Caminhavam passos de incerteza. Como se hesitassem no destino. Iam pelos passeios da cidade, apoiando-se, como se, à vez, as forças se extinguissem, uma delas, com um papel amarrotado na mão, olhava portas e números. A outra, mais sobre si, como se procurasse compreender o mapa que ali a conduzira. Um vento de inverno arrefecia passos, mas despertava o pensar. Cruzavam-se com gente de ar desiludido, invernal, também de casacos, cores da noite, e de semblante opaco – como se detivessem um crédito, por sanar, sobre a existência. Mas o olhar delas detinha-se mais em números de porta do que em rostos. Por fim, uma porta coincide com o papel amarrotado. Antes da campainha, inspiram e olham à volta. Como se, sim, porventura um vento de outra direcção. A porta abre-se com um estalido demasiado metálico. Ambas num sobressalto disfarçado. Sobem seis degraus, sem acender a luz, a claridade da rua era-lhes suficiente. Hoje sentiam a doçura da obscuridade. Há momentos assim: geralmente envolvem dor… Contornam a porta metálica do elevador, e seguem o rasto de luz, proveniente de uma porta aberta, por fim, entram. À sua espera, estava uma mulher, com cerca de meio século, estatura média, com uns modos que denotavam as fissuras indisfarçáveis no verniz. Mas havia qualquer coisa de olímpico neste esforço, compreendia-se a lonjura da meta. Começou por perguntar, sem quaisquer delongas, qual delas era, o tempo, e pelo envelope. Foi a do papel amarrotado que, após um passo em frente, assumiu a comunicação. A outra, ainda de mãos nos bolsos do casaco, sim, também com cores da noite, olhava apenas. Nada mais. Olhos na luz da entrada, uma lâmpada fluorescente, sempre demasiado comprida, daquelas mais utilizadas em cozinhas, agora observava o corredor, exíguo, três ou quatro portas, todas fechadas. Após o envelope, o meio século retira-se com a rapidez de duas décadas, mas com a súbita energia de uma. Elas sentam-se num sofá acinzentado, com três ou quatro fontes de espuma, desconfortável, a do papel, em surdina: O que é que te parece? A outra, ainda de mãos nos bolsos, responde com os ombros, mas agradece a frase, como se, de alguma forma, as palavras a reconduzissem a si. A do papel levanta-se, inicia, talvez demasiado cedo, a caminhada da espera, aquela marcha da impaciência, mas interrompe-a, por um olhar e uma questão: Tens a certeza? A outra responde de uma forma lacónica: baixa, em simultâneo, rosto e olhar. De entre linhas, estamos conversados. Nisto, o meio século regressa, Vamos então despachar?, com um não sei quê de talhante, ambas se entreolharam, mas nada disseram. Afinal, estava tudo dito. A das mãos nos bolsos levanta-se (quantos séculos, neste segundo, se terão erguido com ela?), olha a luz de cozinha, estende uma mão à amiga, esta apressa-se a recebê-la, aperta-a no possível de um estímulo, e olham-se. A do papel compreende ser uma figurante chamada de urgência a uma cena que não era sua. Mas esforça-se por retribuir calor no olhar. A outra agradece, num sorriso inexpressivo pelo esforço, e encaminha-se para única porta aberta de um corredor demasiado silencioso. Quantas encruzilhadas cabem numa vida? Talvez as do arrependimento. Foi um prenúncio de noite, sentido no rosto, que a fez regressar. Já não havia sinais de uma luz de cozinha. Nem de meio século com gestos de talhante. Já são imagens de uma vida longínqua. Estava sentada. A seu lado, a amiga, já sem qualquer papel na mão. Também o perdera. Parecia uma estação de comboios. Agora, ambas de mãos nos bolsos. Talvez para disfarçar vazio. Sim, de si apenas um eco. Como essas casas, na obscenidade de apenas paredes, que não se cumprem. Um comboio anuncia-se na noite. Custa-lhe a levantar-se, de tão vazia. Quantas encruzilhadas cabem numa vida? Talvez as do arrependimento, sim, talvez… De novo, uma mão amiga a içá-la. As portas do comboio abrem-se num frémito, ela tenta-se perceber, mas apenas vazio, entra, inicia-se o regresso, sem se aperceber, ouve infância… Não, não vai olhar para trás.
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