Deixou cair a pesada mochila, com uma
incontida expiração de alívio, num dos degraus, sem precisar qual, e, de
seguida, sentou-se. Ladearam-no três ou quatro colegas de ofício, e pensaram a
noite. Concluíram o fraco pecúlio de hoje, e, já luzes da cidade acesas,
decidiram-se pelas arcadas ao cimo dos degraus. Antes da mochila ao ombro, ele
pára, apenas para inspirar, e inicia a vitória dos seis ou sete degraus que o
separam do anunciado repouso. Os colegas já de sacos-camas estendidos, ele
ainda na perplexidade do momento. Sim, primeira noite de estrelas, no olhar, e
de lajes, nas costas. A diligência dos outros denotava o dia da partida do lar.
Ele ainda com movimentos renitentes, uma delas em seu auxílio, a esteira,
depois o saco-cama, um sorriso aquecido que contrastava com o frio galopante da
madrugada. As sandes do almoço já distantes. Resolvem partilhar os créditos do
dia. Dois partem em busca de mais sandes. Os restantes permanecem sob as
arcadas, na salvaguarda dos aposentos. Ele fica, a perplexidade tolda-lhe os
movimentos. Uma questão aflora-lhe ao espírito, numa inquietude latejante. Ele
procura adormecê-la, mas o seu ser asfixiado pela dúvida: Quantos passos percorrera para ali chegar? Àquele preciso cimo de
escada. Às arcadas daquela secular igreja. E a resposta, como sempre acontece
às nossas dúvidas, distante. Ainda se fosse uma questão de outro! Para essas, a
resposta à distância do nosso bolso. Há quanto tempo partira? Partimos tantas
vezes de nós! Deixamo-nos tantas vezes abandonados no mundo. Para nos
escondermos naquele lugar só nosso. Sim, aí estamos sempre a salvo. O
desconhecido torna-se um país longínquo. O olhar dele no rio caudaloso do
trânsito. Por vezes, detém-se nos ocupantes. Se o vissem ali… Mas afasta este
pensar, e permanece algures entre o orgulho e a vergonha, sem saber de onde se
aproximar. A rapariga do sorriso aquecido estende-lhe uma cilíndrica e
fumegante fuga botânica. Ele agradece, entre ombros encolhidos e sorrisos
tacteantes. Inspira, o seu olhar abandona as janelas do trânsito e sobe para a
noite do mundo. Que horas seriam? Do porto de onde partiu, seria a hora da
refeição nocturna. Cumprir-se-ia sem ele? Aquece os lábios com uma nova
inspiração, a natureza sempre o acalmou, as ideias fluem, compreende, agora, as
questões nascidas de um desejo: a súplica por um sentimento. Com certeza, já
nem o prato dele depositado na mesa, certamente o banco que ele ocupara a
segurar um vaso, a noite, como sempre, entre novelas e crochê, talvez, muito
ocasionalmente, falem daquele barquito que zarpou para rotas indesejadas.
Quantas vezes Tens de estudar, meu filho!
Hás-de ser doutor, quer queiras ou não! Não queres dar uma alegria aos teus
pais? Mas ele quis, apenas, ser livre. Abraçar o mito de um mundo de
canções, partilha, e estrada. Preferiu a leveza das missangas, vendidas nos
passeios, ao peso obscuro dos corredores académicos. Certa noite, de mochila às
costas, após mais gritos incomunicantes após o jantar, decidiu-se. Ainda os
olhou, estavam na sala, como sempre àquela hora, absortos na trama circular de
mais uma novela, cresceu-lhe compaixão por eles, sim, naquela altura, ainda
pensava mudar o mundo. Fechou a porta, desceu dois ou três degraus, e nada se
alterou no interior daquela casa. O único eco interior provinha da televisão,
sempre demasiado alta, nada mais. Nesta noite, a primeira de estrelas e lajes,
hoje as missangas nem para aquela pensãozita mesmo em conta, começava, na
clarividência de um estômago suplicante, a compreender quantos passos percorrera para ali chegar. Os das sandes
regressaram. Procedeu-se à partilha. Após a ceia, cada um refugiou-se em si. No
fundo, todos zarparam de portos distintos. Embora náufragos na mesma ilha. A
rapariga do sorriso aquecido estendeu-lhe novo cilindro botânico. Ele, desta
vez, recusou num sorriso. Olhava arcadas. Olhava estrelas. Como queria abraçar
o mundo? O mundo é um lugar longe. A madrugada crescia. A rapariga do sorriso
aquecido depositou-lhe o rosto no ombro. Ele agradeceu, comovido, sem saber o
porquê.
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