Livros do Escritor

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sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

A ascensão dos medíocres

 


Não me lembro de como e onde tudo começou, no entanto, de repente, percebo-me de caneta na mão, um caderno de linhas aberto à frente, sozinho numa secretária, à minha volta mais secretárias, também ocupadas por uma só figura, era uma sala comprida, para o rectangular, do lado esquerdo, três grandes janelas envidraçadas iluminavam quanto baste todo o espaço, via uma grande ardósia sem qualquer escrito, e um sujeito, com um circunspecto ar professoral, deambulava, de mãos atrás das costas, por entre nós, regresso-me na hesitação compassada de idoso, já me lembro, foi à hora de jantar, meu pai a irromper, casa adentro, um prospecto na mão, a chamar-me, Já viste? Já viste? É a tua grande chance! Eu hesitante entre a sua entusiasmada expressão, os gestos largos, e, só no fim, a perceber-lhe o prospecto, ele a assentar as grandes mãos sobre os meus ombros, sempre que isso sucedia, diante de mim só a palavra responsabilidade, Percebeste? É a tua grande chance! Nisto, a estender-me o prospecto, que comunicava um concurso literário, o vencedor de uma composição, de tema-livre, era premiado com estudos pagos num país qualquer, confesso que já não me lembro qual, ao contrário de meu pai, permaneci em mim, numa qualquer zona indistinta entre o conforto de saber que uma porta se abre e o desconforto de uma voz longínqua (ou próxima?) que sussurrava insistentemente ser para outro, creio que minha mãe compreendeu os passos do meu pensar, nunca lhe vi o tal prospecto nas mãos, mas algo se colocara em movimento, e eu sabia que teria de o enfrentar, e quantas vezes meu pai o relembrou, ao assentar as grandes mãos sobre os meus ombros, sempre que isso sucedia, diante de mim só a palavra responsabilidade, Percebeste? É a tua grande chance! Desde o dia em que vi o prospecto, até à data do concurso, passou cerca de um mês, muitos foram os temas, durante esses cerca de trinta dias, que me passaram pela cabeça para a composição, actuais, passados, da minha vida (mas que interesse poderia ter a minha vida? Que experiências, com os meus quatorze anos, teria para partilhar? Ou para reflectir?), do meu bairro, sobre os meus pais, a minha escola, o beijo roubado, naquela tarde de chuva, à… Não, ela podia não gostar que… Pois, é melhor nem falar nisso, ainda pensei no meu primo, que emigrou para longe, foi, mais ou menos nessa altura, que tive a minha primeira lição com o mestre tempo, cerca de uma semana antes do grande dia, cansado dos gestos largos do meu pai, de ver, diante de mim, a palavra responsabilidade, enquanto as suas grandes mãos assentavam sobre os meus ombros, de não encontrar um tema para preencher, com dignidade, uma folha vazia, do olhar cúmplice da minha mãe, mas que apenas me devolvia o quão perdido estava, resolvi adormecer para o mundo, os meus pais nem estranharam que me tivesse deitado ainda resquícios de dia lá fora, atribuíram aos nervos, afinal, aproximava-se o dia, no meio de tudo isto, sempre achei curioso que nunca me tivessem perguntado que tema escolhera, não raras vezes, os dias ensinam a desaprender o essencial, por isso, tanto se cala, e depois, muito depois, tanto o silêncio grita, não adormeci logo, ainda umas voltas na cama, e, num repente, percebi que tema iria apaziguar o vazio de uma folha, sorri-me, o meu pensar já se podia levantar e pegar na sua mala, estava cheia, e a viagem adivinhava-se longa, o concurso ia dos doze aos dezasseis anos, era promovido pela câmara, havia dois da minha escola e três que conhecia de vista, também vieram miúdos de localidades próximas, dispúnhamos de duas horas, só precisei de uma, mas não podíamos sair antes, à porta, os meus pais e a ansiedade, assim que me viram, de novo, as grandes mãos sobre os meus ombros, eu a soletrar responsabilidade, Então, como correu? O que te parece? Procurei mitigar-lhes o nervosismo, respondi que Correu como esperava. Melhor não podia ter sido. Ficaram felizes com a luz do meu olhar, que traduzia, na perfeição, a confiança das palavras, os resultados só dali a seis semanas, confesso que, nesse período, o tempo pareceu sentar-se num qualquer banco de jardim, como um idoso que procura a sua sombra de dias idos, para saber-se hoje outro de um antes tão amanhecido, o de antes em energia, o de hoje em prudência, se alguma vez se pudessem encontrar… Os resultados chegaram por carta, meu pai, claro, não resistiu a rasgar nervosamente o envelope, não obstante as súplicas da minha mãe, que lhe relembrava ser o meu nome a ilustrar o destinatário, pelo menos, teve o cuidado de gritar o meu nome, por duas vezes, corri para a sala, e acompanhei o retirar da missiva do rasgado envelope, percebi de imediato o contexto, e o olhar da minha mãe, que, curiosamente, se derramava, aflito, sobre mim, nem por uma vez se desviou para o conteúdo do envelope, era só uma folha, com os nervos, o meu pai deixou-a escorregar das mãos, apanhou-a num ápice, eu olhava-o de respiração suspensa, enquanto sentia o olhar abraçado que minha mãe me dirigia, a expressão de meu pai tornou-se invernosa, atirou a folha sobre o tampo da mesa, enquanto ruminava desprezo e frases Eu sabia! Politiquices! Sempre a mesma trampa! Por isso, é que isto é o que é! Nunca vamos a lado nenhum! Peguei na folha sem me aperceber de que o fazia, nem sombras do meu nome, havia um vencedor e duas menções honrosas, no lugar do vencedor estava o nome de uma colega minha, agora, diante de mim, apenas a palavra espanto, tinha umas notas sofríveis, e conversas balizadas entre novelas e montras, não sei se o facto de ser filha do presidente de câmara ajudou na decisão, talvez se pudesse ler-lhe o texto, talvez, nunca o li, o regulamento dizia que seria público, ninguém lhe viu uma linha sequer, uma das menções honrosas foi para o filho de um sujeito que abriu uma fábrica no concelho, talvez fosse um interessante texto acerca de siderurgia, talvez, o outro foi para a filha de um engenheiro que veio a integrar a lista, para as futuras eleições, do actual autarca, antes de este assunto se calar definitivamente lá em casa, de novo, umas mãos grandes sobre os meus ombros, curioso, agora, diante de mim, surgiu a palavra paz, e a sua voz dizia É isto a vida, filho. Não te iludas… Que pena teres de viver nesta trampa. Mas não há outra coisa! Eu sei quem venceu! Tu também! Acredito que, daqui a muitos anos, haja olhos a passear pelas tuas linhas, enquanto que, destes infelizes, ninguém saberá o nome… Já agora, que tema escolheste?

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