Havia uma árvore, num lugar da
infância, a que gostava particularmente de subir. Quase sempre, ao final da
tarde, trepava até ao segundo ramo, e ali me deixava ficar, a olhar. Não bem a
olhar, apesar do rio, lá ao fundo, mas a estar. Talvez pela hora, um calor
emanava, como uma expiração, da árvore, enquanto o mundo, à minha volta,
acolhia a noite, ali perpetuava-se um vestígio de dia. Não havia melhor canto
para se estar. Tudo tão longe de mim, e eu somente a dois ramos da nossa
angustiada superfície. De vez em quando, o meu nome noutras vozes, tão
estranho, o meu nome só com sentido por ser noutras vozes… Mas eu a estar.
Apenas. Agora, tudo tão longe de mim. As águas murmurantes, lá ao fundo, a meio
do vale, trajadas de laranja, talvez por olharem o céu, e o levarem, na sua
corrente, como se passos numa mesma direcção, enquanto olhos que se olham. Uma
brisa cansada anima palavras perdidas entre as folhas, que me falam de
destinos, eu, neste momento, com o rio, lá ao fundo, a meio do vale, de vez em
quando, um cão lamenta-se aos céus, pelas chaminés compreende-se regressos e
jantares, uma carroça sobe o vale num gemido desesperançado, fico a ouvi-la,
afigura-se-me uma sábia melodia, pela sua humilde convicção, de onde estou,
compreendo-a melhor, quem sabe se pelos dois ramos acima da nossa angustiada
superfície, em mim, neste momento, apenas o calor emanado deste ser que se
finca na terra enquanto tacteia os céus, de novo, meu nome noutras vozes, nunca
me souberam aqui, talvez por se terem esquecido de olhar para cima, de certa
forma, compreendo-os, naquela superfície, por onde caminham, dificilmente se
tacteiam céus, continuo com o rio, lá ao fundo, a meio do vale, entretanto,
despira o laranja, agora traja um azul-escuro pontuado, aqui e ali, por
vestígios de luz, continuam passos numa mesma direcção enquanto olhos que se
olham, uma vez mais, o meu nome noutras vozes, desta vez, sinto a cor da
superfície que pisam na entoação, o meu nome pintado de angústia, contudo,
persisto com o rio, lá ao fundo, a meio do vale, extasiado por aqueles
vestígios de luz, tão longínquos e tão familiares (Quantas vezes os hei-de
encontrar em olhos que me olham?), e com o calor emanado por este ser, em parte
oculto, em parte visível, mas sempre em harmonia, as vozes recrudescem, um
pássaro canta no seu voo de lar, em mim, ainda, aquela sábia melodia, de uma
humilde convicção, como um gemido desesperançado, da carroça que subia o vale,
nesta altura, já terá cumprido o seu regresso, embora continue a ouvi-la, como
se este fosse o seu lugar natural, sempre a procura por um sentido, talvez nas
águas que fluem enquanto espelham as cores das alturas, olhos que se olham, sei
que aqui vou regressar, amanhã, depois, para o ano, mesmo quando viver amanhãs
distantes, sempre que as águas trajarem de laranja, vou-me afastar, dois ramos,
da nossa angustiada superfície, embora não saiba para onde fluem as águas,
tenho de regressar para me saber, o meu nome mais próximo, entoado com o perfil
da superfície, tenho de descer, antes, um último vislumbre a um horizonte de
sonhos, talvez por se diluírem distâncias, compreendo que cessara o calor
emanado por este ser, em parte oculto, em parte visível, mas sempre em
harmonia, talvez agora caminhe por outras paragens, quem sabe se acompanha o
fluir das águas, olhos que se olham, já estou no primeiro ramo, antes de sentir
o desconforto na sola dos sapatos, uma melodia reacende-se na minha memória,
uma sábia melodia, pela sua humilde convicção, como um gemido desesperançado,
que me acompanha os passos enquanto as
vozes de há pouco se silenciam, sob um azul-escuro pontuado, aqui e ali, por
vestígios de luz, tão longínquos e tão familiares (Quantas vezes os hei-de encontrar
em olhos que me olham?).
Livros do Escritor
segunda-feira, 12 de dezembro de 2022
O amanhã nasce com a noite
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