Livros do Escritor

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domingo, 17 de janeiro de 2021

O Silêncio do Verbo


 

Hoje, precisamente nesta noite, regressa aquela rua. Há quanto tempo dali partira? Certamente que há muito. Pelo caminho, recolhe possibilidades. Deposita-as num saco de plástico, com o logotipo de uma superfície comercial desbotado, furos em vários pontos, e numa ameaça de ruína latejante. Todas as noites acolhe o que outros se recusam a mastigar. Assim é a vida: um ciclo infatigável de sementeira e recolha. Já conhecia os hábitos de alguns quarteirões. Quase lhes conhecia as vidas. Sim, de certa forma, era-lhes íntima. Sabia-lhes as preferências, os hábitos, os cheiros, e, acima de tudo, os limites. Sim, verdadeiramente só conhecemos alguém na emanação de uma transparência. E esta viaja por zonas recônditas, de luz difusa, com vozes sussurrantes, e gestos contidos… Havia prédios mais generosos. Ela sorria àquela abundância: meia banana por mastigar, um pedaço de carne com o osso ainda coberto, um iogurte, apesar dos vestígios salivados, aquém do fim, uma camisola apenas abrasada pelo ferro, e um cachecol reformado pela anacronia das cores… Por fim, depara-se-lhe uma esquina: e ela hoje, longe dos porquês, regressa. No fundo, estamos sempre a regressar. E, do início da rua, o seu olhar naquele 1º andar, terceiro prédio do lado esquerdo, com os estores para cima, há quanto tempo partira? Talvez não fosse há muito. Avança na cautela de evitar as clareiras de luz, mas os olhos naquela janela de um 1º andar. Há quanto tempo partira? Hoje, nesta precisa noite, de luzes piscantes, carros ocasionais pelas ruas, como se a vida repousasse, ela, com o saco de plástico na mão, a fome em si, e o olhar numa janela, compreende o momento da partida: quando não pôde suster o silêncio de um olhar. Como se, nos caminhos da vida, num certo momento, também longe dos porquês, lhes largasse as mãos, e, muito depois, se soubesse só. Tudo começou com uma risada parva e a emergência da afirmação. Passou a rotina, aquelas idas para a sombra do pavilhão escolar, partilhar fumos, como se uma libertação de cárcere incógnito. Mas sempre a fuga (talvez de si). E quem foge, não olha para trás. Aos fumos seguiram-se líquidos em utensílios médicos, mais exigentes nos bolsos, aí começou a preencher a mochila com partes da casa, os livros jaziam na secretária, a escola já era um pretérito nesta odisseia, falava-se na vizinhança disso, por fim, noites em casas de amigos, mas começou a faltar o combustível da fuga, certa noite, o amigo mais próximo deposita-lhe uma sugestão, pertinho do ouvido, e remata: Vais ver que não custa nada… A seguir, uma beira de estrada, um carro a desacelerar, o vidro baixa, o sujeito anafado, com uma calvície suada, mais velho que o pai, de sorriso suíno, três frases e negócio firmado, ela com a urgência renovada de retomar a fuga, a dignidade já nem nos bolsos, seguiram-se mais beiras de estrada, matagais, pensões de colchas nodoadas, contudo, a certa altura, percebeu-se numa fuga solitária, já sem amigos, o amigo mais próximo pareceu-lhe um sonho de uma outra vida, e, nesta noite, com um ar particularmente adocicado, a relembrar aquela janela do 1º andar, do terceiro prédio do lado esquerdo, com um saco de plástico, com o logotipo de uma superfície comercial desbotado, furos em vários pontos, numa das mãos, compreendeu que tudo é um regresso. A fome reconduzira os seus passos. No fundo, a fome é o alimento do lar. Talvez se atravessasse a rua, e tocasse à campainha… Não, talvez seja demasiado tarde… Vira as costas, e prossegue a sua recolha de sombras. Nisto, ouve uma voz longínqua, que a chama. Agora, a voz mais próxima. Como se regressada de uma outra existência, em que o som do seu nome soava a melodia. De novo, sim, não há dúvida. Ela pára numa clareira iluminada.

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