que arranjo, eu
não mexo, mas o arranjo continua a aguardar uma vontade por cumprir, talvez
nunca a encontre, pela luz, que me devolve as distâncias, percebo a plenitude
da manhã, nisto, compreendo, na entrada do prédio em frente, minha mãe, de
esfregona nas mãos, está de costas, leio-lhe cansaço na lentidão, baixa-se para
aproximar o balde de si, percebo-lhe a dor nas costas, sem lhe ver aquele
característico esgar, jamais um lamento, tudo, por ali, se verbaliza em
falanges contorcidas, o resto, palavras sem som, minha mãe (Desde quando lava o
mundo? E a escada do prédio em frente?) longe desta minha vergonha, por
encontrar, diariamente, manhãs em plenitude (Mas que fazer?), a esfregona em
círculos, lentos, percebe-se-lhe o cansaço, dois miúdos entram a correr prédio
adentro, como se nada diante deles, o calor estende-se, em mim, dos antebraços
às mãos, a esfregona continua a sua dança circular, enquanto uma mão, de minha
mãe, visita a testa, neste momento, no cimo da rua, meu pai com a sua jornada
diária de esquecimento, começa cedo, minha mãe, do cansaço, ou talvez por uma
compreensão desgostosa, nada de censuras, afinal, uma vida inteira de trabalho,
e depois, uma carta a tentar calar décadas, ainda se deram ao trabalho de
contar as linhas, eram oito, os anos de fábrica trinta e dois, continua a sair
de casa à mesma hora, se não sair diz que endoidece, compreende-se, apesar da
diferença no destino, num destes serões, quase num sussurro, disse para minha
mãe, É a única porta que encontro aberta,
nunca se ouviram censuras, talvez na sua consciência uma esfregona limpasse
recriminações, que, assim, jamais encontrariam o verbo, nestas alturas, ela
erguia-lhe os lábios à testa, quanto a mim, permaneço numa zona indefinida
balizada por cadernos e livros e por rectângulos que se preenchem após um mês
de balcão ou sentado numa caixa, a esfregona de minha mãe persiste nos seus
lentos movimentos circulares – máscara do cansaço –, meu pai, agora, com oito
linhas que tentam justificar trinta e dois anos, a sair de casa para abraçar o
esquecimento, neste momento, à minha frente, do outro lado da rua, minha mãe
acena-me, retribuo com uma saudação tímida, afinal, só há pouco abri as
cortinas, mas no seu olhar, do outro lado da rua, não havia vestígios de
censuras, apenas uma alegria genuína por me encontrar, e, naqueles breves instantes
em que nos olhámos, sob a moldura de sorrisos, disse-me que eu não podia fazer
mais, que me ouve entrar em casa, todas as madrugadas, em cuidados pela hora,
vindo do armazém daquele grande supermercado, onde ajudo a arrumar infindáveis
caixotes, com a esperança de assinar, por mais um mês, um rectângulo, assim,
sempre ajuda lá em casa, e rectângulo a rectângulo, onde testemunho em magros
números demasiadas horas, evito trajectos de esquecimento, contudo, à vista da
esfregona, em círculos lentos, numa dança cansada, de minha mãe, daquele verbo
peculiar comunicado por falanges contorcidas, sinto-me a olhar gigantes, apesar
das horas de caixotes noite dentro, dos dedos dilacerados, das costas que
gritam numa dessintonia de omoplatas, ombros, e cervicais, de súbito, uma
vontade encontra-me, saio de casa, atravesso a rua, e, antes que as suas
falanges contorcidas pegassem de novo no balde, eu pego-lhe, ela ergue-me os
lábios à testa, já não há, em mim, vestígios de dedos dilacerados, de costas
que gritam numa dessintonia de omoplatas, ombros, e cervicais, nada, neste
momento, eu olho gigantes, minha mãe –
quantos degraus cumprem uma vida? –, neste momento, caminha o regresso a
meu lado, numa majestosidade ferida, o destino enganou-se-lhe no ceptro, entretanto,
do fundo da rua, alguém entoa uma canção de saudade, como se quisesse esquecer
e lembrar ao mesmo tempo, meu pai, perdido entre duas margens, de súbito,
compreendi a sua frase, sussurrada num destes serões, a minha mãe, É a única porta que encontro aberta.
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