Livros do Escritor

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domingo, 18 de dezembro de 2022

Com licença…

 


Quando ali entrámos, há muito que a ideia em mim, ela a apontar-me camisolas, casacos, cachecóis, mas eu, determinada, corredor fora, a loja, àquela hora, apelava a constantes rotações de ombros, e ao afamado com licença português, sempre pronunciado num tímido sussurro, como se de uma súplica se tratasse (Há quanto tempo este povo apenas ora e suplica? Talvez já nem ore, pois isso requer fé, apenas suplique…), com aquela peculiar sucessão de cês, é natural que ora ombros, ora com licenças, tímidos e sussurrados, afinal, trata-se de um Domingo à tarde, não sei bem porquê, mas sinto que há uma tristeza espreitante nas tardes de Domingo, e não afirmo isto por canções ouvidas nos idos da infância, mas por me sentir observada, nessas tardes, por uma melancolia maior que eu, talvez não seja a única, daí ora ombros, ora com licenças, tímidos e sussurrados, nos corredores desta loja, e em todas as outras, ao jantar, em minha casa, apenas a televisão com direitos de emissor, por vezes, como na escola, ergo um dedo apenas para reportar uma ocorrência do dia, logo o meu pai com um sonoro Chiiiiiuuuuu, minha mãe nem sequer se apercebe da minha intenção de tomar as vezes de emissor, tal o magnetismo daquele rectângulo, que apenas debita fome, guerra, peste e morte, há cavaleiros que esperamos há demasiados séculos, e, de tanto esperar, não nos apercebemos de que já vivem entre nós, contudo, nesta tarde de Domingo, ora ombros, ora com licenças, tímidos e sussurrados, nos corredores desta loja, nem vestígios de cavaleiros, nem do sonoro Chiiiiiuuuuu do meu pai, eu a chegar à minha ideia, como se tal fosse possível, só mais tarde iria compreender que as ideias vivem sempre mais adiante, a sentar-me num dos poucos bancos disponíveis, a fingir que experimentava as botas, perdi-me a olhá-las durante dias, ainda tentei expor este desejo aos meus pais, mas logo Chiiiiiuuuuu, os ombros subiram-me, fui para o meu quarto, desabafei através de teclas e símbolos com uma amiga, ela quase me insultou, de anacrónica a inocente desfiou um pouco de tudo, por fim, apresentou-me a sua versão das coisas, eu, ao início, escudada na incredulidade, ela insistiu, desta feita, pela sistematização do relato, vi-me forçada a considerar a possibilidade da verosimilhança do sucedido, ainda me lembro, o meu sono, nessa noite, entre a ambição e uma qualquer outra coisa, que nos faz arrefecer as acções em nome de limites, tão estranho, este balizar de acções, como se fosse impossível ir além de, enquanto outros, sem qualquer freio, parecem mobilizar-se sempre sobre linhas de horizonte, naquela zona difusa de luz e sombras, eu, no aqui, mão sobre o olhar, no esforço de lhes perscrutar os gestos, e um irreprimível desejo de os acompanhar, talvez tenha chegado o dia, levanto-me, avanço até um espelho, de facto, era mesmo isto que eu queria, ela entra num dos provadores, pela hora, pelas rotações de ombros, pelos com licenças, tímidos e sussurrados, ninguém contabilizava peças, reparo que leva descontraidamente duas camisolas, como se numa indecisão de cor, ou para comprovar o tamanho, mas o seu ar resoluto jamais indiciaria a escassez de carteira, resolvo calçar a outra bota, de novo, o espelho, enquanto me revejo seguro o cabelo, como se me turvasse a visão de pés e tornozelos, quanta orfandade nos nossos gestos, volteio-me, uma e outra vez, nisto, ela abandona os provadores, as mãos à vista, disponíveis, sempre descontraídas, regresso ao banco de há pouco, pego na carteira, na caixa dos sapatos, vou arrumá-la, quem a encontrar pode ser que goste de botas em segunda mão, pelo uso, diria antes quarta mão, ela espera-me um pouco à frente, garanto-vos que é quase impossível detectar as duas camisolas vestidas debaixo do casaco da original, sempre a sistematização, ao chegar junto dela, a questão foge-me, E agora?, ela olha à volta e com um sorriso responde, Vens a meu lado, seguimos pela saída sem compras, e vamos contando umas anedotas. Ah, já me esquecia, as botas ficam-te mesmo bem, enquanto me piscava o olho, ladeei-a, por muito que tentasse, parecia-me que todos à minha volta lançavam-me olhares de censura, ao mesmo tempo que olhavam com desdém para os meus pés, sentia-me agrilhoada, tive de respirar fundo para prosseguir, ela impaciente com as minhas hesitações de marcha, a linha de caixas à vista, um segurança, do outro lado, em diálogo com o intercomunicador, os grilhões a pesaram-me mais, não resisto a colocar-lhe a questão, como se uma súplica (ou oração?) por um incentivo, enquanto lhe seguro o braço, E se somos apanhadas? A expressão dela entre a ira e o espanto, Não pensaste nisso antes? Tiveste tempo! Há semanas que me falas dessas botas… Eu nunca fui. Espero que não seja hoje… Ela a afastar-se por causa dos meus grilhões, eu Espera! Vira-se para trás, queria dizer-lhe qualquer coisa, já não me lembro o quê, acho que palavras de limites, pareceu-me que tudo, à minha volta, se imobilizara, nem rotações de ombros, nem com licenças, tímidos e sussurrados, por uns instantes, para me ouvir, aproxima-se, coloca-me a mão no ombro, baixa a voz e diz-me É compreensível. É a tua estreia. Anda! Vais ver que tudo corre bem. Deixa-te de vergonhas. Vergonha é ser caixa de supermercado… A voz dela, agora, de uma linha do horizonte, naquela zona difusa de luz e sombras, quis responder-lhe, mas, uma vez mais, o Chiiiiiuuuuu do meu pai…

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