Não
me lembro de como e onde tudo começou, no entanto, de repente, percebo-me de
caneta na mão, um caderno de linhas aberto à frente, sozinho numa secretária, à
minha volta mais secretárias, também ocupadas por uma só figura, era uma sala
comprida, para o rectangular, do lado esquerdo, três grandes janelas
envidraçadas iluminavam quanto baste todo o espaço, via uma grande ardósia sem
qualquer escrito, e um sujeito, com um circunspecto ar professoral, deambulava,
de mãos atrás das costas, por entre nós, regresso-me na hesitação compassada de
idoso, já me lembro, foi à hora de jantar, meu pai a irromper, casa adentro, um
prospecto na mão, a chamar-me, Já viste?
Já viste? É a tua grande chance! Eu hesitante entre a sua entusiasmada
expressão, os gestos largos, e, só no fim, a perceber-lhe o prospecto, ele a
assentar as grandes mãos sobre os meus ombros, sempre que isso sucedia, diante
de mim só a palavra responsabilidade,
Percebeste? É a tua grande chance! Nisto,
a estender-me o prospecto, que comunicava um concurso literário, o vencedor de
uma composição, de tema-livre, era premiado com estudos pagos num país
qualquer, confesso que já não me lembro qual, ao contrário de meu pai,
permaneci em mim, numa qualquer zona indistinta entre o conforto de saber que
uma porta se abre e o desconforto de uma voz longínqua (ou próxima?) que
sussurrava insistentemente ser para outro, creio que minha mãe compreendeu os
passos do meu pensar, nunca lhe vi o tal prospecto nas mãos, mas algo se
colocara em movimento, e eu sabia que teria de o enfrentar, e quantas vezes meu
pai o relembrou, ao assentar as grandes mãos sobre os meus ombros, sempre que
isso sucedia, diante de mim só a palavra responsabilidade,
Percebeste? É a tua grande chance! Desde
o dia em que vi o prospecto, até à data do concurso, passou cerca de um mês,
muitos foram os temas, durante esses cerca de trinta dias, que me passaram pela
cabeça para a composição, actuais, passados, da minha vida (mas que interesse
poderia ter a minha vida? Que experiências, com os meus quatorze anos, teria
para partilhar? Ou para reflectir?), do meu bairro, sobre os meus pais, a minha
escola, o beijo roubado, naquela tarde de chuva, à… Não, ela podia não gostar que…
Pois, é melhor nem falar nisso, ainda pensei no meu primo, que emigrou para
longe, foi, mais ou menos nessa altura, que tive a minha primeira lição com o
mestre tempo, cerca de uma semana antes do grande dia, cansado dos gestos
largos do meu pai, de ver, diante de mim, a palavra responsabilidade, enquanto as suas grandes mãos assentavam sobre os
meus ombros, de não encontrar um tema para preencher, com dignidade, uma folha
vazia, do olhar cúmplice da minha mãe, mas que apenas me devolvia o quão
perdido estava, resolvi adormecer para o mundo, os meus pais nem estranharam
que me tivesse deitado ainda resquícios de dia lá fora, atribuíram aos nervos,
afinal, aproximava-se o dia, no meio de tudo isto, sempre achei curioso que
nunca me tivessem perguntado que tema escolhera, não raras vezes, os dias
ensinam a desaprender o essencial, por isso, tanto se cala, e depois, muito
depois, tanto o silêncio grita, não adormeci logo, ainda umas voltas na cama,
e, num repente, percebi que tema iria apaziguar o vazio de uma folha, sorri-me,
o meu pensar já se podia levantar e pegar na sua mala, estava cheia, e a viagem
adivinhava-se longa, o concurso ia dos doze aos dezasseis anos, era promovido
pela câmara, havia dois da minha escola e três que conhecia de vista, também
vieram miúdos de localidades próximas, dispúnhamos de duas horas, só precisei
de uma, mas não podíamos sair antes, à porta, os meus pais e a ansiedade, assim
que me viram, de novo, as grandes mãos sobre os meus ombros, eu a soletrar responsabilidade, Então, como correu? O que
te parece? Procurei mitigar-lhes o nervosismo, respondi que Correu como esperava. Melhor não podia ter
sido. Ficaram felizes com a luz do meu olhar, que traduzia, na perfeição, a
confiança das palavras, os resultados só dali a seis semanas, confesso que,
nesse período, o tempo pareceu sentar-se num qualquer banco de jardim, como um
idoso que procura a sua sombra de dias idos, para saber-se hoje outro de um
antes tão amanhecido, o de antes em energia, o de hoje em prudência, se alguma
vez se pudessem encontrar… Os resultados chegaram por carta, meu pai, claro,
não resistiu a rasgar nervosamente o envelope, não obstante as súplicas da
minha mãe, que lhe relembrava ser o meu nome a ilustrar o destinatário, pelo
menos, teve o cuidado de gritar o meu nome, por duas vezes, corri para a sala,
e acompanhei o retirar da missiva do rasgado envelope, percebi de imediato o
contexto, e o olhar da minha mãe, que, curiosamente, se derramava, aflito,
sobre mim, nem por uma vez se desviou para o conteúdo do envelope, era só uma
folha, com os nervos, o meu pai deixou-a escorregar das mãos, apanhou-a num
ápice, eu olhava-o de respiração suspensa, enquanto sentia o olhar abraçado que
minha mãe me dirigia, a expressão de meu pai tornou-se invernosa, atirou a folha
sobre o tampo da mesa, enquanto ruminava desprezo e frases Eu sabia! Politiquices! Sempre a mesma trampa! Por isso, é que isto é o
que é! Nunca vamos a lado nenhum! Peguei na folha sem me aperceber de que o
fazia, nem sombras do meu nome, havia um vencedor e duas menções honrosas, no
lugar do vencedor estava o nome de uma colega minha, agora, diante de mim,
apenas a palavra espanto, tinha umas
notas sofríveis, e conversas balizadas entre novelas e montras, não sei se o
facto de ser filha do presidente de câmara ajudou na decisão, talvez se pudesse
ler-lhe o texto, talvez, nunca o li, o regulamento dizia que seria público,
ninguém lhe viu uma linha sequer, uma das menções honrosas foi para o filho de
um sujeito que abriu uma fábrica no concelho, talvez fosse um interessante
texto acerca de siderurgia, talvez, o outro foi para a filha de um engenheiro
que veio a integrar a lista, para as futuras eleições, do actual autarca, antes
de este assunto se calar definitivamente lá em casa, de novo, umas mãos grandes
sobre os meus ombros, curioso, agora, diante de mim, surgiu a palavra paz, e a sua voz dizia É isto a vida, filho. Não te iludas… Que
pena teres de viver nesta trampa. Mas não há outra coisa! Eu sei quem venceu!
Tu também! Acredito que, daqui a muitos anos, haja olhos a passear pelas tuas
linhas, enquanto que, destes infelizes, ninguém saberá o nome… Já agora, que
tema escolheste?
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