Qual foi a última vez em que acordei
para nascer? Numa manhã ida, talvez demasiado ida, difusa numa memória tão
cansada de o ser. Acordar com o sopro do novo… E a criança a descer os degraus,
ainda na obscuridade, a sentir aquela frescura no ar pretérita da luz, abre a
porta, branca, de madeira, sai para um quintal, ora em sombras, ora sob uma
esperança iluminada de não sei bem o quê, como se essa revelação, talvez de tão
nítida, soasse como um fechar de porta, sim, afinal, é apenas aquilo, nada
mais, e, ainda há pouco, podia ser tudo… Quem nos traz a promessa? A criança,
agora, atravessa o quintal, como se para mais perto da luz, ainda aquém de
lestes (que idade teria?), sobe uma decrépita escada de madeira, encostada a um
muro, e, no cimo, vê. No horizonte, de montes não longínquos para o olhar,
nascia uma evidência: a de um começo. E a de um fim. A escuridão agora reduzida
a ténues sombras. Sim, algumas alturas a resistir àquele abraço da evidência.
Nisto, um hino intemporal, emitido com uma abnegação imperativa, por uma
majestade alada, saúda aquele reinício. A vida a reiniciar-se em sons, cheiros,
movimento… A criança ainda de olhar na luz distante, mas também próxima. Do
cimo do muro. Ecoa, de novo, aquele cântico da aurora. Sim, a ave incansável a
anunciar o novo. Como se uma fé renascida. Mas a criança em desilusão. Afinal,
tudo é o mesmo. Ouve um carro na manhã. Já uma luz na casa. A chaminé anuncia
lume. E o horizonte já nítido. Dentro de si, algo se quebrara. Como se lhe
faltassem à palavra. Afinal, tudo é o mesmo. Como é possível? Debruça-se sobre
o pensar: cotovelos no muro, rosto nas mãos, olhar na luz crescente, pensar nas
estrelas fugidias. Sentiu compaixão pelas companheiras nocturnas, como se
aquela voragem luminosa a inquietasse. Olhou para trás. Aqui e ali ainda um
tremeluzir obstinado da altura dos sonhos. A criança sorriu-lhes. Como se lhe
confiassem um segredo. De certa forma, compreendeu. Sonho ou evidência: optou
pelas luminosas companheiras nocturnas. Talvez, aí, visse melhor as coisas. Afinal,
a evidência é um limite. E, com o olhar repousado nos vestígios nocturnos a
Oeste, escuta a incessante multiplicação de vida no mundo amanhecido. Ouve o
seu nome gritado no interior da casa. Desce a decrépita escada de madeira, num
sentir de derrota muito subterrâneo. Afinal, tudo é o mesmo. A promessa não se
cumprira. Ao regressar, reparou nas poucas sombras ainda do quintal. Como se as
coisas do mundo também fiéis com o sonho. O seu pensar em compaixão com aqueles
fragmentos de noite. O que é uma sombra se não um pouco de noite no dia? De
novo, ecos do seu nome por casa. Retoma os passos do lar. Antes, um último
olhar à sua volta. A ave silenciara-se. As poucas sombras esmoreceram. Os
múltiplos barulhos do mundo num só. Afinal, tudo é o mesmo. Sim, é verdade.
Muitos anos depois, a criança de ontem seria um fragmento de noite no chão da
vida.
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