Livros do Escritor

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quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

A quem nasce pobre só resta o sonho

 


Antes de a questão perfurar a fragilidade inata do silêncio daquele lar, já ele a aguardava, ainda sentado, com uma revista aberta, mas a olhar, sem ouvir, a televisão, notícias, talvez porque sempre as mesmas, desemprego, crise, portas que se fecham, gente com malas a caminho de um qualquer lado, onde tecto sobre a cabeça e um pouco de pão na mesa, e sempre aquele sublimado medo, medo, medo a perpassar por entre as palavras, como se cansara disso, foi talvez quando, por fim, percebeu que tantos caem para necessariamente outros, poucos, muito poucos, se guindarem, uma história que caminha à mesma velocidade que o homem, de repente (Já estás pronto?) a voz dela em cada canto da casa, não era difícil, uma salita com vista para um diminuto quarto, num dos lados, um balcão divisor a proclamar o espaço de qualquer coisa relacionada com refeições, a timidez branca de uns escassos electrodomésticos a balbuciar a sua existência por entre os dois únicos bancos altos visíveis, ele levanta-se em nítida contrariedade, responde-lhe com um sumido Sim, dirige-se para a porta, a perna esquerda a demorar-se mais, como se o sapato em lentos acenos de adeus ao chão, aquela queda há uns anos, ela ainda hoje lhe censura a desatenção, coitado, como podia adivinhar uma sarjeta sem grade, a perna chão adentro, a chuva a turvar e a pesar o mundo, o corpo para diante, e uma fractura quase exposta, por ali ficou caído, nem ousou mexer-se, talvez por ter dado ouvidos aquela voz sem rosto que nos habita desde sempre, ainda houve vultos que passaram sem o olhar, alguns até estugaram o passo, enquanto ali esteve, de rosto na calçada, lembra-se de um carro, a mulher a aperceber-se de que ele, apela ao marido com voz e gestos, por segundos, ele reduz a marcha, mas a chuva crescente, o receio de qualquer coisa indefinível, o incómodo somado a uma inesperada perda de tempo, tudo isso fê-lo retomar o destino estrepitosamente, não obstante os enérgicos protestos da mulher, no banco de trás, o olhar da filha impassível, teria uns oito anos, ouvia o interior, mas nem pestanejava para aquele pedaço de passeio, quando o pai decide virar costas para o que lhe restava de humanidade, a criança ergue a mão de encontro ao vidro, em adeus, em perdão, em qualquer coisa que, do alto dos seus oito anos, fizesse aquele carro voltar atrás, tudo em vão, restou-lhe, num gesto, dizer o possível, ele percebeu, e agradeceu, foi talvez nesse momento que as dores ameaçaram submergi-lo e algo se desligou nele, o saber da natureza, acordou com a voz dela, ansiosa, preocupada, as luzes do tecto sucediam-se com rapidez, percebeu-a ofegante para o acompanhar, seguiram-se mais dez semanas de hospital, meses de fisioterapia, filas intermináveis de comprimidos, para não falar de dores, do abrupto adeus à privacidade, o seu único suporte nela, apesar de cada frase traduzir uma censura indizível pela sua distracção, já estavam naquela fase da vida de se resignarem com a paisagem da cama com um só travesseiro, ele sempre se sentiu incapaz de suster olhares, em diálogos preferia o horizonte dos sapatos, embora educado, respondia sempre, porém, nunca gostou de olhares incisivos, sentia que lhe despiam os pensamentos, para não falar daquele tipo de gente que gosta de agarrar o antebraço e sublinhar cada frase com uma rajada de cuspo, ela, pelo contrário, não padecia de escassez verbal, mas desde muito cedo se habituou a demorar na cozinha, e o facto de os pais pasteleiros só contribuiu, as formas cedo começaram a arredondar-se, a mãe ainda procurou travar, mas o pai Deixa a miúda! Coitadinha! Não vês que está em idade de crescimento? A mãe não se ficava Só se for para os lados! Talvez o seu espírito replicador fosse uma herança materna, a certa altura, já na adolescência, o pai a insistir com o médico para que lhe receitasse vitaminas, achava-a fraquita, o médico a ajeitar os óculos, a compor-se na cadeira, a responder em espanto O senhor só pode estar a brincar… Ela precisa é de fechar a boca à mesa! Não se fique com uma ideia errada, ela era forte, mas não excessivamente, depois, houve a doença do pai, primeiro, da mãe, a seguir, o tempo sempre desconheceu a palavra tréguas, quando se apercebeu, já ia bem lançada nos trintas, e, em verdade, nunca houve ninguém que a fizesse suspirar à lua e sonhar ao sol, conheceram-se na estação dos correios onde ela trabalhava, ele ia lá regularmente por ser assinante de uma revista, começaram a trocar impressões por causa do custo das coisas, da revista, dos selos, ela por trás de um balcão, seria excêntrico se ele aí procurasse um horizonte de sapatos, também não corria o risco de ela lhe agarrar o antebraço e de um dilúvio de cuspo, apesar da revista mensal, as conversas, de mês para mês, somavam frases, até que um encontro inesperado na bicha do supermercado, ele cavalheiro a deixá-la passar, ela agradada e nesse dia como precisava de desabafar, um desses dias em que percebemos que o mundo não faz sentido, sobretudo se for a paisagem de uma cama com um só travesseiro, de novo, a voz dela em cada canto da casa (Já estás pronto?), ele abre a porta, deita um olhar de saudade à revista pousada no braço do sofá, continua a chegar, agora à caixa-do-correio, todos os meses, sabe ao que vai, três horas de montras, ela a debitar o que gosta, por ora, a carteira só permite o verbo, a perna esquerda nem isso, no entanto, enquanto vê as cores das novidades, ela sonha, e, ao regressarem, pelo menos, a paisagem do mundo já se pinta com uma cama e dois travesseiros.

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